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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O seu gato, por acaso, vai dar o seu diploma?

Quarta-feira, 2 de setembro | 10h07

            Trabalhar com crianças e adolescentes é algo extremamente desafiador. Trabalhar com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social é perturbadoramente desafiador.
            Na função de orientador socioeducativo, atuo com uma turma de crianças e adolescentes entre nove e 14 anos de idade. Por conta disso, muitos já estão naquela fase da pré-adolescência, uma fase conhecida por seus impulsos, desejos, questionamentos e inconformidades.
            Tenho uma relação muito aberta e verdadeira com a minha turma – somos sempre transparentes quanto aos nossos sentimentos (entre nós e entre as pessoas que estão a nossa volta). Na última segunda-feira, ao término da atividade, comentei com um dos meninos que eu faltaria na faculdade para cuidar de um dos meus gatinhos de estimação porque ele está muito doente.
            — Júnior, o seu gato, por acaso, vai fazer as suas lições e dar o seu diploma? — foi a pergunta imediata dele.
            Confesso que, na hora, fiquei um pouco surpreso com a entonação da pergunta. Ele, realmente, estava indignado porque eu faltaria na faculdade “apenas” para cuidar do meu gatinho de estimação que está doente e precisa de cuidados.
            — Não... Ele não vai me dar o meu diploma nem fazer minhas lições — respondi olhando nos olhos dele. — Mas, olha só, eu escolhi ter um animal de estimação, não foi? A partir da minha escolha, vieram todas essas responsabilidades. Eu amo o Freddy (meu gatinho) e não vou deixar de cuidar dele... Ele está muito doente, com cálculos no trato urinário. Preciso ficar com ele hoje.
            A indignação do menino continuou ali, firme e forte.
            Então, após as outras crianças saírem para o café, ele veio até a minha mesa:
            — Júnior... — ele falava com a cabeça baixa, sem olhar nos meus olhos. — Eu já não sei mais o que fazer em casa.
            — Como assim? — questionei.
            — Minha mãe chamou todos os meus irmãos para “sair” com ela no sábado e nem olhou na minha cara — ele contou. — Fiquei lá... E ela nem me olhou.
            — Mas você disse que queria sair com ela? — perguntei, tentando aliviar aquela tensão.
            — Não... Mas os meus irmãos também não disseram. Ela não gosta de mim. Ela nem me deixa jogar o meu videogame. Os meus irmãos pegam o videogame e jogam só eles... Eu nem posso tocar.
            — Mas você já falou isso para a sua mãe?
            — Ela comprou o videogame pra mim... Porque eu fico em casa — ele respondeu. — Mas o meu irmão até esconde o videogame pra eu não pegar. E a minha mãe não fala nada.
            — Já tentou dizer isso para a sua mãe? — questionei-lhe. — Que você queria ter saído com ela... Ou que você quer jogar o seu videogame?
            — Não. Porque não vai adiantar — ele concluiu.
Aqui está algo que, infelizmente, acontece muito: a falta do diálogo no âmbito familiar. Foi só, então, que eu compreendi; o menino não estava indignado por eu faltar na faculdade pra cuidar do meu gatinho de estimação. Aliás, talvez o estivesse. Talvez, ver que eu estava tão preocupado com o meu gato (que é um animal) o tenha feito pensar o motivo daquilo não acontecer com ele (que é uma criança).
            Eu, realmente, fico preocupado quando vejo uma criança fazendo tais questionamentos e dando-se conta de suas vidas (por vezes, tão sofrida!). A sensação que tenho é de que a vulnerabilidade na qual se encontra essa criança está tão avançada que, dificilmente, conseguiremos reverter a situação. A menos, é claro, que comecemos a trabalhar diretamente com essas famílias; as famílias precisam enxergar que também estão vulneráveis e que podem contar conosco, agentes sociais.

            Não vou restringir apenas aos profissionais da área social, mas a todo cidadão dentro da sociedade: é nosso dever garantir o direito de outrem.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Aproveite a vida por completo!

            Trabalhar num C.C.A. (Centro para Crianças e Adolescentes), definitivamente, não é fácil; mas é absurdamente bom para o crescimento pessoal. Uma das melhores coisas, nesse trabalho, é que eu consigo tirar um aprendizado de tudo – tudo mesmo!
            Como orientador socioeducativo, o maior presente que ganho é a confiança de cada uma daquelas crianças e daqueles adolescentes. Saber que eles acreditam no meu trabalho é o que direciona as minhas atitudes lá dentro.
            Na última quarta-feira, fui pego de surpresa por um dos meninos, que me disse que sairia do C.C.A.; como estamos sempre brincando e caçoando um do outro, achei que era uma brincadeira e soltei um riso. Imediatamente, ele me disse que era verdade, que ele se mudaria no fim de semana (amanhã) e, por conta disso, não poderia mais ir ao C.C.A.
            No momento, não fiquei com aquilo na cabeça; mas, ao chegar em casa, não parei de pensar naquilo. Há cerca de um mês, uma das meninas da minha turma fez o desligamento pelo mesmo motivo: mudança de casa. Com isso, comecei a pensar e perceber que o nosso tempo (o meu tempo) ali é pouco. Quando menos percebemos, o tempo já passou e algo aconteceu.
            Na quinta-feira (ontem), peguei um pincel e comecei a desenhar no quadro branco. No alto do quadro, escrevi “O que o C.C.A. significa para mim?”; depois, comecei a utilizar todo o espaço do quadro para ilustrar o significado do C.C.A. na minha vida.
Minha ilustração.
            Quando eu saí do meu antigo emprego e fui convidado para ingressar na equipe de trabalho do C.C.A. Parque Mandy, fiquei muito empolgado – eu queria muito fazer parte das vidas daquelas crianças e aprender com elas. Então, expliquei o significado do C.C.A. para mim: um espaço que, embora fechado, é aberto simbolicamente, pois permite a cada um que está lá o conhecimento do novo, o aprendizado, as oportunidades, a recuperação do passado, a vivência do presente, o vislumbre do futuro. Expliquei que há vidas no C.C.A. (centenas de vidas) e há vivências.
             Feito isso, pedi que cada criança também fizesse o mesmo e desenhasse o que o C.C.A. significa para cada uma; e o trabalho rendeu.
Ilustrações das crianças.
            Contudo, quando chegou na vez do D. (o menino que avisara que sairia do C.C.A.), fiquei muito surpreso. Enquanto todas as crianças utilizavam apenas o canto do quadro para desenhar, o D. começou desenhando no centro do quadro branco e expandiu o seu desenho para todo o quadro; fez um menino (!) segurando um pincel e pintando uma linda paisagem numa tela de pintura. O desenho tomava conta do quadro todo. Não comentei nada, apenas fotografei todas as ilustrações.
Ilustração do D..
            Hoje, contudo, percebi certa inquietação do D.; provavelmente, por ser o último dia dele no C.C.A.. Ao fim das atividades, levei toda a turma para uma sala e comecei a falar:

            — Para quem não sabe, hoje é o último dia do D. aqui no C.C.A. — lembrei ao restante da turma. — Mas eu queria comentar algo sobre ontem... Quando pedi que vocês desenhassem o que o C.C.A. significa para cada um, vocês ficaram muito contidos; mesmo eu tendo dito que poderiam utilizar o quadro inteiro. Porém, o D. começou a desenhar e me surpreendeu ao preencher todo o quadro com o desenho dele, além de ter me emocionado ao ver que ele estava no próprio desenho.
            As crianças me olhavam sem compreender direito o que eu queria dizer com aquilo.
            — Eu quero dizer que vocês devem fazer o mesmo que o D. fez, porém, com as vidas de vocês — comentei. — Não deixem alguns momentos da vida passarem direto por vocês; aproveitem a vida por completo; aproveitem tudo o que puderem aproveitar; agarrem todas as oportunidades que surgirem. O tempo é muito incerto e, quando nos damos conta, ele já passou e não pode mais ser recuperado. Eu queria muito que as 33 crianças desta turma ficassem comigo até, um dia, eu sair daqui; mas isso é impossível! Inevitavelmente, vocês também vão sair daqui; se não for por mudança, será porque atingiram a idade máxima permitida aqui dentro, aos 14 anos e 11 meses. E, daí, eu vou ter de recomeçar todo o trabalho com novas crianças... Será difícil, mas vai ser muito legal.
            Algumas das crianças começaram a chorar nesse momento. Mas eu prossegui:
            — Olhem só: em sete meses de trabalho com vocês, nós evoluímos muito! Nós crescemos e só conseguimos isso porque trabalhamos juntos — lembrei-os. — Vocês, hoje, olham mais uns para os outros no sentido de atentar-se e preocupar-se com o outro; vocês, hoje, reconhecem os sentimentos que há em vocês e assumem esses sentimentos. Imaginem o quão amedrontador e angustiante deve ser mudar-se de casa? O medo do desconhecido é normal e ajuda muito no nosso crescimento; e isso fica melhor quando vocês passam a admitir esse medo. D., eu vejo, em você, um futuro brilhante e uma vida repleta de oportunidades; e vejo isso em cada um de vocês aqui porque eu amo muito vocês. Mas a gente não vai ter todo o tempo do mundo pra ficar junto e, por isso, repito o que eu disse: aproveitem todos os momentos, aproveitem a vida por completo!
            A minha vontade era de chorar; deixei as lágrimas caírem, pois tenho essa relação de verdade com as crianças – não escondemos os nossos sentimentos entre nós.
            Pouco tempo depois da conversa acabar, comecei a dispensar algumas das crianças, pois já havia chegado a hora de saída. Nisso, o D. comentou:        
            — Eu não quero ir embora, Júnior.
            Eu só pude olhar pra ele e sorrir. Falei o quanto ele é especial e o quanto essa mudança pode ajudar na vida dele se ele souber aproveitá-la. Ele, então, pediu para ser o último a ir embora (ele é sempre o primeiro).
            Quando todas as crianças já haviam ido embora, ele chegou perto:
            — Bom, estou indo — então, ele pulou para me abraçar (como costuma fazer quando quer me atentar). — Tchau, obrigado!
            Daí, eu vejo o quanto o meu trabalho é recompensador e importante: a minha função me permite ajudar essas crianças e ajuda-las a enxergar o mundo duma maneira inédita para elas. E é assim que deveria ser com todo o mundo.

            Trabalhar num C.C.A., definitivamente, não é fácil; mas é absurdamente bom para o crescimento pessoal.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Quando nasce a intolerância?

            Pra quem ainda não sabe, estou trabalhando como Orientador Socioeducativo num Centro para Crianças e Adolescentes aqui da zona norte de São Paulo. Minha turma conta com cerca de vinte e cinco crianças na faixa etária dos nove aos quinze anos de idade.
            Antes mesmo de entrar lá, eu já havia elaborado um projeto de fomento à leitura e à escrita; mas, quando soube que faria parte da equipe de Orientadores, expandi o projeto e dividi-o em três eixos. Hoje, o projeto consiste no Palavreando, no Fazendo Arte e no Socializando – os três, trabalhados simultaneamente, propiciaram a criação de um quarto: a Mostra Cultural.
            Cada projeto foi nomeado de forma que seu nome o defina.
            O Palavreando objetiva estimular a leitura e o desenvolvimento da escrita; nele, trabalharemos a produção de diversos gêneros: mapas, manchetes, poemas, notícias, narrativas, quadrinhos, rótulos, receitas, gráficos, placas etc. Isso fará com que as crianças e os adolescentes conheçam as possibilidades tanto no mundo da leitura como no da escrita – na escrita, por exemplo, elas aprenderão que não precisam só copiar, mas que elas podem criar.
            O Fazendo Arte será focado na apreciação de obras de arte, filmes, músicas e fotografias. Contextualizarei cada gênero de acordo com as necessidades encontradas na turma; discutiremos sobre os possíveis significados de cada obra; conheceremos os autores e o contexto sociocultural de cada obra. Após todo esse trabalho, no caso das obras de arte, realizaremos releituras e versões – isso permitirá que eles se apropriem dos detalhes passados despercebidos, bem como desenvolvam sua criatividade e sua criação.
            O Socializando foi criado, especialmente, para fazer com que a opinião das crianças e dos adolescentes seja ouvida – afinal, eles também fazem parte da Sociedade e têm o direito de opinar em todo e qualquer debate. Para isso, levarei discussões sobre temas contemporâneos, mas também discutirei temas os quais são evitados: morte, medos, futuro etc. Ainda no Socializando, criaremos um blogue destinado à postagens das atividades realizadas durante o ano, além das mensagens e bilhetes que eles escreverão sobre cada tema discutido.
            A Mostra Cultural, que tem previsão para acontecer ao fim do semestre, será um evento idealizado por eles desde o início: decoração do espaço, produção dos convites, organização das atividades a serem exibidas etc. Isso fará com que eles conheçam o processo de produção de um evento, onde cada um é responsável por uma parte para que todo o grupo consiga exercer o trabalho final.
            E de uma semana e meia pra cá tem sido assim: produções, discussões, ideias... Desde ontem, por conta do Carnaval que está por vir, estamos trabalhando sobre o tema: ontem, fizemos uma pintura do quadro Carnaval em Madureira, de Tarsila do Amaral – falamos um pouco das características carnavalescas que o quadro traz; hoje, pedi que eles retratassem no papel (em desenho ou em texto), aquilo que eles imaginam ao ouvir a palavra Carnaval.
Um Sábado Qualquer
            Nesse momento, ouvi um comentário: “Carnaval não é de Deus!”. No mesmo instante, uma das crianças veio me questionar isso. Perguntei à criança que disse a frase se ela sabia o que estava dizendo; então, outra criança repetiu: “Mas Carnaval não é, mesmo, de Deus, Júnior!”. Então, decidi explicar um pouco sobre a festa conhecida mundialmente.
            Contei às crianças que, possivelmente, a palavra carnaval tem dois significados: carne vale – que significa “adeus, carne!”; e carne levamen – que significa “supressão da carne”. Ambos os significados remetem ao que conhecemos hoje na festa – o período que antecede a Quaresma, uma “pausa” de quarenta dias nos excessos cometidos durante o ano; um período em que a religião católica acredita que se deve existir a privação da carne.
            Pedi às duas crianças que insistiram que a festa “não é de Deus”, que não tentassem impor isso às demais crianças, pois cada um é livre para acreditar ou não acreditar no que quiser. Com isso, uma outra criança comentou: “Júnior, eu acredito em outros deuses, como Buda, os deuses gregos, os deuses africanos...”. Isso gerou uma polêmica ainda maior. Do outro lado, alguém disse: “Deuses africanos? Credo! Eu não gosto de africanos...”.
            Aquilo me deixou surpreso e triste, ao mesmo tempo. Eu fiquei sem saber como agir. Pedi à criança que não disse mais aquilo, pois era um desrespeito muito grande, um preconceito. Expliquei que, no mundo, existem milhares de culturas, e cada cultura acredita em algo. Comecei a citar alguns dos deuses cultuados ao redor do mundo, hoje e antigamente: Zeus, Poseidon, Hades, Afrodite, Atena, Deus, Tupã, Guaraci, Jaci, Jurupari, Hórus, Ísis, Tot, Set, Lilith, Brama, e disse que há centenas de outros. Isso gerou um alvoroço.
            “Só existe um Deus!”, disse uma criança. Ali, eu percebi que não adiantaria continuar com aquela conversa; não naquele momento, sem um preparo maior. Pedi, mais uma vez, que ninguém tentasse impor seu Deus aos demais, que cada um acreditasse no que quisesse, mas guardasse essa crença para si. Mas planejo voltar com esse assunto em breve, pois acredito que deva ser discutido.
            O que eu quero dizer, é que esse episódio, nada mais, é fruto da intolerância religiosa praticada mundialmente. É o exemplo que deixamos para as nossas crianças: imponham suas crenças às demais, pois somente a sua crença é a correta. Mas, agindo assim, nenhuma nunca vai ser a correta, e as mortes e discriminações por intolerância vão continuar acontecendo.
            Nós, adultos, temos o dever de rever os nossos conceitos. É isso mesmo que queremos deixar para as crianças? Queremos, mesmo, mostrar a elas que, no mundo, apenas um deus é o verdadeiro? Chega dessa luta idiota e ignorante! Vamos mostrar às crianças que o mundo é feito de diferenças, é feito de peculiaridades, é feito de culturas distintas.

            Vamos mostrar às crianças que o mundo precisa ser feito de respeito.

domingo, 30 de março de 2014

O Outro Lado


Caí na cela de joelho,
Caí na cela de joelho,
Lágrimas rolam dos meus olhos
E bate “” desespero!

E a saudade vem,
Muitos vêm criticar.
A minha vida é sofrida
E é só Deus quem vai mudar.

Ainda tenho fé
Que vou ser vencedor.
Só peço para Deus
Aliviar a minha dor

Caí na cela de joelho,
Caí na cela de joelho,
Lágrimas rolam dos meus olhos
E bate “” desespero!

Lembro do meu passado,
Também da minha família,
Minha coroa que “fecha
Comigo no dia-a-dia.

Mãe, te peço perdão
Por tudo o que te fiz.
Quando eu sair, vou mudar,
Prometo te fazer feliz!

Caí na cela de joelho,
Caí na cela de joelho,
Lágrimas rolam dos meus olhos

E bate “” desespero!


O Brasil é o quarto país do mundo com a maior população carcerária. São mais de 550.000 pessoas privadas do convívio social. Tantas, injustamente.

Na verdade, se pararmos para pensar nas condições "oferecidas" a essa população, veremos que nada mais estão jogados dentro de grandes depósitos imundos. Há falta de espaço. Há podridão entre o alimento - sujeira, fezes e urina de pequenos animais. Há falta de higiene. Há falta de saúde - tantos morrendo por infecções e falta de atendimento médico adequado. Há violência - física, sexual, mental. Há insegurança. Há morte. Há exclusão.

Somos uma sociedade que acreditamos que quanto maior o número de encarcerados, maior será a nossa segurança. Esquecemos que há pessoas lá dentro, independentemente de seus atos. Esquecemos que podemos oferecer segundas chances. Esquecemos que possa existir reintegração, recuperação em muitos casos. Simplesmente achamos por melhor enclausurar.

Lutamos até para reduzirem a maioridade penal. Alguém já parou pra tentar conhecer o que há no outro lado? Alguém já parou pra descobrir o que há além do que se mostra na mídia?

A letra postada foi escrita por dois adolescentes internos da Fundação CASA. Nos centros de internação da Fundação CASA - a antiga FEBEM, aquela em que os "menores infratores" arquitetavam rebeliões e fugas, causando muita morte -, agora remodelada, são oferecidos cursos das mais diversas áreas do conhecimento aos adolescentes. Isso permite que eles possam ter uma visão além daquela conhecida por eles desde o seu nascimento. Isso permite que eles acreditem na chance de mudança, de recuperação.

Já fui adepto da visão de que os infratores da Lei devem, sim, ser punidos e pagar por o que fizeram. Após conhecer e conversar com os adolescentes internos da Fundação CASA, saber a sua realidade de vida, mudei muito a minha concepção. Ainda acho, sim, que qualquer um deva ser punido por transgredir certos limites - agindo com violência, causando morte e grandes prejuízos públicos. Mas percebi que cada um tem a sua realidade, tem a sua bagagem e tem o seu modelo do que é certo e do que é errado.
Eu sempre tive os meus pais me mostrando que, para eu crescer e ter minhas conquistas, eu teria que estudar bastante, trabalhar, sem tirar o que é do outro, conseguir minhas coisas por mérito próprio. Mas, e se fosse diferente?

E se eu vivesse em um lugar onde meus pais me dissessem que, para eu conseguir minhas coisas, conquistas o meu lugar na sociedade, eu teria que roubar dos outros, revender e, se fosse necessário, até matar para sair ileso? Eu me encontraria na realidade de muitos desses jovens. E muitos dos adultos que já morreram ou ainda estão no sistema carcerário desse país "organizado" já foram jovens com essa realidade.

Comecemos, então, a ver o outro lado.
Tentemos, ao menos, ver o outro lado.




domingo, 2 de fevereiro de 2014

Conto - O tornado


Troy, Kansas. Novembro de 2009.

            Localizada no estado do Kansas, nos Estados Unidos, a cidade de Troy conta com pouco mais de mil habitantes. Cidade de interior, todos se conheciam ali, facilmente.
            Leonard Gale era um dos jovens mais conhecidos na cidade. Não que isso fosse bom, necessariamente. No auge de seus dezesseis anos, o garoto vivia se metendo em confusões. Ora roubando os armazéns da cidade, ora brigando com os outros meninos de sua idade.
            Mas todos também sabiam de sua história.
            Ainda bebê, seu pai o trouxe para a cidade, procurando por seus familiares. Mas o velho Henry e a senhora Em haviam desaparecido, sem deixar quaisquer pistas. O casal havia ficado com sua filha, Dorothy Gale, que também desaparecera com os tios.
            Sem saber o que fazer após a recente morte de sua esposa, o pai do menino o deixou no orfanato da cidade, contando a história, alegando que não tinha a menor condição de cuidar da criança.
            Desde então, Leonard morou no orfanato e nunca mais ouviu falar de seu pai, ou de seus tios, e nem mesmo de sua irmã que não conhecera.
            - Leonard! – gritava a Sra. Lea, diretora do orfanato. – Vem pra dentro!
            O jovem estava sentado quase em frente ao orfanato. Mas, há poucos minutos, todos que estavam na rua entraram para suas casas.
            - Por que, Sra. Lea? – questionou o menino. – Tô quieto aqui.
            - Vem logo, filho! – insistiu a mulher, nervosa. – Tá vindo uma tempestade aí!
            Leonard olhou o céu.
            Grandes nuvens cor de chumbo percorriam o céu, cobrindo a cidade de Troy. Um vento forte balançava os galhos das árvores e os fios de eletricidade.
            - Leonard! – gritou a Sra. Lea, novamente.
            - Tá bom, tô indo! – Leonard levantou-se do banco e caminhou, lentamente, em direção ao orfanato.
            Quando o menino entrava pela porta do orfanato, aberta pela Sra. Lea, ele viu um bicho correndo para fora, assustado.
            - Lion! – gritou o menino, quando percebeu que era o seu gato de estimação. – Volta aqui!
            - Entra, Leonard! – ordenou a Sra. Lea, puxando o garoto pelo colarinho da camiseta.
            - Não, vou pegar o Lion! – o menino se contorceu e conseguiu escapar das mãos da diretora do orfanato, correndo para pegar seu gato.
            - Leonard! – a Sra. Lea gritava histericamente.
            Os habitantes que moravam próximo ao orfanato assistiam a baderna por suas janelas. Ora olhavam a Sra. Lea, ora colocavam o olho na forte tempestade que se aproximava.
            A Sra. Lea corria desajeitadamente pelo paralelepípedo, tentando alcançar o garoto, que já estava a uns vinte metros à sua frente.
            - Lion, volta aqui, caramba! – Leonard corria atrás de seu siamês. – ‘ não gosta de água, bola de pelo!
            O gato correu para uma propriedade abandonada. Só havia, ali, um vasto campo de terra infértil.
            Leonard pulou a cerca com aquela habilidade que toda criança, cheia de energia, tem. Sra. Lea, por sua vez, nem estava perto da propriedade quando foi parada por uma viatura da polícia.
            - Dá licença! – gritava a mulher, contornando o carro.
            - Sra. Lea, vou eu, Xerife Bradd. – disse o homem, saindo do carro. – Preciso que volte para casa, imediatamente!
            - Xerife, uma de minhas crianças entrou nessa propriedade aí da frente! – explicou a diretora do orfanato. – Preciso buscá-lo!
            - Sra. Lea, dê uma olhada para o oeste. – solicitou o Xerife.
            - Mas o que é aquilo? – a mulher ficou surpresa e, ao mesmo tempo, assustada com o que viu.
            - É um tornado. – confirmou o Xerife. – Não estava previsto, mas está vindo para cá. Preciso que fique dentro do orfanato... Vai chegar em menos de cinco minutos.
            - O Leonard ‘tá lá, Bradd! – a mulher apontava para a propriedade abandonada.
            - Eu vou buscá-lo, Lea. – garantiu o Xerife. – Mas preciso levá-la até o orfanato, primeiramente.
            - Ok. – concordou a mulher. – Vamos, depressa! Aí você volta pra buscar o Leonard!
            A mulher entrou na viatura.
            O Xerife dirigiu o mais rápido que pôde até o orfanato, e a Sra. Lea saltou do carro em direção ao orfanato, fechando as portas e janelas para garantir a segurança das crianças que estavam ali.
            Leonard finalmente havia encontrado Lion. O gato estava escondido dentro de um latão enferrujado.
            - Lion! – Leonard aproximava-se lentamente. – Vem comigo, vem...
            Mmmiaaaaau. O gato saiu do latão, em direção a Leonard.
            - Isso... Vem cá! – Leonard pegou o gato e o abraçou.
            - Leonard! – uma voz eletrônica chamava pelo garoto, não muito longe dali.
            O menino procurou, e então focalizou a viatura de polícia um pouco além das cercas da propriedade abandonada. Era o Xerife Bradd.
            - Menino, preciso que corra! – gritou o Xerife.
            Leonard não entendeu. Ficou olhando com cara de desentendido.
            - Leonard, tem um tornado a poucos metros de você... Corra! – berrava Bradd.
            O menino então se deu conta do vendaval que tomava conta de tudo ali. As árvores quase encostavam o chão com a força do vento, a relva seca vibrava fortemente. Quando olhou para trás, viu um gigantesco tornado se aproximar, engolindo tudo o que havia em sua frente.
            Instintivamente, Leonard agarrou Lion e começou a correr na direção do Xerife.
            A força de sucção do tornado, entretanto, já havia chegado perto o suficiente para agir contra o menino. Quanto mais corria, mais parecia ser puxado para trás.
            - Corre, Leonard, por favor! – gritava o Xerife, já não utilizando mais o megafone.
            - Eu não consigo, Xerife! – choramingou Leonard. – Esse troço ‘tá me puxando! Me ajuda!
            - Leonard, não dá... – lamentou o Xerife, entrando no carro. – O tornado está se aproximando! Me desculpa, menino...
            Leonard virou para trás e viu que o tornado realmente estava a poucos metros. Quando voltou-se para a viatura, viu que o Xerife havia dado partida e estava fugindo.
            - Não, Bradd! – gritou Leonard. – Não me deixa aqui!
            Os habitantes da cidade já não assistiam mais aquele espetáculo de horror. Com receio do que aconteceria, todos fecharam as suas cortinas e ficaram a esperar dentro de suas casas, rezando pela vida do menino. Todos, menos a Sra. Lea.
            Lea estava histérica vendo tudo aquilo. Chegou a sair do orfanato, mas percebeu que a força do tornado estava muito intensa, quase a puxando dali mesmo. De volta para a janela, viu o pobre Leonard ser engolido pela espiral de vento, poeira e destroços.
            Leonard tentava fechar os olhos para não ver o terror, mas a intensidade do vento o impedia. Agarrado ao seu gato, que berrava fortemente, viu destroços de casas, carros e máquinas dentro do tornado. No topo da espiral, enxergava uma luz que imaginava ser o céu. Não sabia o que era melhor, morrer esmagado por todos aqueles destroços ali no meio da espiral, ou ser arremessado ao céu e depois se estilhaçar ao atingir o chão.
            O menino gritava e chorava, pedindo ajuda, mas era inútil. Viu uma sombra através da poeira do tornado. Era a sombra de uma criatura alada, era como um macaco com asas. Mas, então, a sombra se desfez, e o terror voltou à sua mente.
            Leonard percebeu a voz falhar. Já não tinha forças para gritar. Segurando Lion, com cuidado, colocou-o dentro de seu agasalho. Sua visão começou a escurecer. E tudo ficou preto.

            Mmiaaau. Leonard sentiu um peso em seu peito, algo reprimia a sua respiração.
            Ao abrir os olhos, percebeu o clarão do céu azul, assustou-se. Viu que Lion andava por cima de seu corpo, então pegou o gato e se levantou.
            O que Leonard viu era fantástico. Vastos campos, que quase não era impossível enxergar que eram rodeados por cordilheiras, provavelmente a dezenas de quilômetros dali. Havia cachoeiras, vales, plantações.
            Logo ali, à sua frente, Leonard viu uma estrada que se perdia no horizonte, com suas ramificações. Era uma estrada incomum, entretanto. Sua composição era inteiramente de tijolos amarelos.
            Miaaaaau! Lion berrava por dentro do agasalho de Leonard, que logo o puxou para fora. Já sobre os tijolos dourados, o felino cheirava o chão, trabalhando o seu olfato.
            - Droga, Lion! – reclamou o menino. – Ou morremos, ou bati a cabeça e estou delirando. Olha esse lugar!
            Rrrrrr. O gato ronronava, demonstrando certa segurança.
            - Será que estamos muito longe de casa? – questionou Leonard. – A Sra. Lea deve estar louca!
            - Criança? – uma voz feminina quebrou o monólogo do garoto.
            - Quem ‘tá aí? – perguntou o menino, preocupado.
            Uma mulher, de meia idade, surgiu no meio da plantação de girassóis. Ela trajava um vestido comprido, de cor clara, mas sujo. Seus cabelos eram vermelhos como rubis, e seus olhos eram azuis.
            - Não se apavore, criança. – pediu a mulher. – Não te farei mal algum... Muito pelo contrário, vou ajudar você a se encontrar.
            - Me encontrar? – questionou Leonard. – Onde estou? Troy fica muito longe daqui?
            - Troy? – a mulher pareceu confusa. – Nunca ouvi falar... O que é isso?
            - Troy... A cidade do Kansas! – explicou o garoto, segurando Lion no colo.
            - Kansas? – um sorriso se abriu, repentinamente, no rosto da mulher desconhecida. – Ora... Qual o seu nome, criança?
            - Leonard. Leonard Gale. – o menino se apresentou. – Você conhece o Kansas? ‘Tô muito longe de lá?
            A mulher colocou os pés sobre os tijolos amarelos, aproximando-se ainda mais do menino e do pequeno animal.

            - Leonard! – a mulher deixou sua animação transcender. – Como estou feliz por você chegar aqui. O meu nome é Glinda... E você está na Terra de Oz!

sábado, 20 de abril de 2013

Penalize o seu pensamento


Nos encontramos, hoje, em uma grande discussão sobre reduzir ou não a maioridade penal. E onde ficamos, nisso?

Essa discussão tem que ir muito mais além do que o simples olhar de punição.
Sabemos que o sistema carcerário brasileiro vive um estado de total descrédito, já que as chances de reabilitação são quase nulas. Enquanto que, em contrapartida, temos um momento de violência acentuada.
Mas acredito que o povo queira essa redução somente para reduzir a sensação de impunidade. O argumento que sempre sai da boca do povo é o seguinte "Se ele tem idade para votar, tem idade para ir preso!". Uma visão simplista, pois a maioria não pensa que para dirigir, por exemplo, é necessário completar os 18 anos de idade.

Além do que, esses adolescentes já são penalizados de acordo com a Lei. De acordo com seus atos, serão colocados em centros de internação específica para o seu ato, cumprindo uma medida socioeducativa. A punição não assusta o jovem. Se reduzirmos a maioridade penal para 16, teremos adolescentes de 14 anos cometendo tais atos; se reduzirmos para 14, teremos crianças de 12 anos, e assim será.

Falta clareza para entender que somos nós, a sociedade, que ajudamos a formar esses indivíduos.
Estamos lutando para a redução da maioridade penal, para que sejam punidos, mas esquecemos de quando andamos nas ruas o que mais vemos são crianças e adolescentes pedindo esmolas, usando drogas, totalmente desestruturados. Então, somente, apontamos, criticamos, julgamos e condenamos.
Esquecemos de que são humanos, e não o tratamos como tais.

O contexto em que nascemos e crescemos nos condicionou de que para conseguirmos dinheiro precisamos estudar muito, trabalhar muito para ganhá-lo. Para conseguirmos trazer alimento para dentro de casa, precisamos pagar por esse alimento. Tivemos exemplos de que a criminalidade não é o certo.
O contexto em que muitos desses jovens nasceram os condicionou de uma forma que eles entendessem a criminalidade como uma verdade única. Para conseguirem dinheiro, teriam de roubar de quem trabalha. Para conseguir alimento, teriam de roubar dos mercados. Para conseguir um bom status entre os seus, teriam de roubar e, se necessário, até matar! Os exemplos desses jovens foi de que a criminalidade é o caminho correto.

Por isso, não podemos nos deter apenas à nossa visão e ao que a mídia nos impõe.
Precisamos ser humanos e enxergar o outro como tal, ainda mais quando diz respeito ao que vai determinar sua vida.
Juntos, precisamos repensar em tudo isso e encontrar formas alternativas de solucionar o problema da violência. O que os políticos querem é encontrar medidas paliativas apenas para mostrar trabalho, já que estamos próximos das eleições.
Portanto, vamos nos questionar o seguinte: quais motivos levam os jovens a cometer tais atos? Como, então, podemos mudar esse cenário?