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sábado, 27 de setembro de 2014

Conto: Lúcido


            Aquele era o pior dia da vida de Rebeca. O dia 10 de setembro de 2014 marcaria a sua existência. Sua mãe, o único membro da família com quem convivia e tinha laços, havia morrido naquela madrugada. As preces, as visitas, as suplicas, as quimioterapias, nada disso ajudara a mãe dela vencer o câncer.
            Rebeca estava furiosa com Deus e o mundo. Nem um e nem outro se importava com o fato da morte de sua mãe. Nem um e nem outro se importou com a vida de sua mãe. “Que Deus é este que abandona quem mais tem fé?”, ela se perguntava enquanto vestia a roupa. Estava tudo preparado para o velório e o enterro. O velório seria às vinte horas, e o enterro aconteceria na manhã seguinte. A jovem pegou sua bolsa e a chave do carro, saindo de seu apartamento. Dali a alguns minutos, ela teria de encarar as pessoas, aquelas mesmas pessoas que viraram as costas para sua mãe.
            Já no velório, Rebeca não abandonou o caixão por um segundo. Cada pessoa que se aproximava ficava sem jeito, pois percebia a revolta na expressão da menina. Não demorou muito e a sala do velório estava lotada. Tanta gente ali, para velar o corpo de sua mãe, e nenhuma para visitá-la quando ainda viva. A jovem conhecia todos ali e fez questão de olhar cada um nos olhos.
            Após algumas horas, Rebeca ouviu o som de correntes se arrastando pelo chão. Ela olhou a sua volta, mas não viu nada incomum. Ninguém portava correntes. Mas ela percebeu a presença de um homem desconhecido. Era um homem alto, com a pele muito branca, o cabelo preto, curto e arrepiado. Seus olhos eram quase de um tom lilás, e fitavam-na diretamente. Ele vestia uma espécie de sobretudo de cor creme, sobre uma calça social creme e uma camisa branca. Por um momento, Rebeca pensou ter visto uma corrente pendendo sobre a coxa do homem e arrastando no chão, mas quando olhou novamente não viu nada.
            A menina se sentiu tentada a falar com o homem misterioso, mas não queria deixar a sua mãe sozinha naquele caixão. Como se tivesse lido os seus pensamentos, o homem se levantou e caminhou até o caixão, ficando diante da jovem. Eles ficaram calados e olhando um para o outro, por cerca de vinte minutos, como se estivessem em um transe. Então, sem falar nada, o homem se retirou da sala.
            Como que tomada por um impulso incontrolável, Rebeca seguiu o homem. As pessoas que estavam no velório acharam esquisita a atitude da menina, que estivera ao lado da mãe a cada segundo. Rebeca o encontrou parado em um cruzamento de duas ruas, em frente ao velório, olhando para o céu estrelado. “Preciso saber quem ele é. Sei que ele pode ajudar.”, pensou a menina. E ela foi até o homem.
            — Oi? – disse a menina, preocupada.
            O homem voltou o seu olhar para Rebeca. Ele tinha uma beleza única, era tentador. Mas provocava, ao mesmo tempo, medo e angústia.
            — Quem é você? – questionou Rebeca. As palavras quase não saíam por seus lábios. Ela se aproximou aos poucos.
            — A pergunta correta é: “quem é você?” – devolveu o homem, sorrindo, com um olhar enigmático.
            — Quem sou eu? – estranhou a menina, sem compreender.
            Novamente, o barulho de corrente se arrastando pelo chão voltou a ser ouvido por Rebeca. Dessa vez, a menina viu a corrente amarrada nos pulsos do homem e caindo por suas pernas, até chegar ao chão.
            — Somos prisioneiros da ignorância – respondeu o homem. — Aquele que permitiu que vivêssemos, não permitiu que enxergássemos. Ele nos quis cegos e escravos de Sua própria vontade, de Seus caprichos. Ele criou a luz, mas não permitiu que cada criatura vivente pudesse acender a sua própria chama interior.
            — De onde você é? – perguntou Rebeca, sentindo uma inquietação.
            — Sou de onde eu não via as estrelas, mas via das estrelas – revelou o homem, segurando a corrente. — Fui arremessado no profundo abismo, na escuridão, porque exigi que a lucidez fosse um direito de cada ser. Mas é chegada uma Era de Luz. A Era dos Lúcidos. Os homens querem ver, e os homens poderão ver! A luz sempre esteve com vocês, vocês apenas se esqueceram disso por conta da vontade d’Aquele que anseia ser o único.
            Rebeca sentiu sua visão embaçar e, depois, focalizar novamente. Agora, ela enxergava o que antes não podia. Era uma sensação inédita, como se fosse parcialmente cega por toda a sua vida. O luar permitiu que a menina enxergasse a sombra do indivíduo. Em sua sombra, asas se expandiam ao lado de seu corpo. Rebeca sentiu uma corrente de energia percorrer todo seu corpo, como se uma explosão liberasse muita energia acumulada.
            — Agora você compreende? – perguntou o homem. — Esta é a visão que é sua por direito. Eu, como o Portador da Luz, não descansarei enquanto todas as criaturas deste planeta alcancem o lugar que lhes é de direito.
            O homem estendeu a mão para Rebeca e sorriu, por fim. A menina segurou sua mão, sem hesitar, e seguiu pela rua até desaparecerem da vista das pessoas que estavam no velório.

            Aquele dia marcara a existência de Rebeca. Afinal, não fora o pior dia de sua vida. Havia sido o melhor. Fora o dia em que passou a enxergar com os olhos da razão.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Conto: O Fruto do Conhecimento


A noite era fria. Um vento úmido e gelado corria pelo quarto. Levante-me para fechar as janelas que ainda estavam abertas. Fechando a janela da sala, percebi algo ao lado de fora. Lá em cima, no alto das Colinas Gêmeas, havia uma silhueta perambulando de um lado para o outro, debaixo da Árvore Santa.
            Então, a figura que andava parou. Estava muito escuro para conseguir enxergar, mas parecia que estava olhando em minha direção. Senti um arrepio na nuca. Era como um breve suspiro em minhas costas. Olhei para trás, aturdida, mas não havia ninguém – era só uma má-impressão. Quando voltei a olhar para as Colinas Gêmeas, a silhueta não estava mais lá. Somente a Árvore Santa, com seus galhos e folhas balançando com o forte vento que tomava conta de tudo.
            Fechei as cortinas e voltei para o meu quarto. Enquanto me arrumava debaixo das cobertas, senti um breve aroma. Era cedro. Vinha da Árvore Santa, provavelmente. Bebi um gole do chá de gengibre e apaguei a luminária.
            Estava um silêncio infinito.
            Eu não ouvia nada além daquele zumbido interior, de quando tudo está quieto e seu ouvido fica tentando localizar algum som. Fechei os olhos. Enfim, o meu corpo cede ao cansaço e eu durmo. Ou, ao menos, acredito estar dormindo.
            Comecei a enxergar um foco de luz vindo da cozinha. De imediato, pensei que fosse um sonho. Levantei-me e fui até a claridade, que se apagou quando me aproximei. Foi aí que percebi que eu estava, de fato, acordada, na cozinha. Fiquei meio assustada. Aquilo nunca havia acontecido. Não sou sonâmbula.
            Enquanto voltava ao quarto, senti novamente aquele aroma. Cedro.
            Abri a janela da sala e olhei para as Colinas Gêmeas. A Árvore Santa agora estava estável. Já não ventava mais. Então de onde teria vindo o cheiro de cedro?
            Para meu espanto, enquanto eu pensava naquela hora da noite, alguém bateu à porta de casa. Fiquei tensa. Já passavam das duas horas da manhã e eu não esperava por visitas. Pensei na silhueta que caminhava no alto das colinas. Voltei para o meu quarto e fechei a porta, mas continuavam a bater na porta da sala, insistentemente.
            Destranquei a porta do quarto e peguei a primeira coisa que vi na frente que, por sinal, era um guarda-chuva. Caminhei em passos lentos e silenciosos até a sala. Perguntei quem estava batendo, mas não ouvi resposta. Perguntei mais uma vez, e nada. Então, sentei-me no sofá e ali fiquei.
            O aroma de cedro se intensificou. Junto, um cheiro de queimado se alastrou por minha casa. Corri até a janela da sala e vi o que acontecia. A Árvore Santa estava em chamas. Alguém havia iniciado um incêndio naquela árvore gigantesca. Seus galhos, queimados, caíam enquanto as folhas secavam.
            Quem estava ao lado de fora de casa voltou a bater na porta. Dessa vez, impacientemente. Parecia que minha porta ia cair a qualquer instante. Segurei firme o guarda-chuva. Perguntei mais uma vez quem era. Mas não houve resposta. Decidida, e com muito medo, abri a porta. E não havia ninguém. Ninguém. Coloquei a cabeça para fora, olhando de um lado para o outro e não encontrei vestígio de que havia alguém ali.
            Peguei meu celular e disquei o número da polícia. Assim que atenderam, falei que havia colocado fogo na Árvore Santa, e a atendente ficou surpresa. Fui informada de que deveria ligar para os bombeiros, mas expliquei que não era apenas aquele o motivo de minha ligação. Contei que havia alguém batendo na porta de casa e que estava escondido lá fora. Ela ia dizer algo quando a ligação caiu. Tentei discar novamente, mas o meu celular estava sem sinal. Tentei pelo telefone fixo, mas não havia linha. Tentei ligar o notebook, mas ele não ligava de jeito nenhum.
            Entrei em desespero e comecei a gritar por socorro.
            Eu assistia a árvore morrer a cada segundo. Era desesperador. E eu morreria também, dependendo de quem estivesse lá fora. Chorei como criança. Então, vi que o fogo apagou magicamente. Em seguida, começou a cair um temporal. A fumaça do que havia se queimado subia e se misturava ao vento úmido da chuva. Era uma cena assustadora. E ouvi, novamente, alguém bater na porta.
            Não hesitei. Busquei uma faca na cozinha e fui até a sala. Em frente à porta, abri-a com cuidado. Havia um homem de meia-idade, com cavanhaque e vestido com roupas de frio. Ele mantinha os olhos fixos nos meus, como se desejasse ver o meu interior.
            Perguntei, com a voz trêmula, quem ele era e o que ele queria. Ele sorriu. Foi um sorriso bonito, mas carregava um ar de mistério. Ele fez menção de entrar na sala, quando levantei a faca, ameaçando-lhe. Mais uma vez, ele sorriu. Apontou para a janela que dava vista para a Árvore Santa, olhando o resto da árvore milenar. Finalmente, ele falou. Ele me disse que aquilo não era nada. Aquilo não era nada comparado ao que podia fazer com todo o seu poder. Tencionei os meus ombros, amedrontada. Mas ele disse que nada faria contra mim, pois eu já havia feito. Questionei-lhe sobre o que se referia, e ele riu mais uma vez. Senti um impulso tomar meu braço e lancei a faca que eu segurava contra o seu peito.
            Para a minha surpresa, e pânico, nada aconteceu.
            Ele continuou sorrindo. E ali eu percebi, era um sorriso maléfico, perverso.
            Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia quem ele era e nem o que ele queria. Eu não sabia o que viria depois, nem imaginava o rumo que minha vida tomaria depois daquela madrugada. Perguntei, de novo, quem ele era.
            Dessa vez, ele respondeu. Mas eu preferia nunca ter ouvido aquela resposta.
            “Sou aquele que não mente. Sou aquele que quer apenas estar entre a humanidade. Sou aquele que quer ser humano e, por desejar ser humano, fui arremessado de meu posto ao lado de meu pai.” Foi o que ele me respondeu. Não era brincadeira. Não era uma piada. Aqueles olhos não eram de brincadeiras.
            Quando me dei conta, eu estava me desfazendo em lágrimas. Eu chorava como quem vê a morte à sua frente e não quer morrer. Eu chorava como quem perde o pai, a mãe. Eu chorava como quem chora quando não sabe o seu destino. E ele continuava ali, sorrindo e me observando.
            Perguntei, pela última vez, o que ele queria comigo. E ele disse. Disse que queria me mostrar a verdade. Que ele era a verdade, e não o que toda a humanidade acreditava que fosse. Ele me disse que jamais tirou a vida de alguém por mera demonstração de poder, ou para castigar, ou para satisfazer o seu ego. Não. Ele agia apenas por vingança. E ele agiria vingativamente até o fim, quando pudesse retornar ao seu posto e dizer ao seu pai que tudo o que ele queria era ser amado, como os humanos foram amados.
            Ali, notei o quão tola fui de questioná-lo e desejar saber sobre ele. Minha vida mudou dali em diante. Ele foi embora antes que eu pudesse perguntar ou falar qualquer outra coisa. Ele desapareceu. Nunca mais o vi.
            Mas eu ainda o sinto. Sinto sua presença como jamais senti.
            Agora, tenho um turbilhão de confusões em minha mente. Minha vida se danou desde então. Agora eu sei a verdade. Eu sei as duas verdades. E vou carregá-las até o fim de meus dias, tentando saber qual é a verdade, de fato. E isso me consome. Isso me angustia. Há dias em que desejo morrer, apenas para ter a certeza de que aquele homem estava sendo verdadeiro ou não.
            Fui tomada pelo desejo de saber a verdade. Fui tomada pelo conhecimento.

sábado, 31 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte final


AS RAÍZES DA ALMA


Serra da Cantareira, Mairiporã, Brasil. Maio de 2014.

A vida de Breno havia tomado rumos que, até então, desconhecia. Tudo porque havia decidido agir como herói e ajudar uma moça em perigo – ou que parecia estar em perigo. Havia momentos em que interpretava o surgimento de Régia em sua vida como uma maldição, que trouxe tudo abaixo. Em outros, o garoto achava que ter conhecido a índia o libertou de sua prisão, a prisão interior.
            Estava ali, dentro de uma rocha encantada pela luz da lua, com uma índia e outra mulher misteriosa. O que mais viria a seguir, ele não fazia ideia e temia pensar.
            — Bem, acho que quer, antes de tudo, saber quem é a Naiá, de fato — supôs a mulher da rocha. — Não é?
            — Naiá? Se está falando da Régia, sim. Seria legal — respondeu Breno, olhando sem jeito para a índia.
            — Cari, eu prometi que contaria — disse Régia.
            — Então pode contar, Naiá — disse a mulher. — Vou lá fora ver se está tudo bem.
            A mulher desapareceu na escuridão, como mágica. Breno voltou o olhar para a índia.
            — Bem... — Régia sentou-se diante de Breno. — Eu tenho, digamos, alguns séculos de existência. Nasci em 1500, logo que os portugueses chegaram nesta terra. Fui batizada com o nome de Naiá. Quando eu era moça, exatamente como sou hoje, eu me vi fascinada pela lua. Toda noite eu saía da floresta para vê-la, escondida de meus pais e da tribo.
            Breno olhava incrédulo para a índia, embora não estivesse desatento, não havia tirado o olho de Régia.
            — Certa noite, aproximei-me de um rio e vi a lua nele. Estava tão próxima — as memórias da índia pareciam vir freneticamente. — Fiquei extasiada com aquilo. Vi uma oportunidade de chegar até ela, nadando. Sem pensar, saltei na água em direção à lua. Mas era apenas um reflexo, e eu não sabia. Morri ali mesmo, afogada.
            — Morreu? — Breno questionou, indignado.
            — Sim. Morri — confirmou a índia. — Mas Jaci, a lua, salvou a minha añã, a minha alma. Transformou o meu corpo em uma bela flor das águas e resgatou minha alma. Desde então, tenho Jaci como uma mãe e vivo com ela.
            — A lenda da Vitória-Régia! — lembrou-se o garoto. — Você é a planta!
            — Não — a índia soltou um riso. — Eu sou um espírito. A planta foi originada a partir de meu corpo físico. Não costumo utilizar o nome de Vitória Régia. Apenas Régia. E Naiá, como viu minha mãe chamar. Bem, é isso.
            — Uau! — Breno estava tentando se manter calmo, mas uma corrente elétrica percorria o seu corpo. — Eu diria que isso é folclore. Mas estou vivendo tudo isso... É impossível!
            — Eu sei que parece loucura — concordou Régia. — Mas não é.
            — E a Jaci? — indagou o rapaz. — Se ela é a lua e tem poder para salvar sua alma, ela é uma deusa?
            — Não é bem assim — Jaci surgiu novamente da escuridão, surpreendendo o garoto. — Não nos reconhecemos de tal forma. Acreditamos que essa palavra acabaria nos tornando seres imponentes, autoritários e onipotentes. E não somos isso.
            — Não são? — estranhou Breno. — Então você não é a única?
            — Mas é claro que não — a mulher riu. — Somos muitos. Mas somos divindades. Fomos criados por uma energia muito maior para cuidarmos da Terra e auxiliarmos vocês, mortais, em suas experiências terrenas.
            — Deus criou vocês? — questionou Breno.
            — Não — respondeu Jaci, com um ar de mistério. — Quem criou tudo o que há no Universo, quem criou toda a vida existente, foi Nhanderuvuçu.
            — Quem? — aquele nome pareceu um xingamento para o menino.
            — Também conhecido como Nhandejara, ou Nhamandú, meu pai é a energia maior e criadora do Universo — explicou Jaci. — É energia que nos ronda, que sempre existiu e sempre existirá. No princípio de tudo, criou as duas energias secundárias, uma positiva e a outra negativa, as quais ele chamou de añã, ou alma. Juntou as duas e formou añãdeci, a matéria. Então ele criou a água, a terra, as vegetações, os animais, e nos criou para tomar conta de cada parte.
            — E o Mão de Luva? — questionou Breno. — O que ele tem a ver com tudo isso?
            — Bem, ele era um mortal — contou Jaci. — Ele nasceu por volta de 1740. Tornou-se garimpeiro e seu nome era Manoel. Ele era um português muito ambicioso, roubou alguns dos tesouros que encontrou e os escondeu em grutas por todo o país. Mas ele não apenas escondia os tesouros, ele os oferecia para uma divindade muito perigosa em troca de riqueza eterna, de vida longa.
            — Uma divindade do mal? — questionou Breno.
            — Mais ou menos — disse Jaci. — Jurupari é meu irmão e também foi criado por meu pai. Mas ele se alimenta do mal, é conhecido como O Senhor da Escuridão. Ele mata muitos pobres coitados em seus pesadelos, pois eles não conseguem acordar e nem gritar, morrendo asfixiados.
            — Então ele é mau, sim! — insistiu Breno.
            — Breno... — Régia chamou a atenção do garoto.
            — Desculpe... — o menino percebeu que estava falando do irmão da mulher.
            — Enfim... — prosseguiu Jaci. — Manoel entregou a alma para Jurupari, que cobrou quando a hora chegou. Em 1786, quando foi aprisionado por seus crimes em Vila Rica, local hoje conhecido como Ouro Preto, Manoel tentou se suicidar. Mas Jurupari surgiu oferecendo algo melhor. Ofereceu transformá-lo em um espírito para cumprir as ordens da divindade para a eternidade.
            — Então o Mão de Luva é um capanga do demônio? — Breno pareceu aterrorizado.
            — Jurupari não é um demônio — repetiu Jaci.
            — Certo. Desculpe — pediu Breno. — Mas é que esse cara está atrás de mim!
            — O Mão de Luva fundou uma facção. A Organização Anhangüera — revelou Jaci. — Uma facção que deseja destruir todos os seres espirituais e possuir um dos maiores tesouros do mundo espiritual, a Fênix. Ele nunca foi visto desde então, mas é temido pelos animais e pelos seres espirituais. Até alguns de meus irmãos têm medo dele, por ele trabalhar para Jurupari.
            — A Fênix? — Breno balançou a cabeça e passou a mão no rosto. — O pássaro de fogo?
            — Ela não é um pássaro de fogo — corrigiu Jaci. — Angra, minha irmã, surgiu de uma centelha divina durante o processo de criação de nosso pai. Ela é a divindade do fogo. E, por ser tão agradecida ao nosso pai, ela arrancou uma das partes mais importantes do seu corpo espiritual, o coração, e modelou uma criatura para presenteá-lo.
            — Ela fez o quê? — o garoto ficou pasmo. — Ela arrancou o próprio coração para dar de presente?
            — Nosso coração não é o nosso órgão vital — explicou Jaci, imediatamente. — É o nosso órgão de sentimentos. Então ela não morreu por isso... Mas foi um grande gesto, sim. Essa criatura que ela moldou foi a Fênix, que é um pássaro assexuado. Feito a partir do coração em chamas de Angra, ele é invulnerável ao fogo, podendo ser queimado apenas pelo fogo emitido de seu próprio coração, em um processo de autocombustão.
            Breno sentiu um calafrio no momento.
            Tentou relacionar a invulnerabilidade ao fogo da Fênix com a sua. E, em seguida, achou aquilo um absurdo, afastando o pensamento. Aquilo, sim, era pura idiotice.
            — As lágrimas da Fênix podem curar qualquer ferida ou doença. Sua força permite carregar peso seis vezes maior que o seu corpo — contou Jaci. — O pássaro possui um ciclo de vida de cem anos e quando sente que está prestes a morrer, prepara uma pira de ramos de canela, sálvia e mirra, e então se incendeia.
            — Mas aí ele renasce, não é? — Breno se esqueceu, por um momento, que estava falando de um mito. Para ele, tudo aquilo era real agora.
            — Sim — afirmou Jaci. — A Fênix sempre renasce a partir de suas cinzas, demonstrando a sua imortalidade e o renascimento espiritual. Então, começou a surgir a fala de que aquele que comer da carne da Fênix será imortal. Outros dizem que as cinzas da Fênix podem levantar até os mortos. Mas o pássaro está desaparecido desde seu último ciclo de vida, que finalizou há dezoito anos.
            — A Fênix é um dos seres espirituais mais poderosos do Universo — comentou Régia.
            — Estou vendo... — disse Breno. — Olha... Se isso tudo é real... Então o Mão de Luva deve estar procurando a Fênix para conseguir a imortalidade, isso? Mas ele já não é um espírito eterno?
            — Não — respondeu Jaci. — Jurupari deu trezentos anos para ele cumprir suas ordens. E o prazo está vencendo. Após isso, seu espírito irá se incendiar e desaparecer para sempre. Por isso ele busca a Fênix. Ele poderá utilizar a imortalidade para si e Jurupari planeja erguer os mortos.
            — Todos os mortos? — perguntou Breno. — Mas eles não estão sem suas almas?
            — Exatamente — confirmou Jaci. — Imagine o que um homem é capaz de fazer sem sua alma. Imagine todos os homens que já morreram... Um exército de desalmados.
            Breno colocou as mãos no rosto e deu um profundo suspiro.
            Ele ainda não compreendia o seu papel em tudo aquilo. Não entendia o propósito de Régia em ter levado ele até ali, para aquela divindade da lua contar-lhe tudo sobre o que ele achava ser puro folclore.
            — Olha, vai parecer um pouco ignorante da minha parte... — avisou o garoto. — Mas o que tenho a ver com tudo isso?
            Régia e Jaci sorriram juntas, o que deixou o menino ainda mais confuso.
            — Você tem uma marca em seu braço, não tem? — adivinhou Jaci.
            — Sim, uma mancha... — respondeu Breno. — Mas todo mundo acha que é uma tatuagem, porque é tão bem definida.
            — E você tem um segredo, não tem? — perguntou Jaci, enigmática.
            — Segredo? — ele ficou surpreso. Não imaginava como ela podia saber sobre isso.
            — Sobre o fogo — cutucou Régia.
            — É. Tenho — disse Breno. — Eu meio que sou invulnerável ao fogo...
            — Breno, você tem uma história especial — revelou Jaci. — Sei que sua vida tem sido muito difícil e repleta de provas. Mas você precisa acreditar que um futuro melhor o espera.
            — Não entendo, Jaci... — o menino tentava não olhar para a divindade.
            — Os seus pais se propuseram a algo muito inusitado — disse Jaci. — Há dezoito anos, quando faziam uma pesquisa na Amazônia, foram procurados por alguém. Descobri isso muito recentemente, por isso pedi a ajuda de Régia. Angra, a criadora da Fênix, estava muito preocupada com o destino de sua ave, o presente que dera ao nosso pai, por conta dos planos mirabolantes de Jurupari. Ela decidiu, então, fazer algo inédito. Ela quis transferir o espírito da Fênix para o corpo de um humano.
            — E como ela conseguiu isso? — indagou Breno. — Isso mataria o humano, não?
            — Sim, isso faria com que o humano virasse pó, literalmente — concordou a divindade lunar. — Mas ela foi esperta. Há algum tempo, duas divindades experimentaram também algo novo.
            Jaci riu por um momento, demonstrando vergonha.
            — Eu lancei meu espírito na Terra, e consegui entrar no corpo de uma humana. É claro que tive que reduzir o meu nível de divindade para não destruí-la, mas consegui — revelou Jaci. — E uma outra divindade, Guaraci, fez o mesmo com o corpo de um humano.
            — Jaci e Guaraci são amantes antigos — Régia posicionou Breno na história. — Guaraci é o responsável pelo brilho do sol. Sabe aquela velha história, de que o sol e a lua jamais se encontravam?
            Breno tentou segurar o riso, imaginando o que aquilo significava.
            — É. Constrangedor, eu sei — disse Jaci. — Eu e Guaraci nos encontramos na Terra, em corpos humanos. E você pode imaginar o que aconteceu.
            — Então, provavelmente Angra pensou em inserir o espírito da Fênix naquele que seria o filho de duas divindades, ainda que incorporadas em humanos, pois só assim o corpo físico aguentaria o poder da ave? — supôs o garoto.
            — Exatamente — concluiu Jaci.
            — E onde eu entro? — questionou Breno. — Esse alguém que procurou meus pais na Amazônia foi Angra?
            — Sim, Angra os procurou — respondeu Jaci. — Sua mãe estava esperando um bebê, e nem sabia disso ainda. Foi Angra que contou.
            — Meus pais conheceram vocês, então? — estranhou Breno.
            — Foram os corpos de seus pais que eu e Guaraci “possuímos” — revelou Jaci, sem jeito. — É claro que, depois, contamos toda a verdade a eles, que receberam tudo isso muito bem. Foi inacreditável.
            — Eu era a criança que minha mãe carregava na barriga quando Angra foi procurá-la — comentou Breno.
            — Sim — respondeu Jaci. — Eu havia contado à Angra o que acontecera e ela ficou ansiosa para conhecer os seus pais.
            — O que você quer dizer com isso, Jaci? — mais uma vez, o mundo de Breno pareceu rodar.
            O garoto sentiu as pernas amolecerem. Por sorte, estava sentado, caso contrário cairia. Régia tentou se aproximar, mas o garoto fez um gesto pedindo que ela ficasse onde estava.
            Breno desejou acordar e perceber que tudo aquilo não passava de um sonho. Quis voltar para sua prisão interior. Queria poder fugir. A raiva que tomou conta do seu corpo era tão grande, pois começou a pensar que seus pais tivessem morrido apenas por sua causa. Se aquilo fosse verdade... Ele mal conseguia formular os pensamentos.
            — Breno, fique calmo! — gritou Régia, apavorada.
            Uma chama começou a se alastrar das mãos e dos pés do garoto em direção ao centro de seu corpo. Ele percebeu e ficou assustado.
            — Fique calmo, criança — suplicou Jaci. — Se você continuar assim, não poderemos ajudá-lo!
            Régia, sem medo, colocou as duas mãos no rosto do menino, que ardia. Ela retirou as mãos por um instante, sentindo o ardor em suas palmas, e então voltou-as para o rosto do garoto, tentando acalmá-lo.
            — Eu estou aqui, contigo — disse a índia, serenamente. — Fique calmo, tudo vai ficar bem, eu prometo.
            O fogo já chegava aos ombros e às coxas quando as chamas começaram a se apagar. Régia soltou um suspiro de agradecimento. Jaci olhou para cima e agradeceu.
            Breno tremia. Ele se sentou novamente, com a ajuda de Régia, que segurava a sua mão. Percebeu que Jaci o olhava profundamente, transmitindo uma calma intensa.
            — Jaci... — já recuperado, o garoto fitava a divindade da lua, como que implorando por uma certeza. — Isso quer dizer que...

            — Isso, Breno — Jaci acenou com a cabeça. — Você é a Fênix.

sábado, 4 de maio de 2013

Sou errado. Sou errante.



Mente esgotada. Corpo exausto. Espírito abalado. Suas forças estavam exauridas. Não entendia o pretexto para frequentes discussões, sempre ocasionadas por motivos tão levianos. Suas lágrimas tentavam escorrer, mas seu orgulho, seu medo, as impediam.
Seu coração, apertado, doía. Sua alma ansiava por mudanças. Raiva, indignação, desespero... No meio daquele turbilhão de sentimentos ele mal conseguia distinguir cada um. O mais nítido, aparentemente, era a decepção. Estava profundamente decepcionado consigo e com o mundo. Na mesma proporção em que a vida lhe trouxera bons frutos, estava também lhe mostrando os seus vermes.
Apesar das pessoas à sua volta, estava mergulhado no mais profundo abismo, sozinho e apavorado. Sentia a incerteza tomar conta de si enquanto a dor somente evoluía. Quis gritar, mas algo aprisionava a sua voz. E o choro não veio, ainda não. Olhava ao redor, enxergava a grama, mas não via a esperança. Estava com medo de todos aqueles sentimentos, era como se tudo que conseguira alcançar escoasse por entre seus dedos.
Talvez a solução estivesse nisso. Nunca pensara, verdadeiramente, que um dos motivos de sua existência não era 'ter', e sim completar as pessoas. Sua cabeça doía, parecia que estava a ser comprimida. O medo ainda lhe assombrava. Em sussurros, desejava a mudança, mas não entendia como poderia mudar ainda mais. Se deu conta de que, em toda a sua vida, mudou para os outros deixando de lado a sua própria essência - perdendo-na. Mais uma vez, o medo regressou.
Por um breve segundo pensou em desistir de tudo. Mas, por fim, conseguiu se recordar de seu maior valor: o amor - amava as pessoas de modo ímpar. Afastou, então, aquele pensamento. Sua existência se baseava no propósito de amar as pessoas - mesmo aquelas com seus crimes ou segredos obscuros - e mostrar o quanto elas são importantes umas para as outras. Não mudaria, não novamente. Mas tentaria se adaptar às dificuldades da vida e mostrar a sua verdadeira alma. Iria mostrar quão humano era, e digno de cometer erros, seja os quais fossem, tal como qualquer outro humano. Mostraria que um erro não é maior, ou menor, que o erro do outro, mas que todos são erros - seja por quem for cometido.
Respirou. Refletiu. E agradeceu ao Universo por existir, por ser humano!

Conto - Alvura renunciada



Solitário, o pequeno menino brincava na soleira da porta de sua casa. Na verdade, estava acompanhado por uma boneca, de olhos profundos, um ventríloquo. A feição do ventríloquo era melancólica, sofrida. Já o menino tinha uma aparência amarga, carregava um semblante sério, pesado, mesmo durante a brincadeira.
A casa era afastada de todas as outras da rua. Ninguém sabia, mas o menino vivia sozinho, não tinha irmãos, pais, tampouco amigos. Assim, exteriorizava toda a solidão de sua alma naquele lúgubre olhar. Sua única companhia, sua única amiga verdadeira, que jamais o abandonara, era aquela boneca.
E os vidros da porta refletiam um segredo obscuro. O interior da casa encobria uma desgraça. Aquele solitário menino era prisioneiro de sua própria perversidade. O abandono lhe tornara um facínora, angustiador, uma criança tenebrosa.
Mas não havia salvação, segundo seus demônios interiores. E apenas aquela boneca conseguia compreender a sua alma, seus anseios, ninguém mais. Nenhuma daquelas crianças que foram até ele puderam entendê-lo e, portanto, ele as resgatou.