quinta-feira, 29 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte 2


UMA MULA SEM CABEÇA


Mandaqui, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.

Após ouvir o tio dar broncas durante todo o café da tarde, Breno se levantou e foi escovar os dentes. No banheiro, enquanto olhava o espelho, pensou ter visto de relance um rosto. Não qualquer rosto, mas o rosto de Régia, a menina que conhecera no dia anterior no Horto Florestal.
            O menino ainda estava intrigado com a forma que conhecera a jovem. Ouviu-a gritando pelo parque e, quando chegou até ela, descobriu que não havia nada. Ou pelo menos ela dizia que não havia nada. Mas a forma como ela olhava para o topo das árvores era como se estivesse aguardando socorro.
            Ele cuspiu a pasta de dente, enxaguou os dentes, pegou a mochila e saiu, sem avisar aonde iria. Caminhou em passos largos até o ponto de ônibus, o que fez com que chegasse em pouco menos de três minutos no ponto – ele media quase dois metros de altura, então suas pernas davam longos passos –, e pegou o ônibus Pedra Branca logo em seguida. No caminho, não parou de pensar na menina um segundo sequer. Assim que chegou ao seu destino, apressou-se ao desembarcar do ônibus e correu para o parque.
            Enquanto andava dentro do parque, tentando se lembrar a trilha exata em que havia conhecido a menina, ouviu o celular tocar. Era sua tia.
            — Alô? — Breno atendeu o telefone.
            — Como você sai e não fala nada? — questionou Dona Neide, a tia do garoto. — Não sou sua mãe, mas tenho o direito de saber por onde você anda!
            — Desculpe, tia — pediu o menino. — Esqueci que eu tinha marcado de caminhar hoje com uns amigos aqui no Horto, por isso saí correndo.
            — Amigos? — a mulher estranhou. Breno não tinha amigos.
            — Um pessoal aqui do parque — inventou o menino, de imediato. — A gente sempre se junta quando passa por aqui. Preciso ir, eles estão me esperando. Não chego tarde, tá?
            — Está certo — concordou Dona Neide. — Mas o seu tio não anda gostando muito desses seus sumiços.
            — Beijos, tia! — Breno desligou o telefone.
            Ele odiava ter que mentir, ainda mais quando era para os seus tios. Os dois suavam para sustentar a casa, o filho, e ainda tinham que sustentar o sobrinho bastardo. Mas não tinha escolhas.
            Sem ter muito trabalho, Breno logo viu uma moça à beira do lago, observando os patos. Era Régia. Ela usava o mesmo vestido do dia anterior. Sua pele morena brilhava com o crepúsculo vespertino. O menino logo se aproximou da jovem, que percebeu sua presença e se virou, sorridente.
            — Você... — disse Régia.
            — Oi! — Breno devolveu um sorriso. — Como vai?
            O garoto percebeu que ela ainda usava a mesma tiara no cabelo. Mas a flor não era mais rosada mas, sim, branca.
            — Não está meio tarde pra você passear no parque? — questionou a jovem.
            — Não tenho medo de escuro — Breno riu. — Mas você pensou estar sendo seguida ontem, como tem coragem de andar por aqui no fim da tarde?
            — Ja... — Régia se conteve. — A lua está cheia e brilhante hoje. Ela ilumina os meus caminhos.
            Breno a fitou por um instante. Quis rir, mas notou que a menina levava a sério o que tinha falado.
            — Está bem brilhante, mesmo — ele concordou. — Você tem descendência indígena?
            — É, eu tenho...  — ela soltou um riso abafado. — É tão notável assim?
            — É — respondeu Breno. — E lind...
            De repente, eles ouviram um relinchar vindo do interior do parque. Perceberam que o sol já havia se escondido completamente, enquanto a lua começava a brilhar ainda mais no céu, que escurecia e se enchia de estrelas. Haviam passado quarenta minutos, incrivelmente.
            — Uau! — Breno ficou surpreso. — O tempo passou rápido. Mas... Não sabia que aqui têm cavalos.
            — Mas não têm — confirmou Régia, com um ar de preocupação. — É melhor você ir embora, está ficando muito tarde.
            — Como assim? — Breno ficou sem entender. — Eu sou o homem daqui. Eu devia te dizer isso, não acha?
            — Não apoio essas regras de cari — disse Régia, observando atentamente as árvores ao redor.
            — Hein? — Breno não entendeu o que ela quis dizer.
            — Cari — ela repetiu. — Homem branco, da cidade. Desculpe, mas vez ou outra ainda acabo usando palavras do dialeto indígena.
            — Eu é que peço desculpas por ser tão idiota — pediu Breno. — Não quis parecer machista. Mas é que você está aí, toda valente, como se eu fosse um alvo fácil aqui.
            — Você é um babaquara — ela sorriu, ainda preocupada. — Não sabe de nada!
            — Isso aqui tá ficando cada vez melhor... — Breno estava ficando confuso.
            Então, mais uma vez um relinchar foi ouvido pelos dois. Dessa vez, foi muito mais alto. As poucas pessoas que ainda estavam no parque, já indo embora, pareciam nem ligar para aquele barulho estranho. Os guardas do parque, muito menos.
            — Ninguém está surpreso com o barulho de um cavalo aqui? — estranhou Breno.
            — Eles não podem ouvir — comentou Régia.
            — Como eles não podem ouvir? Está alto pra caramba! — contestou o garoto. — Se eu estivesse na rua eu conseguiria ouvir...
            — Não duvido disso, tingaré — ela disse com firmeza. — Ah! Isso significa, homem branco amigo. Precisamos sair daqui.
            — Sim, precisamos — confirmou o menino. — O parque vai fechar em alguns minutos.
            — Não, você precisa vir comigo — disse Régia, olhando o garoto com seriedade.
            — Ir para onde? — questionou Breno. — Só dá pra sair do parque.
            — Vem logo! — Régia segurou a mão do menino e o arrastou pelo parque.
            Depois de correr por alguns minutos parque a dentro, os dois chegaram a uma trilha que mesmo Breno, que estava habituado com o parque e achava conhecê-lo como a palma de sua mão, não conhecia. Era uma trilha estreita, onde era possível andar apenas duas pessoas, lado a lado, pois as árvores formavam extensos paredões. Um breu tomava conta de tudo, impossibilitando enxergar o que havia adiante ou mesmo atrás dos dois.
            Um brilho avermelhado começou a reluzir muito longe e, imediatamente, Régia puxou o menino para o meio das árvores. Os dois ficaram com alguns arranhões que arderiam no dia seguinte por conta da manobra inesperada. Logo em seguida, um barulho de galope começou a crescer e a ficar ensurdecedor. Então, por uma fresta no meio das árvores, os dois conseguiram descobrir o que passava pela trilha. Um animal com a cabeça em chamas, sendo cavalgado por o que parecia ser um homem.
            Alguns segundos após a passagem da criatura, Breno permanecia imóvel e com os olhos arregalados, enquanto que Régia colocava a cabeça para fora do paredão de árvores, tentando verificar se a passagem estava segura. Sem falar nada com o garoto, ela o puxou mais uma vez pela mão e o arrastou pela trilha, correndo o mais rápido que podiam. Na saída do parque, eles respiravam ofegantes, com os corpos dobrados e apoiados nos joelhos.
            — Você está bem? — perguntou Régia.
            — O que... O que foi aquilo? — os olhos de Breno continuavam arregalados e suas pupilas, dilatadas. — Mas que inferno! O que foi aquilo?
            — Falei que você é um babaquara — lembrou Régia. — Fique calmo, você precisa ir para casa.
            — Merda, Régia! — o menino estava transtornado. — Que droga foi aquilo?
            — Era um capanga do Mão de Luva — contou a moça, séria.
            — Mão de Luva? — Breno ficou com raiva da menina. — Você é louca? Que merda foi aquela? Você me deu alguma droga? Aquele cavalo estava com a cabeça pegando fogo!
            — Não era um cavalo, cari. Era uma mula — ela revelou. — Uma mula sem cabeça.
            — Quê? — a ira do menino aumentou. — Você deve ter cheirado, menina! O que você fez comigo?
            — Deixe de ser ité. Está sendo repulsivo! — disse a menina.
            — Você ficou louca? — perguntou Breno, gritando. — Mão de Luva? Mula sem cabeça? Isso é coisa de criança!
            — Pare de gritar, babaquara! — pediu Régia, fechando a boca do menino com sua mão. — Quer atrair o capanga de novo?
            — Régia, o que está acontecendo aqui? — insistiu Breno. — O que você fez comigo? Vou chamar a polícia!
            — Breno, por favor! — pediu a moça, mais uma vez. — Vou contar tudo o que quiser saber, mas você precisa ir para a sua casa agora, aqui você está em perigo.
            — Em perigo? — duvidou o menino.
            Mais uma vez, o relinchar da misteriosa criatura ressoou pelo parque.
            Os dois se entreolharam, com pavor nos olhos.
            — Vai! — ordenou Régia. — Tem um daqueles carros coletivos ali, quase saindo.
            — E você? — interrogou o jovem.
            — Vai! Eu me viro, cari! — insistiu a jovem, dando um beijo na boca de Breno e o empurrando em direção ao ônibus que estava parado no ponto.
            — Como vou encontrar você? — perguntou Breno.
            — Eu vou encontrar você, cari — respondeu Régia. — Vai!
            Breno, então, corre para o ônibus que já estava fechando a porta. Enquanto passava pela catraca, fica observando a moça enigmática, que entra novamente no parque e desaparece na escuridão, junto com o relinchar daquela criatura assustadora.
            Enquanto o ônibus se afastava do parque, o garoto ficava pensando em tudo o que tinha visto. Um homem cavalgando em um cavalo com a cabeça em chamas. Uma mula sem cabeça. Uma índia que acreditava em tudo aquilo. Por um momento, pensou novamente que talvez pudesse ter sido drogado pela garota – mas então se deu conta de que em nenhum momento provou qualquer substância oferecida por Régia. Ela nem oferecera nada.

            Aquilo era real. Ele só ainda não entendia como podia ser real.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Me dê a sua opinião, pois será importante para o meu aperfeiçoamento e para que eu possa fixar em áreas específicas da preferência do público.