Quarta-feira, 2 de setembro | 10h07
Trabalhar com crianças e
adolescentes é algo extremamente desafiador. Trabalhar com crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social é perturbadoramente
desafiador.
Na função de orientador socioeducativo,
atuo com uma turma de crianças e adolescentes entre nove e 14 anos de idade.
Por conta disso, muitos já estão naquela fase da pré-adolescência, uma fase
conhecida por seus impulsos, desejos, questionamentos e inconformidades.
Tenho uma relação muito aberta e
verdadeira com a minha turma – somos sempre transparentes quanto aos nossos
sentimentos (entre nós e entre as pessoas que estão a nossa volta). Na última
segunda-feira, ao término da atividade, comentei com um dos meninos que eu
faltaria na faculdade para cuidar de um dos meus gatinhos de estimação porque
ele está muito doente.
— Júnior, o seu gato, por acaso, vai fazer as suas lições e dar o seu
diploma? — foi a pergunta imediata dele.
Confesso que, na hora, fiquei um
pouco surpreso com a entonação da pergunta. Ele, realmente, estava indignado
porque eu faltaria na faculdade “apenas” para cuidar do meu gatinho de
estimação que está doente e precisa de cuidados.
— Não... Ele não vai me dar o meu diploma nem fazer minhas lições —
respondi olhando nos olhos dele. — Mas, olha só, eu escolhi ter um animal de
estimação, não foi? A partir da minha escolha, vieram todas essas
responsabilidades. Eu amo o Freddy (meu gatinho) e não vou deixar de cuidar
dele... Ele está muito doente, com cálculos no trato urinário. Preciso ficar
com ele hoje.
A
indignação do menino continuou ali, firme e forte.
Então,
após as outras crianças saírem para o café, ele veio até a minha mesa:
—
Júnior... — ele falava com a cabeça baixa, sem olhar nos meus olhos. —
Eu já não sei mais o que fazer em casa.
— Como assim? — questionei.
—
Minha mãe chamou todos os meus irmãos para “sair” com ela no sábado e nem olhou
na minha cara — ele contou. — Fiquei lá... E ela nem me olhou.
—
Mas você disse que queria sair com ela? — perguntei, tentando aliviar aquela tensão.
—
Não... Mas os meus irmãos também não disseram. Ela não gosta de mim. Ela nem me
deixa jogar o meu videogame. Os meus irmãos pegam o videogame e jogam só
eles... Eu nem posso tocar.
—
Mas você já falou isso para a sua mãe?
—
Ela comprou o videogame pra mim... Porque eu fico em casa — ele respondeu. —
Mas o meu irmão até esconde o videogame pra eu não pegar. E a minha mãe não
fala nada.
—
Já tentou dizer isso para a sua mãe? — questionei-lhe. — Que você queria ter
saído com ela... Ou que você quer jogar o seu videogame?
—
Não. Porque não vai adiantar — ele concluiu.
Aqui está algo que,
infelizmente, acontece muito: a falta do diálogo no âmbito familiar. Foi só,
então, que eu compreendi; o menino não estava indignado por eu faltar na
faculdade pra cuidar do meu gatinho de estimação. Aliás, talvez o estivesse.
Talvez, ver que eu estava tão preocupado com o meu gato (que é um animal) o
tenha feito pensar o motivo daquilo não acontecer com ele (que é uma criança).
Eu,
realmente, fico preocupado quando vejo uma criança fazendo tais questionamentos
e dando-se conta de suas vidas (por vezes, tão sofrida!). A sensação que tenho
é de que a vulnerabilidade na qual se encontra essa criança está tão avançada
que, dificilmente, conseguiremos reverter a situação. A menos, é claro, que
comecemos a trabalhar diretamente com essas famílias; as famílias precisam
enxergar que também estão vulneráveis e que podem contar conosco, agentes
sociais.
Não
vou restringir apenas aos profissionais da área social, mas a todo cidadão
dentro da sociedade: é nosso dever garantir o direito de outrem.
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