Pra quem ainda não
sabe, estou trabalhando como Orientador Socioeducativo num Centro para Crianças
e Adolescentes aqui da zona norte de São Paulo. Minha turma conta com cerca de
vinte e cinco crianças na faixa etária dos nove aos quinze anos de idade.
Antes mesmo de entrar
lá, eu já havia elaborado um projeto de fomento à leitura e à escrita; mas,
quando soube que faria parte da equipe de Orientadores, expandi o projeto e
dividi-o em três eixos. Hoje, o projeto consiste no Palavreando, no Fazendo
Arte e no Socializando – os três, trabalhados simultaneamente, propiciaram a
criação de um quarto: a Mostra Cultural.
Cada projeto foi
nomeado de forma que seu nome o defina.
O Palavreando
objetiva estimular a leitura e o desenvolvimento da escrita; nele,
trabalharemos a produção de diversos gêneros: mapas, manchetes, poemas,
notícias, narrativas, quadrinhos, rótulos, receitas, gráficos, placas etc. Isso
fará com que as crianças e os adolescentes conheçam as possibilidades tanto no
mundo da leitura como no da escrita – na escrita, por exemplo, elas aprenderão
que não precisam só copiar, mas que elas podem criar.
O Fazendo Arte será
focado na apreciação de obras de arte, filmes, músicas e fotografias.
Contextualizarei cada gênero de acordo com as necessidades encontradas na
turma; discutiremos sobre os possíveis significados de cada obra; conheceremos
os autores e o contexto sociocultural de cada obra. Após todo esse trabalho, no
caso das obras de arte, realizaremos releituras e versões – isso permitirá que
eles se apropriem dos detalhes passados despercebidos, bem como desenvolvam sua
criatividade e sua criação.
O Socializando foi
criado, especialmente, para fazer com que a opinião das crianças e dos
adolescentes seja ouvida – afinal, eles também fazem parte da Sociedade e têm o
direito de opinar em todo e qualquer debate. Para isso, levarei discussões
sobre temas contemporâneos, mas também discutirei temas os quais são evitados:
morte, medos, futuro etc. Ainda no Socializando, criaremos um blogue destinado
à postagens das atividades realizadas durante o ano, além das mensagens e
bilhetes que eles escreverão sobre cada tema discutido.
A Mostra Cultural,
que tem previsão para acontecer ao fim do semestre, será um evento idealizado
por eles desde o início: decoração do espaço, produção dos convites,
organização das atividades a serem exibidas etc. Isso fará com que eles
conheçam o processo de produção de um evento, onde cada um é responsável por
uma parte para que todo o grupo consiga exercer o trabalho final.
E de uma semana e
meia pra cá tem sido assim: produções, discussões, ideias... Desde ontem, por conta
do Carnaval que está por vir, estamos trabalhando sobre o tema: ontem, fizemos
uma pintura do quadro Carnaval em
Madureira, de Tarsila do Amaral – falamos um pouco das características
carnavalescas que o quadro traz; hoje, pedi que eles retratassem no papel (em
desenho ou em texto), aquilo que eles imaginam ao ouvir a palavra Carnaval.
Um Sábado Qualquer |
Nesse momento, ouvi
um comentário: “Carnaval não é de Deus!”.
No mesmo instante, uma das crianças veio me questionar isso. Perguntei à
criança que disse a frase se ela sabia o que estava dizendo; então, outra
criança repetiu: “Mas Carnaval não é,
mesmo, de Deus, Júnior!”. Então, decidi explicar um pouco sobre a festa
conhecida mundialmente.
Contei às crianças
que, possivelmente, a palavra carnaval tem dois significados: carne vale – que significa “adeus,
carne!”; e carne levamen – que significa
“supressão da carne”. Ambos os significados remetem ao que conhecemos hoje na
festa – o período que antecede a Quaresma, uma “pausa” de quarenta dias nos
excessos cometidos durante o ano; um período em que a religião católica
acredita que se deve existir a privação da carne.
Pedi às duas crianças
que insistiram que a festa “não é de Deus”,
que não tentassem impor isso às demais crianças, pois cada um é livre para
acreditar ou não acreditar no que quiser. Com isso, uma outra criança comentou:
“Júnior, eu acredito em outros deuses,
como Buda, os deuses gregos, os deuses africanos...”. Isso gerou uma
polêmica ainda maior. Do outro lado, alguém disse: “Deuses africanos? Credo! Eu não gosto de africanos...”.
Aquilo me deixou
surpreso e triste, ao mesmo tempo. Eu fiquei sem saber como agir. Pedi à
criança que não disse mais aquilo, pois era um desrespeito muito grande, um
preconceito. Expliquei que, no mundo, existem milhares de culturas, e cada
cultura acredita em algo. Comecei a citar alguns dos deuses cultuados ao redor
do mundo, hoje e antigamente: Zeus, Poseidon, Hades, Afrodite, Atena, Deus,
Tupã, Guaraci, Jaci, Jurupari, Hórus, Ísis, Tot, Set, Lilith, Brama, e disse
que há centenas de outros. Isso gerou um alvoroço.
“Só existe um Deus!”, disse uma criança. Ali, eu percebi que não
adiantaria continuar com aquela conversa; não naquele momento, sem um preparo
maior. Pedi, mais uma vez, que ninguém tentasse impor seu Deus aos demais, que
cada um acreditasse no que quisesse, mas guardasse essa crença para si. Mas
planejo voltar com esse assunto em breve, pois acredito que deva ser discutido.
O que eu quero dizer,
é que esse episódio, nada mais, é fruto da intolerância religiosa praticada
mundialmente. É o exemplo que deixamos para as nossas crianças: imponham suas
crenças às demais, pois somente a sua crença é a correta. Mas, agindo assim,
nenhuma nunca vai ser a correta, e as mortes e discriminações por intolerância
vão continuar acontecendo.
Nós, adultos, temos o
dever de rever os nossos conceitos. É isso mesmo que queremos deixar para as
crianças? Queremos, mesmo, mostrar a elas que, no mundo, apenas um deus é o
verdadeiro? Chega dessa luta idiota e ignorante! Vamos mostrar às crianças que
o mundo é feito de diferenças, é feito de peculiaridades, é feito de culturas distintas.
Vamos mostrar às
crianças que o mundo precisa ser feito de respeito.
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