Um conto distópico sobre o futuro da água; sobre o futuro do ser humano.
27 de outubro de 2070. São Paulo, Brasil.
Após passar por
sérias crises de falta de água e desertificação de boa parte do seu território,
o Brasil chegou a um estado de calamidade: os doze por cento de água doce
mundial, a qual o país um dia possuiu, acabou; o pouco que sobrou é motivo para
guerra.
A população da cidade
de São Paulo chegou a um milhão de habitantes, somando, inclusive, os
habitantes da região metropolitana do estado. Isso fez com que as autoridades
públicas criassem projetos de Concentrações, onde os habitantes se dividiram de
modo a compartilhar os recursos naturais ainda restantes – apenas na região
metropolitana de São Paulo foram criadas dez Concentrações.
Lúcio é morador da
megalópole brasileira, e trabalha como ajudante geral numa indústria
dessalinizadora na Concentração SP, uma espécie de refúgio, criado para a
população remanescente da cidade, que abriga cem mil habitantes. O rapaz vive
com seu tio e sua prima, sua única família:
— Bom dia, tio! — diz
Lúcio, assim que chega ao refeitório para o café da manhã.
— Filho, eu peguei o
seu café — diz Pedro, o tio do garoto. — As coisas deste turno estavam
acabando, então peguei o seu e da Alice.
— Obrigado, tio —
agradece Lúcio.
O café da manhã é o
mesmo de sempre: uma lata de refrigerante e uma massa assada que lembrava o
sabor de pão, embora fosse muito seca. No almoço, sempre é servida uma lata de
refrigerante e uma fatia de bife com raspas da casca de árvores. Na janta, o
prato é um copo de leite – de vaca ou de ovelha, de acordo com a
disponibilidade – e mais um pouco da massa do café da manhã. Durante o dia,
cada pessoa tem direito a 500ml de água, os quais são dosados para não passar
sede.
— Meu estômago está
queimando... — comenta Lúcio. — Acho que não vou querer o refrigerante.
Por conta do excesso
de refrigerantes, muitas pessoas têm, frequentemente, problemas
gastrointestinais.
— E vai engolir a
massa a seco? — questiona Alice.
A garota, de doze
anos de idade, aparenta ter vinte anos ou mais. Sua pele, assim como a pele de
toda a população, é cheia de pequenas manchas e enrugada pela exposição ao
forte sol. Todos, homens e mulheres, têm os seus cabelos raspados para evitar o
acúmulo de sujeira, já que banho com água é permitido apenas uma vez ao ano –
exceto pelas autoridades públicas; estes tomam banho toda semana.
— Tio, o seu
aniversário está chegando... — comenta Lúcio. — O que vai querer?
— Nada, meu filho —
responde o homem, sorridente. — Não temos condições nenhuma de comprar
presentes. Estou satisfeito com o que tenho. E o meu aniversário é dia 31 de
dezembro, o dia em que podemos tomar o nosso banho anual. Tem presente melhor?
— É, não tem — o
jovem dá risada e termina de comer sua refeição.
Os três se levantam e
seguem para a praça comunitária. Toda a Concentração é rodeada por uma
fortaleza de trinta metros de altura; a razão de tanta proteção é a frequência
com que disputas acontecem em busca de recursos naturais – as Concentrações “guerreiam”
entre si para tentar conquistar mais recursos.
Na praça, um grupo de
pessoas despejam peças de roupas em um grande container – as roupas são
descartadas toda semana, já que não há água para lavá-las. Cinco crianças brincam
de pega-pega num banco de areia; todas carecas, com a pele enrugada e o corpo
magricela. Do outro lado da rua, um caminhão de areia jogava um pouco de seu
conteúdo nas fossas – os esgotos, todos, entupiram, já que a água não circula
mais; então, foram cavadas fossas para as necessidades fisiológicas da
população. Um pouco longe dali, cinco jovens são arrastados por homens do
exército – provavelmente estão sendo retirados da zona de ventilação por não
terem condições de pagar pelo ar que respiram.
— Lúcio! — Sandro, namorado
do jovem, chama-lhe. — Está indo para a fábrica?
— Oi, Sandro! — o
jovem beija o namorado enquanto segura suas mãos. — Sim... Vou só deixar o meu
tio e a Alice no dormitório.
— Oi, Sr. Pedro...
Oi, Alice! — Sandro acena para os dois.
— Oi! Filho, não
precisa... — diz Pedro. — A Alice me acompanha. Não é?
— Sim, pai! —
responde a garota.
— ‘Tá bom, então, tio
— Lúcio abraça o tio e a prima, e sai com o namorado rumo ao trabalho.
Assim que os dois
chegam à filial da Salíquido, indústria responsável pela dessalinização das
águas litorâneas do país, percebem uma grande movimentação na entrada do local.
Lúcio segue na frente
e encontra o seu patrão em uma espécie de palanque:
— E então? Quem vai
querer? — pergunta o homem, carrancudo. — Precisamos de alguém jovem para tal
feito.
— O que será que é
isso? — questiona Lúcio.
— Acho que eu sei... —
comenta Sandro esticando o pescoço. — Os líderes mundiais estão selecionando
pessoas de cada nação para um projeto meio secreto.
— “Meio secreto”? — Lúcio fica confuso.
— É — confirma
Sandro. — Sabe aquele Buraco de Minhoca que eles construíram há alguns anos no
espaço? Então... Eles enviaram um objeto para esse Buraco e, incrivelmente, o
objeto foi encontrado num sítio arqueológico nos Estados Unidos.
— Tipo uma viagem no
tempo? — pergunta Lúcio, surpreso.
— Isso! — concorda
Sandro. — E eles querem fazer isso, agora, com cartas! Querem enviar cartas
para o passado, para tentarmos reverter a nossa situação.
— E por que não
enviar uma pessoa? — interroga o jovem, curioso.
— A pessoa seria
estraçalhada, provavelmente — supõe Sandro. — Eles preferem não arriscar. Caso
as cartas não cheguem, ao menos não haverá vidas perdidas.
— Mas, isso não
criaria um desastre, caso alguém encontre essas cartas e “mude” o futuro? —
pergunta Lúcio.
— É um risco que
teremos de correr — diz Sandro. — Antes consertarem o futuro e a vida na Terra
ter um futuro do que continuar assim e sermos extinguidos em mais algumas
décadas ou séculos.
— Vocês! — o patrão
dos dois chama a atenção. — Vão se candidatar?
— Sr., meu tio não
pode se inscrever? — pergunta o jovem. — Ele viu tanto... Ele é o mais velho e
lúcido da nossa Concentração. Ele nasceu quando as coisas ainda tinham
salvação.
— Jovens, Lúcio — enfatiza
o homem. — Jovens. Quantos anos tem o seu tio?
— Ele faz cinquenta
anos em dezembro — responde Lúcio.
— Não podemos — diz o
patrão. — Vai ou não se candidatar? As cartas serão enviadas aos Estados Unidos
no último dia do ano.
— Até lá, eu decido —
diz Lúcio, entrando na fábrica com seu namorado.
24 de dezembro de 2070. São
Paulo, Brasil.
— O que você tem,
Lúcio? — pergunta Pedro, enquanto vê o sobrinho com a feição tristonha.
— Tio, ainda não
decidi sobre aquela carta — responde o jovem. — Eu não conheço nada, tenho só
vinte anos... Você devia escrevê-la... É o mais velho aqui da Concentração.
— O papai deve ser o
mais velho do Brasil — brinca Alice.
Os quatro riem;
Sandro está almoçando com a família.
— O Lúcio tem toda a
razão — concorda Sandro. — O senhor sabe como as coisas eram antes de chegar a
este ponto; algo que nem os líderes atuais viram.
— Não sei por que
esse negócio de escolher pessoas mais novas para cargos de liderança — comenta
Lúcio, insatisfeito.
— Sangue novo é bom,
filho — rebate Pedro.
— Já sei o que
podemos fazer! — sugere Sandro.
— Então diga! Temos
só uma semana para fazer isso — apressa o jovem.
— Sr. Pedro, pense no
que escreverá — pede Sandro. — Vou planejar tudo e trarei a carta na semana que
vem. Sua carta vai para aquele Buraco de Minhoca.
31 de dezembro de 2070. São
Paulo, Brasil.
O dia 31 de dezembro
não é mais comemorado como a véspera do Ano Novo no Brasil; é comemorado apenas
como o Dia Anual do Banho, um dia em que toda a população teria direito a dez minutos
de banho com água.
Os preparativos para
a data na Concentração SP estão a todo vapor: as autoridades já disponibilizaram
os chuveiros em local estratégico, próximo à Praça Central; o exército já está
a posto, a fim de evitar problemas com os cidadãos que ultrapassassem o tempo
limite no chuveiro.
Lúcio, Pedro e Alice
ainda estão em seu dormitório quando Sandro chega com uma surpresa:
— Conseguiu? —
pergunta Lúcio, ansioso.
— Meus pais me
deixaram isto aqui — Sandro mostra um envelope branco.
— Um envelope de
carta? — questiona Pedro. — Mas o que tem nele?
— Dentro dele —
corrige Sandro, abrindo o envelope.
De dentro do
envelope, Sandro retira um aparelho tecnológico que já não é utilizado há quase
três décadas por determinação dos líderes mundiais; um tablet.
— Um tablet! — conclui
Pedro.
— Para quê serve
isso? — questiona Alice, achando o objeto esquisito.
— É uma espécie de
computador — responde Pedro.
— Já vi o meu chefe
com algo parecido, mas bem menor — diz Lúcio.
— Era muito utilizado
até trinta anos atrás — revela o tio do jovem. — Mas as autoridades decidiram
nos isolar de tal tecnologia, talvez por medo, não sei. Mas isso pode se
conectar com outros computadores ao redor do mundo.
— Sim — confirma
Sandro. — E eu já sei como e em qual computador iremos nos conectar.
— Como assim? —
questiona Lúcio.
— Quando meus pais me
deram isto, eles pediram para que eu usasse apenas numa situação de extrema
importância, e deixaram instruções de como usar — explica o namorado de Lúcio. —
Como há poucos destes por aí, é fácil conectar-se a outros.
— E você vai conectar
a quem? — pergunta Pedro.
— À presidente —
revela Sandro. — À presidente do Brasil. Tenho certeza de que, ao ver sua
carta, ela vai elegê-la como a carta do Brasil.
— Ótimo! — diz Lúcio.
— Tio, você sabe escrever nisso aí? Precisamos achar um lápis...
— Não! — Pedro solta
um riso. — Não preciso de um lápis.
Ao ligar o objeto e
começar a escrever numa tela digital, os jovens ficam pasmos com a habilidade
de Pedro; mais pasmos ainda com a funcionalidade do objeto.
— Pronto — diz Pedro,
devolvendo o tablet ao namorado do sobrinho.
— Vou enviar — Sandro
digita alguns botões e envia o documento criado por Pedro à presidente do
Brasil, uma mulher que havia assumido o posto há pouco mais de dois anos, e
estava tentando mudar o país e dar melhores condições à população remanescente.
— Pronto. Agora é só torcer!
Os quatro seguem para
a Praça Central, onde tomarão o seu banho anual.
Lúcio tem esperanças
de que tudo aquilo mudaria; ele sabe que poderá esquecer toda a vida que teve
ou, até mesmo, simplesmente deixar de existir. Mas ele quer dar um futuro à
vida na Terra.
Ao término do dia, os
quatro se reúnem no dormitório e comemoram o dia. Comemoram, também, pois em um
pronunciamento público – assistido pelas telas na Praça Central – a presidente
acabou escolhendo a carta de Pedro para enviar ao Buraco de Minhoca.
Abril de 2002. São Paulo, Brasil.
O telejornal de
alcance nacional anuncia na televisão sobre uma carta encontrada numa expedição
ao Mar Morto. A carta data o ano de 2070, e relata a vida no futuro, com a
possível falta de água e outros recursos naturais:
“Olá a todos. Meu nome é Pedro, mas falo por toda a população de meu
país, Brasil. Estamos no ano de 2070, no mês de dezembro, no dia 31. Hoje,
completei os meus cinquenta anos de cidade – e jamais pensei que chegaria a
tal. Sou, provavelmente, o homem mais velho do país e, mesmo com essa idade,
aparento ter mais de oitenta anos.
Lembro
dos meus cinco anos de idade, quando as coisas ainda não haviam chegado a tal
ponto. Havia muitas árvores nos parques e nas praças, o fundo do orfanato em
que eu vivia tinha um lindo jardim florido e, lá, eu gastava quase uma hora no
banho. Agora, não temos mais água. Podemos tomar banho com água apenas uma vez
ao ano, e um banho de dez minutos; nos outros dias, nos limpamos com toalhas
umedecidas em azeite mineral. Por conta disso, todos precisamos raspar nossos
cabelos para evitar o acúmulo de sujeira.
Meu
pai adotivo lavava o carro com a água da mangueira; hoje, as crianças nem
acreditam que utilizávamos a água para isso. Também me lembro de muitos
cartazes e outdoors dizendo ‘Cuide da água’, mas ninguém nunca ligou pra isso – mesmo com os reservatórios
baixos, achávamos que a água jamais acabaria. Agora, os rios, barragens, lagos
e mananciais que não estão esgotados, estão contaminados.
Antigamente,
todo mundo dizia que a quantidade ideal de ingestão de água era de oito copos
por dia, isso para um adulto. Hoje, na minha idade, bebo apenas meio litro por
dia, quando é possível. Por conta disso, a aparência das pessoas é horrível:
todos muito magros, enrugados por causa da desidratação, manchas na pele
causadas pelos raios ultravioletas – a camada de ozônio está destruída. As
principais causas de morte são as infecções gastrointestinais (bebemos uma
grande quantidade de refrigerante em nossas refeições diárias, já que é uma
bebida sintética, tal qual nossos alimentos), dermatológicas e urinárias.
Aqui
no Brasil, houve uma grande desertificação.
Nossas
roupas são descartáveis, pois não há como lavá-las, então produzimos muito
lixo. E tivemos de voltar a utilizar as fossas porque as redes de esgoto estão
entupidas já que a água não circula mais.
O
mercado de trabalho teve uma mudança tremenda: muitos estão desempregados e,
quem trabalha, trabalha apenas nas indústrias de dessalinização, que pagam com
água potável em vez de dinheiro. Como se isso já não bastasse, muitos
trabalhadores têm seus baldes de água roubados no caminho de volta para casa ao
passar por ruas desertas.
Não
há como fabricar água, nem mesmo pela umidade do ar. O oxigênio está degradado
pela desflorestamento – e isso acabou diminuindo a capacidade intelectual das
novas gerações. Houve, também, alteração genética; os cientistas explicaram que
as crianças que nascem com mutações e deformações ficaram assim por uma mutação
nos espermatozoides.
Não
recebemos ajuda do governo; ou melhor, não recebíamos. O governo atual vem
tentando mudar a situação e agir mais pela população, buscando melhores
condições de sobrevida. Mas ainda há o exército, que abusa da autoridade e
acaba cobrando até o ar que respiramos: quem não pode pagar por isso, é
retirado das áreas ventiladas, as chamadas Concentrações, e acaba morrendo no
deserto árido. A expectativa média de vida é de trinta e cinco anos de idade.
Aqui
em São Paulo, estamos divididos em dez Concentrações; mas algumas guerreiam
entre si para conseguir mais água. A população da região metropolitana chegou a
um milhão de habitantes; e continua caindo.
Alguns
países são protegidos ferozmente por suas Forças Armadas, porque conseguiram
manter focos de vegetação e de água; e isso é motivo para guerra, certamente.
Aqui no Brasil, contudo, quase não há árvores porque quase nunca chove e, quando
chove, o pH é muito ácido.
Sempre
que minha filha me pede para contar-lhe histórias da minha infância, eu digo o
quão lindos eram os parques, os bosques, a chuva, as flores. Falo, até mesmo,
da alegria que tínhamos em entrar debaixo do chuveiro num dia quente; sobre
como era bom pescar e nadar nos rios; sobre como era bom beber água à vontade;
sobre como as pessoas ainda tinha saúde.
Quando
ela me pergunta por que a água acabou, não consigo não me sentir culpado, pois
sou da geração que ainda tinha água e não soube cuidar dela. Não levamos em
conta o número de avisos que nos deram. Hoje, nossos filhos e netos pagam um
alto preço e, sinceramente, não acredito que haverá vida na Terra em algumas
décadas ou, no máximo, em um século. Chegamos a um ponto irreversível.
Se,
algum dia, esta carta chegar até vocês, do passado, pensem e reflitam sobre os
recursos os quais possuem. Não é o planeta Terra que precisa de atenção, somos
nós. Nós é quem precisamos de atenção e de estar atentos aos recursos que o
planeta nos oferece. O planeta vai continuar existindo; nós, seres vivos, não.
Eu queria poder voltar no tempo, eu mesmo, e dar este aviso; como não posso,
espero que vocês consigam reverter essa situação. Obrigado!”
31 de dezembro de 2020. São
Paulo, Brasil.
Numa casa de parto da
Grande São Paulo, um casal mal vestido comemorava a chegada de seu filho:
— Márcio, olhe como
ele é lindo! — diz a mulher, com lágrimas nos olhos.
— É uma pena que
tenha nascido em meio a esta crise que estamos passando — comenta Márcio,
acariciando o bebê.
— Teremos mesmo de
colocá-lo num orfanato? — questiona a mulher.
— Patrícia, meu
amor... — Márcio dá a mão para Patrícia. — Não temos água para sustentar esta criança,
como ela crescerá? Os orfanatos ainda são mantidos pelo governo e recebem toda
a ajuda necessária. Lá, ele poderá crescer forte e saudável.
— Por que não
soubemos cuidar de tudo o que Deus nos deu? — questiona a mulher, consternada.
— Meu amor, será o
melhor para ele — diz Márcio. — Não se culpe. Como ele vai se chamar?
— Pedro — responde
Márcia. — Ele será forte como uma rocha, tão duro quanto uma pedra... Porque
ele vai precisar dessa força para sobreviver neste mundo sem água. E, por isso,
o nome dele vai ser Pedro.