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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Quando nasce a intolerância?

            Pra quem ainda não sabe, estou trabalhando como Orientador Socioeducativo num Centro para Crianças e Adolescentes aqui da zona norte de São Paulo. Minha turma conta com cerca de vinte e cinco crianças na faixa etária dos nove aos quinze anos de idade.
            Antes mesmo de entrar lá, eu já havia elaborado um projeto de fomento à leitura e à escrita; mas, quando soube que faria parte da equipe de Orientadores, expandi o projeto e dividi-o em três eixos. Hoje, o projeto consiste no Palavreando, no Fazendo Arte e no Socializando – os três, trabalhados simultaneamente, propiciaram a criação de um quarto: a Mostra Cultural.
            Cada projeto foi nomeado de forma que seu nome o defina.
            O Palavreando objetiva estimular a leitura e o desenvolvimento da escrita; nele, trabalharemos a produção de diversos gêneros: mapas, manchetes, poemas, notícias, narrativas, quadrinhos, rótulos, receitas, gráficos, placas etc. Isso fará com que as crianças e os adolescentes conheçam as possibilidades tanto no mundo da leitura como no da escrita – na escrita, por exemplo, elas aprenderão que não precisam só copiar, mas que elas podem criar.
            O Fazendo Arte será focado na apreciação de obras de arte, filmes, músicas e fotografias. Contextualizarei cada gênero de acordo com as necessidades encontradas na turma; discutiremos sobre os possíveis significados de cada obra; conheceremos os autores e o contexto sociocultural de cada obra. Após todo esse trabalho, no caso das obras de arte, realizaremos releituras e versões – isso permitirá que eles se apropriem dos detalhes passados despercebidos, bem como desenvolvam sua criatividade e sua criação.
            O Socializando foi criado, especialmente, para fazer com que a opinião das crianças e dos adolescentes seja ouvida – afinal, eles também fazem parte da Sociedade e têm o direito de opinar em todo e qualquer debate. Para isso, levarei discussões sobre temas contemporâneos, mas também discutirei temas os quais são evitados: morte, medos, futuro etc. Ainda no Socializando, criaremos um blogue destinado à postagens das atividades realizadas durante o ano, além das mensagens e bilhetes que eles escreverão sobre cada tema discutido.
            A Mostra Cultural, que tem previsão para acontecer ao fim do semestre, será um evento idealizado por eles desde o início: decoração do espaço, produção dos convites, organização das atividades a serem exibidas etc. Isso fará com que eles conheçam o processo de produção de um evento, onde cada um é responsável por uma parte para que todo o grupo consiga exercer o trabalho final.
            E de uma semana e meia pra cá tem sido assim: produções, discussões, ideias... Desde ontem, por conta do Carnaval que está por vir, estamos trabalhando sobre o tema: ontem, fizemos uma pintura do quadro Carnaval em Madureira, de Tarsila do Amaral – falamos um pouco das características carnavalescas que o quadro traz; hoje, pedi que eles retratassem no papel (em desenho ou em texto), aquilo que eles imaginam ao ouvir a palavra Carnaval.
Um Sábado Qualquer
            Nesse momento, ouvi um comentário: “Carnaval não é de Deus!”. No mesmo instante, uma das crianças veio me questionar isso. Perguntei à criança que disse a frase se ela sabia o que estava dizendo; então, outra criança repetiu: “Mas Carnaval não é, mesmo, de Deus, Júnior!”. Então, decidi explicar um pouco sobre a festa conhecida mundialmente.
            Contei às crianças que, possivelmente, a palavra carnaval tem dois significados: carne vale – que significa “adeus, carne!”; e carne levamen – que significa “supressão da carne”. Ambos os significados remetem ao que conhecemos hoje na festa – o período que antecede a Quaresma, uma “pausa” de quarenta dias nos excessos cometidos durante o ano; um período em que a religião católica acredita que se deve existir a privação da carne.
            Pedi às duas crianças que insistiram que a festa “não é de Deus”, que não tentassem impor isso às demais crianças, pois cada um é livre para acreditar ou não acreditar no que quiser. Com isso, uma outra criança comentou: “Júnior, eu acredito em outros deuses, como Buda, os deuses gregos, os deuses africanos...”. Isso gerou uma polêmica ainda maior. Do outro lado, alguém disse: “Deuses africanos? Credo! Eu não gosto de africanos...”.
            Aquilo me deixou surpreso e triste, ao mesmo tempo. Eu fiquei sem saber como agir. Pedi à criança que não disse mais aquilo, pois era um desrespeito muito grande, um preconceito. Expliquei que, no mundo, existem milhares de culturas, e cada cultura acredita em algo. Comecei a citar alguns dos deuses cultuados ao redor do mundo, hoje e antigamente: Zeus, Poseidon, Hades, Afrodite, Atena, Deus, Tupã, Guaraci, Jaci, Jurupari, Hórus, Ísis, Tot, Set, Lilith, Brama, e disse que há centenas de outros. Isso gerou um alvoroço.
            “Só existe um Deus!”, disse uma criança. Ali, eu percebi que não adiantaria continuar com aquela conversa; não naquele momento, sem um preparo maior. Pedi, mais uma vez, que ninguém tentasse impor seu Deus aos demais, que cada um acreditasse no que quisesse, mas guardasse essa crença para si. Mas planejo voltar com esse assunto em breve, pois acredito que deva ser discutido.
            O que eu quero dizer, é que esse episódio, nada mais, é fruto da intolerância religiosa praticada mundialmente. É o exemplo que deixamos para as nossas crianças: imponham suas crenças às demais, pois somente a sua crença é a correta. Mas, agindo assim, nenhuma nunca vai ser a correta, e as mortes e discriminações por intolerância vão continuar acontecendo.
            Nós, adultos, temos o dever de rever os nossos conceitos. É isso mesmo que queremos deixar para as crianças? Queremos, mesmo, mostrar a elas que, no mundo, apenas um deus é o verdadeiro? Chega dessa luta idiota e ignorante! Vamos mostrar às crianças que o mundo é feito de diferenças, é feito de peculiaridades, é feito de culturas distintas.

            Vamos mostrar às crianças que o mundo precisa ser feito de respeito.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Diabo: a criação de um implica na inexistência de outros.

            Muitas culturas acreditam em demônios, mas o Demônio (com letra maiúscula) é muito bem conhecido como o inimigo de Deus: ele é, a princípio, uma criação do Cristianismo.
            Geralmente, o Diabo é descrito como um anjo que perdeu sua luz, ou está associado com a serpente do Gênesis. Mas em Revelações, João viu o Diabo não como uma serpente, mas como um grande dragão de várias cabeças. Desde então, nestes quinze séculos, o Diabo se transformou na figura conhecida de hoje.
Estátua de Pã
            Algumas representações do deus grego da fertilidade, Pã, auxiliaram na construção do personagem conhecido atualmente: o Diabo adquiriu chifres, cascos, orelhas pontudas e um rabo – foi descrito como metade bode e metade homem. Essa descrição, contudo, bate com a descrição dos sátiros – criaturas da mitologia grega que são metade homens e metade bodes.
            O tridente de três pontas atribuído ao Diabo é o mesmo tridente de Poseidon, o
Estátua de Poseidon
deus grego dos mares. O tridente era utilizado como uma poderosa arma capaz de agitar as águas furiosamente – no épico A Odisseia, Poseidon era inimigo do herói Odisseu, e quebrava os seus navios frequentemente, fazendo com que o herói tivesse de voltar para casa.
            A cor de pele avermelhada que costumamos ver veio de Set, a entidade “maligna” egípcia. Set era o deus das tempestades, da escuridão e do caos – os gregos associavam Set com Tifão, a serpente monstro e deus da destruição.

Pintura de Set

            Até mesmo o nome do Diabo mudou no decorrer das eras: Mamon, Belzebu, Baal, Amon, Leviatã; todos, nomes que foram associados a Satã em algum momento da história. Embora esteja associado a várias entidades Pagãs e conhecido por diversos nomes, o nome mais conhecido do Diabo ficou conhecido no século cinco, após uma tradução equivocada de Isaias 14, feita por Jerônimo: Lúcifer.
            No fim do século treze, Lúcifer foi associado ao pecado do orgulho, sendo parte dos Sete Pecados Capitais. Acreditava-se que ele era um dos poderosos sete príncipes demônios que controlavam suas próprias legiões na guerra entre Céu e Inferno. A maior parte das obras literárias ajudou a estabelecer Lúcifer como o nome mais famoso do Diabo.
            A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita no início do século catorze, esboçou a visão particular do autor sobre o Inferno, dividido por níveis – baseados nos Sete Pecados Capitais; cada nível era propriedade de um demônio, embora Lúcifer não fosse apenas um príncipe demoníaco, mas o imperador do Inferno. Dante imaginou o Diabo tremendamente feio e alto (passando, até mesmo, dos gigantes), com grandes asas batendo, três rostos com cores diferentes (vermelho, amarelo e preto), com cada uma de suas três bocas mastigando as almas das pessoas más.
Yama
            O épico de Dante se tornou uma das obras mais influentes entre os Cristãos, influenciando e moldando amplamente a forma como eles enxergavam o Inferno e o Purgatório. E as descrições de Lúcifer continuaram mudando; ele já não era retratado como um monstro preto ou vermelho, mas um monstro azul; a vítima da vez era Yama, o deus hindu da morte. A cor azul representava a perda da luz divina de Deus.
            Em 1677, Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado, publicações de John Milton, fortaleceram a ideia de Lúcifer como o líder dos anjos caídos e atribui-lhe o nome oficial de Satanás, o arqui-inimigo de Deus. Milton transformou Lúcifer em um guerreiro poderosíssimo e carismático, preocupado em destruir o homem (como vingança por seu exílio); Milton fez de Lúcifer um tipo de herói romântico – sua queda é extremamente humana e compreensível por qualquer um; ele é rebelde e orgulhoso, e, em troca, perde tudo o que ele valoriza.
Diabo, retratado
como um judeu
            À medida que o tempo passava, a imagem do Diabo foi invocada repetidamente, como forma de menosprezar ou demonizar os inimigos – ainda mais se tratando de religiões concorrentes. Durante o século dezenove, o Diabo foi retratado como um judeu com um grande nariz curvo; tanto as sinagogas judaicas como as muçulmanas eram tidas como templos de Satanás.
            Hoje, para alguns, Lúcifer não representa a rebeldia e a maldade, mas a sabedoria, o conhecimento e a iluminação, livre das algemas das superstições e dos dogmas religiosos. Lúcifer se tornou um tipo de Prometeu, que trouxe conhecimento à humanidade, permitindo que os homens se tornassem semelhantes aos deuses. Ele é uma figura de liberdade e de avanço pessoal. Ele é o Portador da Luz, que traz a luz do conhecimento científico para o mundo mergulhado nas trevas das superstições que asfixiam dia-a-dia.

            Mas, para a maioria das pessoas, o Diabo ainda é a fonte de todo o mal existente, e elas esperam, temerosas e ansiosas, pelo dia em que Deus retornará à Terra para acabar de uma vez por todas com o seu inimigo mortal.
Estátua de Lúcifer