sábado, 27 de setembro de 2014

Conto: Lúcido


            Aquele era o pior dia da vida de Rebeca. O dia 10 de setembro de 2014 marcaria a sua existência. Sua mãe, o único membro da família com quem convivia e tinha laços, havia morrido naquela madrugada. As preces, as visitas, as suplicas, as quimioterapias, nada disso ajudara a mãe dela vencer o câncer.
            Rebeca estava furiosa com Deus e o mundo. Nem um e nem outro se importava com o fato da morte de sua mãe. Nem um e nem outro se importou com a vida de sua mãe. “Que Deus é este que abandona quem mais tem fé?”, ela se perguntava enquanto vestia a roupa. Estava tudo preparado para o velório e o enterro. O velório seria às vinte horas, e o enterro aconteceria na manhã seguinte. A jovem pegou sua bolsa e a chave do carro, saindo de seu apartamento. Dali a alguns minutos, ela teria de encarar as pessoas, aquelas mesmas pessoas que viraram as costas para sua mãe.
            Já no velório, Rebeca não abandonou o caixão por um segundo. Cada pessoa que se aproximava ficava sem jeito, pois percebia a revolta na expressão da menina. Não demorou muito e a sala do velório estava lotada. Tanta gente ali, para velar o corpo de sua mãe, e nenhuma para visitá-la quando ainda viva. A jovem conhecia todos ali e fez questão de olhar cada um nos olhos.
            Após algumas horas, Rebeca ouviu o som de correntes se arrastando pelo chão. Ela olhou a sua volta, mas não viu nada incomum. Ninguém portava correntes. Mas ela percebeu a presença de um homem desconhecido. Era um homem alto, com a pele muito branca, o cabelo preto, curto e arrepiado. Seus olhos eram quase de um tom lilás, e fitavam-na diretamente. Ele vestia uma espécie de sobretudo de cor creme, sobre uma calça social creme e uma camisa branca. Por um momento, Rebeca pensou ter visto uma corrente pendendo sobre a coxa do homem e arrastando no chão, mas quando olhou novamente não viu nada.
            A menina se sentiu tentada a falar com o homem misterioso, mas não queria deixar a sua mãe sozinha naquele caixão. Como se tivesse lido os seus pensamentos, o homem se levantou e caminhou até o caixão, ficando diante da jovem. Eles ficaram calados e olhando um para o outro, por cerca de vinte minutos, como se estivessem em um transe. Então, sem falar nada, o homem se retirou da sala.
            Como que tomada por um impulso incontrolável, Rebeca seguiu o homem. As pessoas que estavam no velório acharam esquisita a atitude da menina, que estivera ao lado da mãe a cada segundo. Rebeca o encontrou parado em um cruzamento de duas ruas, em frente ao velório, olhando para o céu estrelado. “Preciso saber quem ele é. Sei que ele pode ajudar.”, pensou a menina. E ela foi até o homem.
            — Oi? – disse a menina, preocupada.
            O homem voltou o seu olhar para Rebeca. Ele tinha uma beleza única, era tentador. Mas provocava, ao mesmo tempo, medo e angústia.
            — Quem é você? – questionou Rebeca. As palavras quase não saíam por seus lábios. Ela se aproximou aos poucos.
            — A pergunta correta é: “quem é você?” – devolveu o homem, sorrindo, com um olhar enigmático.
            — Quem sou eu? – estranhou a menina, sem compreender.
            Novamente, o barulho de corrente se arrastando pelo chão voltou a ser ouvido por Rebeca. Dessa vez, a menina viu a corrente amarrada nos pulsos do homem e caindo por suas pernas, até chegar ao chão.
            — Somos prisioneiros da ignorância – respondeu o homem. — Aquele que permitiu que vivêssemos, não permitiu que enxergássemos. Ele nos quis cegos e escravos de Sua própria vontade, de Seus caprichos. Ele criou a luz, mas não permitiu que cada criatura vivente pudesse acender a sua própria chama interior.
            — De onde você é? – perguntou Rebeca, sentindo uma inquietação.
            — Sou de onde eu não via as estrelas, mas via das estrelas – revelou o homem, segurando a corrente. — Fui arremessado no profundo abismo, na escuridão, porque exigi que a lucidez fosse um direito de cada ser. Mas é chegada uma Era de Luz. A Era dos Lúcidos. Os homens querem ver, e os homens poderão ver! A luz sempre esteve com vocês, vocês apenas se esqueceram disso por conta da vontade d’Aquele que anseia ser o único.
            Rebeca sentiu sua visão embaçar e, depois, focalizar novamente. Agora, ela enxergava o que antes não podia. Era uma sensação inédita, como se fosse parcialmente cega por toda a sua vida. O luar permitiu que a menina enxergasse a sombra do indivíduo. Em sua sombra, asas se expandiam ao lado de seu corpo. Rebeca sentiu uma corrente de energia percorrer todo seu corpo, como se uma explosão liberasse muita energia acumulada.
            — Agora você compreende? – perguntou o homem. — Esta é a visão que é sua por direito. Eu, como o Portador da Luz, não descansarei enquanto todas as criaturas deste planeta alcancem o lugar que lhes é de direito.
            O homem estendeu a mão para Rebeca e sorriu, por fim. A menina segurou sua mão, sem hesitar, e seguiu pela rua até desaparecerem da vista das pessoas que estavam no velório.

            Aquele dia marcara a existência de Rebeca. Afinal, não fora o pior dia de sua vida. Havia sido o melhor. Fora o dia em que passou a enxergar com os olhos da razão.

2 comentários:

  1. O conto me lembrou muito a saga Fallen. Você já leu? Fala sobre a revolta dos anjos, e a queda dos mesmos até a terra, é uma história linda assim como seu conto. Esse assunto de anjos sempre me chamou atenção, continue escrevendo que continuarei lendo rsrs...

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    1. Boa tarde, Aliscia!

      Fui pesquisar agora no Google e já vi os livros, mas nunca li nada sobre.

      A mitologia dos anjos me fascina. Há algum tempo, escrevi um romance sobre a luta dos anjos aqui na Terra. Mas não publiquei, pois achei que já tinha muita história do gênero em alta.

      O blogue tem mais alguns contos bem bacanas. Quando tiver um tempo, leia. Acredito que você também vai curtir.

      abraços e obrigado!

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