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domingo, 25 de janeiro de 2015

Sampa: muitos parabéns e pouca água!


"Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva"


Globo.com


            25 de janeiro de 2015; aniversário da cidade de São Paulo.
            A sétima cidade mais populosa do planeta completa, hoje, 461 anos de idade. Mas, infelizmente, não há motivo para que seus quase doze milhões de habitantes (segundo estimativas do IBGE em 2014) comemorem a data. Um ano atrás, o nosso Sistema de Abastecimento de Água Cantareira contava com 23,1% de sua capacidade; hoje, com a cota do volume morto, o Sistema está com 23,7% abaixo de zero. Apenas com essas informações já percebemos que não há o que comemorar (ou, ao menos, não se deveria comemorar).
            Mas hoje, enquanto visualizava a minha rede social, vi uma série de postagens alegres pelo aniversário da cidade, pelas coisas boas oferecidas pela cidade, por sua “velha-idade”; é algo quase que encantador o modo como as pessoas estão se referindo à cidade – a mesma cidade que vem passando por uma série de problemas que estão fora do controle das autoridades públicas.
            O descaso com a população vem de todos os lados: saúde (filas de espera que demoram anos, falta de equipamentos necessários, “sumiço” das verbas), transporte (“ciclovias”, trânsito, Metrô com mau funcionamento), saneamento básico, direitos básicos (água, energia), meio ambiente (frequentes quedas de árvores durante a época de chuvas), e por aí vai. Ainda assim, São Paulo ganha de seus habitantes um belo “parabéns” e inúmeros agradecimentos. Tudo bem... Você pode até dizer que a cidade não tem culpa; mas nós temos! Fomos nós quem escolhemos a autoridade que a governa, fomos nós quem escolhemos a autoridade que governa o estado, fomos nós quem escolhemos a autoridade que governa o país. Então, sim, a cidade tem culpa, porque nós somos a cidade.
            Por conta da chuva na noite da última quarta-feira, uma árvore caiu sobre a fiação da Estação Elevatória de Água João 23, responsável pelo abastecimento de Taboão da Serra, Embu, Itapecerica da Serra, Cotia e Jardim Arpoador; isso causou uma “pane” nos equipamentos, o que fez com que a distribuição da água para esses locais fosse interrompida. Porém, os moradores da região (cerca de 1,2 milhão de pessoas) ficaram prejudicados até sexta-feira, quando a distribuição de água voltou ao normal. Tudo por conta de uma árvore que caiu e demorou cerca de doze horas para ser removida.
            Estamos sem saída; não há o que fazer: quando não estamos sem água, estamos sem luz e, geralmente, estamos sem os dois serviços. A gente sabe (ou deveria saber!) que, de fato, a água vai acabar; e isso vai afetar a vida de todos os habitantes da cidade; indústrias mudarão suas localidades; shoppings, escolas e universidades, muito provavelmente, terão de fechar as portas, pois são locais que exigem muito o uso da água. Mas a gente atribui os erros ao governador (quando se atribui) e espera os milagres de Deus (ou de São Pedro); quando deveríamos ter cobrado do governador e não esperar por Deus ou milagres.
            Acredito que boa parte da população esteja comemorando o aniversário da cidade por não ter ideia da crise em que nos encontramos; a população ainda está confortável. Precisamos mudar nossos hábitos urgentemente! Com o calor que estamos enfrentando nos últimos dias, não nos preocupamos se vamos gastar mais água ou não ao correr para comprar piscinas ou tomar diversos banhos demorados no dia; o Carnaval está chegando e vai abafar, mais uma vez (vide a Copa do Mundo, ou as eleições), toda a crise pela qual estamos passando. Há países na Europa em que o uso da água não passa de sessenta litros por pessoa por dia; enquanto, aqui, no Brasil, há locais onde se registra mais de quatrocentos litros por pessoa por dia. Se continuarmos atribuindo a culpa aos governantes e não mudarmos, será tarde demais.
            Assim, povo paulistano, certifique-se de que não há o que comemorar – ao menos, não, por um bom tempo. Talvez, a nossa cidade vire uma cidade fantasma daqui a alguns anos (nada é impossível; afinal, achávamos que nunca passaríamos pela crise a qual estamos enfrentando). A festa oferecida, hoje, à população, nada mais é do que um agrado, um “cale-se porque estou-te dando um dia inteiro de lazer, cultura, água, ener...”; opa! Exceto água, água não!

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Conto: 31 de dezembro de 2070

Um conto distópico sobre o futuro da água; sobre o futuro do ser humano.


27 de outubro de 2070. São Paulo, Brasil.

            Após passar por sérias crises de falta de água e desertificação de boa parte do seu território, o Brasil chegou a um estado de calamidade: os doze por cento de água doce mundial, a qual o país um dia possuiu, acabou; o pouco que sobrou é motivo para guerra.
            A população da cidade de São Paulo chegou a um milhão de habitantes, somando, inclusive, os habitantes da região metropolitana do estado. Isso fez com que as autoridades públicas criassem projetos de Concentrações, onde os habitantes se dividiram de modo a compartilhar os recursos naturais ainda restantes – apenas na região metropolitana de São Paulo foram criadas dez Concentrações.
            Lúcio é morador da megalópole brasileira, e trabalha como ajudante geral numa indústria dessalinizadora na Concentração SP, uma espécie de refúgio, criado para a população remanescente da cidade, que abriga cem mil habitantes. O rapaz vive com seu tio e sua prima, sua única família:
            — Bom dia, tio! — diz Lúcio, assim que chega ao refeitório para o café da manhã.
            — Filho, eu peguei o seu café — diz Pedro, o tio do garoto. — As coisas deste turno estavam acabando, então peguei o seu e da Alice.
            — Obrigado, tio — agradece Lúcio.
            O café da manhã é o mesmo de sempre: uma lata de refrigerante e uma massa assada que lembrava o sabor de pão, embora fosse muito seca. No almoço, sempre é servida uma lata de refrigerante e uma fatia de bife com raspas da casca de árvores. Na janta, o prato é um copo de leite – de vaca ou de ovelha, de acordo com a disponibilidade – e mais um pouco da massa do café da manhã. Durante o dia, cada pessoa tem direito a 500ml de água, os quais são dosados para não passar sede.
            — Meu estômago está queimando... — comenta Lúcio. — Acho que não vou querer o refrigerante.
            Por conta do excesso de refrigerantes, muitas pessoas têm, frequentemente, problemas gastrointestinais.
            — E vai engolir a massa a seco? — questiona Alice.
            A garota, de doze anos de idade, aparenta ter vinte anos ou mais. Sua pele, assim como a pele de toda a população, é cheia de pequenas manchas e enrugada pela exposição ao forte sol. Todos, homens e mulheres, têm os seus cabelos raspados para evitar o acúmulo de sujeira, já que banho com água é permitido apenas uma vez ao ano – exceto pelas autoridades públicas; estes tomam banho toda semana.
            — Tio, o seu aniversário está chegando... — comenta Lúcio. — O que vai querer?
            — Nada, meu filho — responde o homem, sorridente. — Não temos condições nenhuma de comprar presentes. Estou satisfeito com o que tenho. E o meu aniversário é dia 31 de dezembro, o dia em que podemos tomar o nosso banho anual. Tem presente melhor?
            — É, não tem — o jovem dá risada e termina de comer sua refeição.
           
            Os três se levantam e seguem para a praça comunitária. Toda a Concentração é rodeada por uma fortaleza de trinta metros de altura; a razão de tanta proteção é a frequência com que disputas acontecem em busca de recursos naturais – as Concentrações “guerreiam” entre si para tentar conquistar mais recursos.
            Na praça, um grupo de pessoas despejam peças de roupas em um grande container – as roupas são descartadas toda semana, já que não há água para lavá-las. Cinco crianças brincam de pega-pega num banco de areia; todas carecas, com a pele enrugada e o corpo magricela. Do outro lado da rua, um caminhão de areia jogava um pouco de seu conteúdo nas fossas – os esgotos, todos, entupiram, já que a água não circula mais; então, foram cavadas fossas para as necessidades fisiológicas da população. Um pouco longe dali, cinco jovens são arrastados por homens do exército – provavelmente estão sendo retirados da zona de ventilação por não terem condições de pagar pelo ar que respiram.
            — Lúcio! — Sandro, namorado do jovem, chama-lhe. — Está indo para a fábrica?
            — Oi, Sandro! — o jovem beija o namorado enquanto segura suas mãos. — Sim... Vou só deixar o meu tio e a Alice no dormitório.
            — Oi, Sr. Pedro... Oi, Alice! — Sandro acena para os dois.
            — Oi! Filho, não precisa... — diz Pedro. — A Alice me acompanha. Não é?
            — Sim, pai! — responde a garota.
            — ‘Tá bom, então, tio — Lúcio abraça o tio e a prima, e sai com o namorado rumo ao trabalho.
            Assim que os dois chegam à filial da Salíquido, indústria responsável pela dessalinização das águas litorâneas do país, percebem uma grande movimentação na entrada do local.
            Lúcio segue na frente e encontra o seu patrão em uma espécie de palanque:
            — E então? Quem vai querer? — pergunta o homem, carrancudo. — Precisamos de alguém jovem para tal feito.
            — O que será que é isso? — questiona Lúcio.
            — Acho que eu sei... — comenta Sandro esticando o pescoço. — Os líderes mundiais estão selecionando pessoas de cada nação para um projeto meio secreto.
            — “Meio secreto”? — Lúcio fica confuso.
            — É — confirma Sandro. — Sabe aquele Buraco de Minhoca que eles construíram há alguns anos no espaço? Então... Eles enviaram um objeto para esse Buraco e, incrivelmente, o objeto foi encontrado num sítio arqueológico nos Estados Unidos.
            — Tipo uma viagem no tempo? — pergunta Lúcio, surpreso.
            — Isso! — concorda Sandro. — E eles querem fazer isso, agora, com cartas! Querem enviar cartas para o passado, para tentarmos reverter a nossa situação.
            — E por que não enviar uma pessoa? — interroga o jovem, curioso.
            — A pessoa seria estraçalhada, provavelmente — supõe Sandro. — Eles preferem não arriscar. Caso as cartas não cheguem, ao menos não haverá vidas perdidas.
            — Mas, isso não criaria um desastre, caso alguém encontre essas cartas e “mude” o futuro? — pergunta Lúcio.
            — É um risco que teremos de correr — diz Sandro. — Antes consertarem o futuro e a vida na Terra ter um futuro do que continuar assim e sermos extinguidos em mais algumas décadas ou séculos.
            — Vocês! — o patrão dos dois chama a atenção. — Vão se candidatar?
            — Sr., meu tio não pode se inscrever? — pergunta o jovem. — Ele viu tanto... Ele é o mais velho e lúcido da nossa Concentração. Ele nasceu quando as coisas ainda tinham salvação.
            — Jovens, Lúcio — enfatiza o homem. — Jovens. Quantos anos tem o seu tio?
            — Ele faz cinquenta anos em dezembro — responde Lúcio.
            — Não podemos — diz o patrão. — Vai ou não se candidatar? As cartas serão enviadas aos Estados Unidos no último dia do ano.
            — Até lá, eu decido — diz Lúcio, entrando na fábrica com seu namorado.


24 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            — O que você tem, Lúcio? — pergunta Pedro, enquanto vê o sobrinho com a feição tristonha.
            — Tio, ainda não decidi sobre aquela carta — responde o jovem. — Eu não conheço nada, tenho só vinte anos... Você devia escrevê-la... É o mais velho aqui da Concentração.
            — O papai deve ser o mais velho do Brasil — brinca Alice.
            Os quatro riem; Sandro está almoçando com a família.
            — O Lúcio tem toda a razão — concorda Sandro. — O senhor sabe como as coisas eram antes de chegar a este ponto; algo que nem os líderes atuais viram.
            — Não sei por que esse negócio de escolher pessoas mais novas para cargos de liderança — comenta Lúcio, insatisfeito.
            — Sangue novo é bom, filho — rebate Pedro.
            — Já sei o que podemos fazer! — sugere Sandro.
            — Então diga! Temos só uma semana para fazer isso — apressa o jovem.
            — Sr. Pedro, pense no que escreverá — pede Sandro. — Vou planejar tudo e trarei a carta na semana que vem. Sua carta vai para aquele Buraco de Minhoca.


31 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            O dia 31 de dezembro não é mais comemorado como a véspera do Ano Novo no Brasil; é comemorado apenas como o Dia Anual do Banho, um dia em que toda a população teria direito a dez minutos de banho com água.
            Os preparativos para a data na Concentração SP estão a todo vapor: as autoridades já disponibilizaram os chuveiros em local estratégico, próximo à Praça Central; o exército já está a posto, a fim de evitar problemas com os cidadãos que ultrapassassem o tempo limite no chuveiro.
            Lúcio, Pedro e Alice ainda estão em seu dormitório quando Sandro chega com uma surpresa:
            — Conseguiu? — pergunta Lúcio, ansioso.
            — Meus pais me deixaram isto aqui — Sandro mostra um envelope branco.
            — Um envelope de carta? — questiona Pedro. — Mas o que tem nele?
            — Dentro dele — corrige Sandro, abrindo o envelope.
            De dentro do envelope, Sandro retira um aparelho tecnológico que já não é utilizado há quase três décadas por determinação dos líderes mundiais; um tablet.
            — Um tablet! — conclui Pedro.
            — Para quê serve isso? — questiona Alice, achando o objeto esquisito.
            — É uma espécie de computador — responde Pedro.
            — Já vi o meu chefe com algo parecido, mas bem menor — diz Lúcio.
            — Era muito utilizado até trinta anos atrás — revela o tio do jovem. — Mas as autoridades decidiram nos isolar de tal tecnologia, talvez por medo, não sei. Mas isso pode se conectar com outros computadores ao redor do mundo.
            — Sim — confirma Sandro. — E eu já sei como e em qual computador iremos nos conectar.
            — Como assim? — questiona Lúcio.
            — Quando meus pais me deram isto, eles pediram para que eu usasse apenas numa situação de extrema importância, e deixaram instruções de como usar — explica o namorado de Lúcio. — Como há poucos destes por aí, é fácil conectar-se a outros.
            — E você vai conectar a quem? — pergunta Pedro.
            — À presidente — revela Sandro. — À presidente do Brasil. Tenho certeza de que, ao ver sua carta, ela vai elegê-la como a carta do Brasil.
            — Ótimo! — diz Lúcio. — Tio, você sabe escrever nisso aí? Precisamos achar um lápis...
            — Não! — Pedro solta um riso. — Não preciso de um lápis.
            Ao ligar o objeto e começar a escrever numa tela digital, os jovens ficam pasmos com a habilidade de Pedro; mais pasmos ainda com a funcionalidade do objeto.
            — Pronto — diz Pedro, devolvendo o tablet ao namorado do sobrinho.
            — Vou enviar — Sandro digita alguns botões e envia o documento criado por Pedro à presidente do Brasil, uma mulher que havia assumido o posto há pouco mais de dois anos, e estava tentando mudar o país e dar melhores condições à população remanescente. — Pronto. Agora é só torcer!
            Os quatro seguem para a Praça Central, onde tomarão o seu banho anual.
            Lúcio tem esperanças de que tudo aquilo mudaria; ele sabe que poderá esquecer toda a vida que teve ou, até mesmo, simplesmente deixar de existir. Mas ele quer dar um futuro à vida na Terra.
            Ao término do dia, os quatro se reúnem no dormitório e comemoram o dia. Comemoram, também, pois em um pronunciamento público – assistido pelas telas na Praça Central – a presidente acabou escolhendo a carta de Pedro para enviar ao Buraco de Minhoca.


Abril de 2002. São Paulo, Brasil.

            O telejornal de alcance nacional anuncia na televisão sobre uma carta encontrada numa expedição ao Mar Morto. A carta data o ano de 2070, e relata a vida no futuro, com a possível falta de água e outros recursos naturais:
            “Olá a todos. Meu nome é Pedro, mas falo por toda a população de meu país, Brasil. Estamos no ano de 2070, no mês de dezembro, no dia 31. Hoje, completei os meus cinquenta anos de cidade – e jamais pensei que chegaria a tal. Sou, provavelmente, o homem mais velho do país e, mesmo com essa idade, aparento ter mais de oitenta anos.
            Lembro dos meus cinco anos de idade, quando as coisas ainda não haviam chegado a tal ponto. Havia muitas árvores nos parques e nas praças, o fundo do orfanato em que eu vivia tinha um lindo jardim florido e, lá, eu gastava quase uma hora no banho. Agora, não temos mais água. Podemos tomar banho com água apenas uma vez ao ano, e um banho de dez minutos; nos outros dias, nos limpamos com toalhas umedecidas em azeite mineral. Por conta disso, todos precisamos raspar nossos cabelos para evitar o acúmulo de sujeira.
            Meu pai adotivo lavava o carro com a água da mangueira; hoje, as crianças nem acreditam que utilizávamos a água para isso. Também me lembro de muitos cartazes e outdoors dizendo ‘Cuide da água’, mas ninguém nunca ligou pra isso – mesmo com os reservatórios baixos, achávamos que a água jamais acabaria. Agora, os rios, barragens, lagos e mananciais que não estão esgotados, estão contaminados.
            Antigamente, todo mundo dizia que a quantidade ideal de ingestão de água era de oito copos por dia, isso para um adulto. Hoje, na minha idade, bebo apenas meio litro por dia, quando é possível. Por conta disso, a aparência das pessoas é horrível: todos muito magros, enrugados por causa da desidratação, manchas na pele causadas pelos raios ultravioletas – a camada de ozônio está destruída. As principais causas de morte são as infecções gastrointestinais (bebemos uma grande quantidade de refrigerante em nossas refeições diárias, já que é uma bebida sintética, tal qual nossos alimentos), dermatológicas e urinárias.
            Aqui no Brasil, houve uma grande desertificação.
            Nossas roupas são descartáveis, pois não há como lavá-las, então produzimos muito lixo. E tivemos de voltar a utilizar as fossas porque as redes de esgoto estão entupidas já que a água não circula mais.
            O mercado de trabalho teve uma mudança tremenda: muitos estão desempregados e, quem trabalha, trabalha apenas nas indústrias de dessalinização, que pagam com água potável em vez de dinheiro. Como se isso já não bastasse, muitos trabalhadores têm seus baldes de água roubados no caminho de volta para casa ao passar por ruas desertas.
            Não há como fabricar água, nem mesmo pela umidade do ar. O oxigênio está degradado pela desflorestamento – e isso acabou diminuindo a capacidade intelectual das novas gerações. Houve, também, alteração genética; os cientistas explicaram que as crianças que nascem com mutações e deformações ficaram assim por uma mutação nos espermatozoides.
            Não recebemos ajuda do governo; ou melhor, não recebíamos. O governo atual vem tentando mudar a situação e agir mais pela população, buscando melhores condições de sobrevida. Mas ainda há o exército, que abusa da autoridade e acaba cobrando até o ar que respiramos: quem não pode pagar por isso, é retirado das áreas ventiladas, as chamadas Concentrações, e acaba morrendo no deserto árido. A expectativa média de vida é de trinta e cinco anos de idade.
            Aqui em São Paulo, estamos divididos em dez Concentrações; mas algumas guerreiam entre si para conseguir mais água. A população da região metropolitana chegou a um milhão de habitantes; e continua caindo.
            Alguns países são protegidos ferozmente por suas Forças Armadas, porque conseguiram manter focos de vegetação e de água; e isso é motivo para guerra, certamente. Aqui no Brasil, contudo, quase não há árvores porque quase nunca chove e, quando chove, o pH é muito ácido.
            Sempre que minha filha me pede para contar-lhe histórias da minha infância, eu digo o quão lindos eram os parques, os bosques, a chuva, as flores. Falo, até mesmo, da alegria que tínhamos em entrar debaixo do chuveiro num dia quente; sobre como era bom pescar e nadar nos rios; sobre como era bom beber água à vontade; sobre como as pessoas ainda tinha saúde.
            Quando ela me pergunta por que a água acabou, não consigo não me sentir culpado, pois sou da geração que ainda tinha água e não soube cuidar dela. Não levamos em conta o número de avisos que nos deram. Hoje, nossos filhos e netos pagam um alto preço e, sinceramente, não acredito que haverá vida na Terra em algumas décadas ou, no máximo, em um século. Chegamos a um ponto irreversível.
            Se, algum dia, esta carta chegar até vocês, do passado, pensem e reflitam sobre os recursos os quais possuem. Não é o planeta Terra que precisa de atenção, somos nós. Nós é quem precisamos de atenção e de estar atentos aos recursos que o planeta nos oferece. O planeta vai continuar existindo; nós, seres vivos, não. Eu queria poder voltar no tempo, eu mesmo, e dar este aviso; como não posso, espero que vocês consigam reverter essa situação. Obrigado!


31 de dezembro de 2020. São Paulo, Brasil.

            Numa casa de parto da Grande São Paulo, um casal mal vestido comemorava a chegada de seu filho:
            — Márcio, olhe como ele é lindo! — diz a mulher, com lágrimas nos olhos.
            — É uma pena que tenha nascido em meio a esta crise que estamos passando — comenta Márcio, acariciando o bebê.
            — Teremos mesmo de colocá-lo num orfanato? — questiona a mulher.
            — Patrícia, meu amor... — Márcio dá a mão para Patrícia. — Não temos água para sustentar esta criança, como ela crescerá? Os orfanatos ainda são mantidos pelo governo e recebem toda a ajuda necessária. Lá, ele poderá crescer forte e saudável.
            — Por que não soubemos cuidar de tudo o que Deus nos deu? — questiona a mulher, consternada.
            — Meu amor, será o melhor para ele — diz Márcio. — Não se culpe. Como ele vai se chamar?
            — Pedro — responde Márcia. — Ele será forte como uma rocha, tão duro quanto uma pedra... Porque ele vai precisar dessa força para sobreviver neste mundo sem água. E, por isso, o nome dele vai ser Pedro.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Opinião: O governo de São Paulo à espera das águas de março

 Opinião | Júnior Gonçalves
30/09/2014 – 12h04

             Acerca de cinquenta dias de cessar o abastecimento de água da Grande São Paulo, segundo as estimativas de Mauro Arce, secretário estadual de Recursos Hídricos de São Paulo, o Sistema Cantareira atinge o menor nível de sua história, com 7% de sua capacidade total. Um dos maiores sistemas de captação e distribuição de água, o Sistema Cantareira é administrado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp – e, desde o início de 2014, conta com uma baixa considerável dos níveis dos reservatórios.
            Uma série de fatores contribuiu para o problema. A culpa recaiu, inicialmente, sobre a falta de chuva, embora esteja explícito que as chuvas recentes mal fizeram cócegas no estado atual dos reservatórios e que seria necessário, no mínimo, um mês de chuvas intensas para causar alguma modificação nessa situação.
            Depois, estudos mostraram que o desmatamento causado nas áreas florestais próximas aos sistemas e na Amazônia contribuiu para a primeira questão – as florestas possuem a importante função de reter a água da atmosfera e contribuem para a manutenção da umidade do ar. Se o ar está seco na região dos reservatórios, há o consequente aumento da evaporação na represa. Esses estudos revelam que até 70% da precipitação em São Paulo depende da água vinda da Floresta Amazônica.
            Há, também, o desperdício da água que sai dos reservatórios e segue rumo às residências e aos comércios. Cerca de 25% da água é “perdida” entre tubulações antigas e conexões clandestinas – os famosos “gatos”. Sem contar os usuários que gastam água sem pensar nas consequências, lavando as calçadas, os carros, lavando as roupas muitas vezes, tomando banhos demorados várias vezes ao dia etc.
            Não se pode deixar de citar a questão da má gestão da Sabesp. A crise atual se deve a um problema de demanda de água.  A Organização das Nações Unidas – ONU – estabelece que uma pessoa consegue se manter suficientemente com 110 litros diários para o seu consumo, alimentação e higiene. Na cidade de São Paulo, o número chega aos 140 litros diários por pessoa. Em algumas outras cidades, esse número alcança os 200 litros diários. A companhia recebeu vários alertas, durante anos, sobre relatórios que apontavam a necessidade de ampliação dos sistemas, principalmente do Sistema Cantareira.
            Em meio à crise, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, decretou racionamento no município de Guarulhos. Algo absurdo, já que o Sistema Cantareira ficou anos sem receber investimentos governamentais, mesmo com os vários relatórios apontando a necessidade. Mesmo avisado por técnicos e especialistas da área, Alckmin não quis impor o racionamento na cidade de São Paulo, optando pela realização de obras no Sistema Cantareira. Foi dessa forma que inaugurou as obras para captação do tão falado Volume Morto. Apesar disso, moradores e comerciantes da periferia de São Paulo já sofrem, desde meados de julho, um racionamento mascarado. O governador prefere chamar isso de “rodízio”, no qual se procura a diminuição do consumo por meio da redução da pressão da água durante a noite.
            Contudo, essa redução não é apenas uma redução, de fato. Muitos moradores das periferias não conseguem utilizar água após oito horas da noite. Não houve nem mesmo o cuidado de alertar aos moradores e comerciantes dessas regiões.
            Em ano eleitoral, é de se imaginar que Alckmin não queira deixar seu eleitorado insatisfeito. Ironicamente, pesquisas mostram que os bairros nobres da capital gastam o dobro de água que os bairros periféricos. A política de bônus na conta de água foi a ação mais “efetiva” que o governador tomou, e isso fez com que toda a população da periferia aderisse à causa. Ainda assim, os números do Sistema Cantareira continuam a cair, e o governador permanece resistente às sugestões de especialistas em aderir, de fato, ao racionamento.
            No início desta semana, o governador chegou a afirmar que o período de seca enfrentado pelo Sistema Cantareira “já passou”, e que, talvez, nem precisemos utilizar o Volume Morto.

            Planejar, quando em gestão pública, é prevenir. E foi o que Alckmin menos fez. O governador atribui a causa única e exclusivamente à falta de chuvas. Esqueceu-se de todos os avisos e alertas sobre necessidade de investimentos para que a Sabesp pudesse construir um sistema de distribuição seguro, adequado. Enxergamos, aqui, a mesma inação que a gestão de Alckmin apresenta na área da saúde, da educação, da segurança e do transporte. Falta transparência, falta sinceridade para com a população e seus próprios eleitores. Permanecer em uma posição, mesmo com tantos alertando o perigo que essa pode trazer, não é cuidar da população. Fazê-lo, é acomodar-se e garantir votos. É causar uma tempestade – apenas figurada, diante de nossa situação – em um copo d’água.