sábado, 31 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte final


AS RAÍZES DA ALMA


Serra da Cantareira, Mairiporã, Brasil. Maio de 2014.

A vida de Breno havia tomado rumos que, até então, desconhecia. Tudo porque havia decidido agir como herói e ajudar uma moça em perigo – ou que parecia estar em perigo. Havia momentos em que interpretava o surgimento de Régia em sua vida como uma maldição, que trouxe tudo abaixo. Em outros, o garoto achava que ter conhecido a índia o libertou de sua prisão, a prisão interior.
            Estava ali, dentro de uma rocha encantada pela luz da lua, com uma índia e outra mulher misteriosa. O que mais viria a seguir, ele não fazia ideia e temia pensar.
            — Bem, acho que quer, antes de tudo, saber quem é a Naiá, de fato — supôs a mulher da rocha. — Não é?
            — Naiá? Se está falando da Régia, sim. Seria legal — respondeu Breno, olhando sem jeito para a índia.
            — Cari, eu prometi que contaria — disse Régia.
            — Então pode contar, Naiá — disse a mulher. — Vou lá fora ver se está tudo bem.
            A mulher desapareceu na escuridão, como mágica. Breno voltou o olhar para a índia.
            — Bem... — Régia sentou-se diante de Breno. — Eu tenho, digamos, alguns séculos de existência. Nasci em 1500, logo que os portugueses chegaram nesta terra. Fui batizada com o nome de Naiá. Quando eu era moça, exatamente como sou hoje, eu me vi fascinada pela lua. Toda noite eu saía da floresta para vê-la, escondida de meus pais e da tribo.
            Breno olhava incrédulo para a índia, embora não estivesse desatento, não havia tirado o olho de Régia.
            — Certa noite, aproximei-me de um rio e vi a lua nele. Estava tão próxima — as memórias da índia pareciam vir freneticamente. — Fiquei extasiada com aquilo. Vi uma oportunidade de chegar até ela, nadando. Sem pensar, saltei na água em direção à lua. Mas era apenas um reflexo, e eu não sabia. Morri ali mesmo, afogada.
            — Morreu? — Breno questionou, indignado.
            — Sim. Morri — confirmou a índia. — Mas Jaci, a lua, salvou a minha añã, a minha alma. Transformou o meu corpo em uma bela flor das águas e resgatou minha alma. Desde então, tenho Jaci como uma mãe e vivo com ela.
            — A lenda da Vitória-Régia! — lembrou-se o garoto. — Você é a planta!
            — Não — a índia soltou um riso. — Eu sou um espírito. A planta foi originada a partir de meu corpo físico. Não costumo utilizar o nome de Vitória Régia. Apenas Régia. E Naiá, como viu minha mãe chamar. Bem, é isso.
            — Uau! — Breno estava tentando se manter calmo, mas uma corrente elétrica percorria o seu corpo. — Eu diria que isso é folclore. Mas estou vivendo tudo isso... É impossível!
            — Eu sei que parece loucura — concordou Régia. — Mas não é.
            — E a Jaci? — indagou o rapaz. — Se ela é a lua e tem poder para salvar sua alma, ela é uma deusa?
            — Não é bem assim — Jaci surgiu novamente da escuridão, surpreendendo o garoto. — Não nos reconhecemos de tal forma. Acreditamos que essa palavra acabaria nos tornando seres imponentes, autoritários e onipotentes. E não somos isso.
            — Não são? — estranhou Breno. — Então você não é a única?
            — Mas é claro que não — a mulher riu. — Somos muitos. Mas somos divindades. Fomos criados por uma energia muito maior para cuidarmos da Terra e auxiliarmos vocês, mortais, em suas experiências terrenas.
            — Deus criou vocês? — questionou Breno.
            — Não — respondeu Jaci, com um ar de mistério. — Quem criou tudo o que há no Universo, quem criou toda a vida existente, foi Nhanderuvuçu.
            — Quem? — aquele nome pareceu um xingamento para o menino.
            — Também conhecido como Nhandejara, ou Nhamandú, meu pai é a energia maior e criadora do Universo — explicou Jaci. — É energia que nos ronda, que sempre existiu e sempre existirá. No princípio de tudo, criou as duas energias secundárias, uma positiva e a outra negativa, as quais ele chamou de añã, ou alma. Juntou as duas e formou añãdeci, a matéria. Então ele criou a água, a terra, as vegetações, os animais, e nos criou para tomar conta de cada parte.
            — E o Mão de Luva? — questionou Breno. — O que ele tem a ver com tudo isso?
            — Bem, ele era um mortal — contou Jaci. — Ele nasceu por volta de 1740. Tornou-se garimpeiro e seu nome era Manoel. Ele era um português muito ambicioso, roubou alguns dos tesouros que encontrou e os escondeu em grutas por todo o país. Mas ele não apenas escondia os tesouros, ele os oferecia para uma divindade muito perigosa em troca de riqueza eterna, de vida longa.
            — Uma divindade do mal? — questionou Breno.
            — Mais ou menos — disse Jaci. — Jurupari é meu irmão e também foi criado por meu pai. Mas ele se alimenta do mal, é conhecido como O Senhor da Escuridão. Ele mata muitos pobres coitados em seus pesadelos, pois eles não conseguem acordar e nem gritar, morrendo asfixiados.
            — Então ele é mau, sim! — insistiu Breno.
            — Breno... — Régia chamou a atenção do garoto.
            — Desculpe... — o menino percebeu que estava falando do irmão da mulher.
            — Enfim... — prosseguiu Jaci. — Manoel entregou a alma para Jurupari, que cobrou quando a hora chegou. Em 1786, quando foi aprisionado por seus crimes em Vila Rica, local hoje conhecido como Ouro Preto, Manoel tentou se suicidar. Mas Jurupari surgiu oferecendo algo melhor. Ofereceu transformá-lo em um espírito para cumprir as ordens da divindade para a eternidade.
            — Então o Mão de Luva é um capanga do demônio? — Breno pareceu aterrorizado.
            — Jurupari não é um demônio — repetiu Jaci.
            — Certo. Desculpe — pediu Breno. — Mas é que esse cara está atrás de mim!
            — O Mão de Luva fundou uma facção. A Organização Anhangüera — revelou Jaci. — Uma facção que deseja destruir todos os seres espirituais e possuir um dos maiores tesouros do mundo espiritual, a Fênix. Ele nunca foi visto desde então, mas é temido pelos animais e pelos seres espirituais. Até alguns de meus irmãos têm medo dele, por ele trabalhar para Jurupari.
            — A Fênix? — Breno balançou a cabeça e passou a mão no rosto. — O pássaro de fogo?
            — Ela não é um pássaro de fogo — corrigiu Jaci. — Angra, minha irmã, surgiu de uma centelha divina durante o processo de criação de nosso pai. Ela é a divindade do fogo. E, por ser tão agradecida ao nosso pai, ela arrancou uma das partes mais importantes do seu corpo espiritual, o coração, e modelou uma criatura para presenteá-lo.
            — Ela fez o quê? — o garoto ficou pasmo. — Ela arrancou o próprio coração para dar de presente?
            — Nosso coração não é o nosso órgão vital — explicou Jaci, imediatamente. — É o nosso órgão de sentimentos. Então ela não morreu por isso... Mas foi um grande gesto, sim. Essa criatura que ela moldou foi a Fênix, que é um pássaro assexuado. Feito a partir do coração em chamas de Angra, ele é invulnerável ao fogo, podendo ser queimado apenas pelo fogo emitido de seu próprio coração, em um processo de autocombustão.
            Breno sentiu um calafrio no momento.
            Tentou relacionar a invulnerabilidade ao fogo da Fênix com a sua. E, em seguida, achou aquilo um absurdo, afastando o pensamento. Aquilo, sim, era pura idiotice.
            — As lágrimas da Fênix podem curar qualquer ferida ou doença. Sua força permite carregar peso seis vezes maior que o seu corpo — contou Jaci. — O pássaro possui um ciclo de vida de cem anos e quando sente que está prestes a morrer, prepara uma pira de ramos de canela, sálvia e mirra, e então se incendeia.
            — Mas aí ele renasce, não é? — Breno se esqueceu, por um momento, que estava falando de um mito. Para ele, tudo aquilo era real agora.
            — Sim — afirmou Jaci. — A Fênix sempre renasce a partir de suas cinzas, demonstrando a sua imortalidade e o renascimento espiritual. Então, começou a surgir a fala de que aquele que comer da carne da Fênix será imortal. Outros dizem que as cinzas da Fênix podem levantar até os mortos. Mas o pássaro está desaparecido desde seu último ciclo de vida, que finalizou há dezoito anos.
            — A Fênix é um dos seres espirituais mais poderosos do Universo — comentou Régia.
            — Estou vendo... — disse Breno. — Olha... Se isso tudo é real... Então o Mão de Luva deve estar procurando a Fênix para conseguir a imortalidade, isso? Mas ele já não é um espírito eterno?
            — Não — respondeu Jaci. — Jurupari deu trezentos anos para ele cumprir suas ordens. E o prazo está vencendo. Após isso, seu espírito irá se incendiar e desaparecer para sempre. Por isso ele busca a Fênix. Ele poderá utilizar a imortalidade para si e Jurupari planeja erguer os mortos.
            — Todos os mortos? — perguntou Breno. — Mas eles não estão sem suas almas?
            — Exatamente — confirmou Jaci. — Imagine o que um homem é capaz de fazer sem sua alma. Imagine todos os homens que já morreram... Um exército de desalmados.
            Breno colocou as mãos no rosto e deu um profundo suspiro.
            Ele ainda não compreendia o seu papel em tudo aquilo. Não entendia o propósito de Régia em ter levado ele até ali, para aquela divindade da lua contar-lhe tudo sobre o que ele achava ser puro folclore.
            — Olha, vai parecer um pouco ignorante da minha parte... — avisou o garoto. — Mas o que tenho a ver com tudo isso?
            Régia e Jaci sorriram juntas, o que deixou o menino ainda mais confuso.
            — Você tem uma marca em seu braço, não tem? — adivinhou Jaci.
            — Sim, uma mancha... — respondeu Breno. — Mas todo mundo acha que é uma tatuagem, porque é tão bem definida.
            — E você tem um segredo, não tem? — perguntou Jaci, enigmática.
            — Segredo? — ele ficou surpreso. Não imaginava como ela podia saber sobre isso.
            — Sobre o fogo — cutucou Régia.
            — É. Tenho — disse Breno. — Eu meio que sou invulnerável ao fogo...
            — Breno, você tem uma história especial — revelou Jaci. — Sei que sua vida tem sido muito difícil e repleta de provas. Mas você precisa acreditar que um futuro melhor o espera.
            — Não entendo, Jaci... — o menino tentava não olhar para a divindade.
            — Os seus pais se propuseram a algo muito inusitado — disse Jaci. — Há dezoito anos, quando faziam uma pesquisa na Amazônia, foram procurados por alguém. Descobri isso muito recentemente, por isso pedi a ajuda de Régia. Angra, a criadora da Fênix, estava muito preocupada com o destino de sua ave, o presente que dera ao nosso pai, por conta dos planos mirabolantes de Jurupari. Ela decidiu, então, fazer algo inédito. Ela quis transferir o espírito da Fênix para o corpo de um humano.
            — E como ela conseguiu isso? — indagou Breno. — Isso mataria o humano, não?
            — Sim, isso faria com que o humano virasse pó, literalmente — concordou a divindade lunar. — Mas ela foi esperta. Há algum tempo, duas divindades experimentaram também algo novo.
            Jaci riu por um momento, demonstrando vergonha.
            — Eu lancei meu espírito na Terra, e consegui entrar no corpo de uma humana. É claro que tive que reduzir o meu nível de divindade para não destruí-la, mas consegui — revelou Jaci. — E uma outra divindade, Guaraci, fez o mesmo com o corpo de um humano.
            — Jaci e Guaraci são amantes antigos — Régia posicionou Breno na história. — Guaraci é o responsável pelo brilho do sol. Sabe aquela velha história, de que o sol e a lua jamais se encontravam?
            Breno tentou segurar o riso, imaginando o que aquilo significava.
            — É. Constrangedor, eu sei — disse Jaci. — Eu e Guaraci nos encontramos na Terra, em corpos humanos. E você pode imaginar o que aconteceu.
            — Então, provavelmente Angra pensou em inserir o espírito da Fênix naquele que seria o filho de duas divindades, ainda que incorporadas em humanos, pois só assim o corpo físico aguentaria o poder da ave? — supôs o garoto.
            — Exatamente — concluiu Jaci.
            — E onde eu entro? — questionou Breno. — Esse alguém que procurou meus pais na Amazônia foi Angra?
            — Sim, Angra os procurou — respondeu Jaci. — Sua mãe estava esperando um bebê, e nem sabia disso ainda. Foi Angra que contou.
            — Meus pais conheceram vocês, então? — estranhou Breno.
            — Foram os corpos de seus pais que eu e Guaraci “possuímos” — revelou Jaci, sem jeito. — É claro que, depois, contamos toda a verdade a eles, que receberam tudo isso muito bem. Foi inacreditável.
            — Eu era a criança que minha mãe carregava na barriga quando Angra foi procurá-la — comentou Breno.
            — Sim — respondeu Jaci. — Eu havia contado à Angra o que acontecera e ela ficou ansiosa para conhecer os seus pais.
            — O que você quer dizer com isso, Jaci? — mais uma vez, o mundo de Breno pareceu rodar.
            O garoto sentiu as pernas amolecerem. Por sorte, estava sentado, caso contrário cairia. Régia tentou se aproximar, mas o garoto fez um gesto pedindo que ela ficasse onde estava.
            Breno desejou acordar e perceber que tudo aquilo não passava de um sonho. Quis voltar para sua prisão interior. Queria poder fugir. A raiva que tomou conta do seu corpo era tão grande, pois começou a pensar que seus pais tivessem morrido apenas por sua causa. Se aquilo fosse verdade... Ele mal conseguia formular os pensamentos.
            — Breno, fique calmo! — gritou Régia, apavorada.
            Uma chama começou a se alastrar das mãos e dos pés do garoto em direção ao centro de seu corpo. Ele percebeu e ficou assustado.
            — Fique calmo, criança — suplicou Jaci. — Se você continuar assim, não poderemos ajudá-lo!
            Régia, sem medo, colocou as duas mãos no rosto do menino, que ardia. Ela retirou as mãos por um instante, sentindo o ardor em suas palmas, e então voltou-as para o rosto do garoto, tentando acalmá-lo.
            — Eu estou aqui, contigo — disse a índia, serenamente. — Fique calmo, tudo vai ficar bem, eu prometo.
            O fogo já chegava aos ombros e às coxas quando as chamas começaram a se apagar. Régia soltou um suspiro de agradecimento. Jaci olhou para cima e agradeceu.
            Breno tremia. Ele se sentou novamente, com a ajuda de Régia, que segurava a sua mão. Percebeu que Jaci o olhava profundamente, transmitindo uma calma intensa.
            — Jaci... — já recuperado, o garoto fitava a divindade da lua, como que implorando por uma certeza. — Isso quer dizer que...

            — Isso, Breno — Jaci acenou com a cabeça. — Você é a Fênix.

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