UMA MULA SEM CABEÇA
Mandaqui, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.
Após ouvir o tio dar broncas durante todo o café da tarde, Breno se
levantou e foi escovar os dentes. No banheiro, enquanto olhava o espelho,
pensou ter visto de relance um rosto. Não qualquer rosto, mas o rosto de Régia,
a menina que conhecera no dia anterior no Horto Florestal.
O menino ainda estava
intrigado com a forma que conhecera a jovem. Ouviu-a gritando pelo parque e,
quando chegou até ela, descobriu que não havia nada. Ou pelo menos ela dizia
que não havia nada. Mas a forma como ela olhava para o topo das árvores era
como se estivesse aguardando socorro.
Ele cuspiu a pasta de
dente, enxaguou os dentes, pegou a mochila e saiu, sem avisar aonde iria.
Caminhou em passos largos até o ponto de ônibus, o que fez com que chegasse em
pouco menos de três minutos no ponto – ele media quase dois metros de altura,
então suas pernas davam longos passos –, e pegou o ônibus Pedra Branca logo em
seguida. No caminho, não parou de pensar na menina um segundo sequer. Assim que
chegou ao seu destino, apressou-se ao desembarcar do ônibus e correu para o
parque.
Enquanto andava dentro do
parque, tentando se lembrar a trilha exata em que havia conhecido a menina,
ouviu o celular tocar. Era sua tia.
— Alô? — Breno atendeu o
telefone.
— Como você sai e não
fala nada? — questionou Dona Neide, a tia do garoto. — Não sou sua mãe, mas
tenho o direito de saber por onde você anda!
— Desculpe, tia — pediu o
menino. — Esqueci que eu tinha marcado de caminhar hoje com uns amigos aqui no
Horto, por isso saí correndo.
— Amigos? — a mulher
estranhou. Breno não tinha amigos.
— Um pessoal aqui do
parque — inventou o menino, de imediato. — A gente sempre se junta quando passa
por aqui. Preciso ir, eles estão me esperando. Não chego tarde, tá?
— Está certo — concordou
Dona Neide. — Mas o seu tio não anda gostando muito desses seus sumiços.
— Beijos, tia! — Breno
desligou o telefone.
Ele odiava ter que
mentir, ainda mais quando era para os seus tios. Os dois suavam para sustentar
a casa, o filho, e ainda tinham que sustentar o sobrinho bastardo. Mas não tinha
escolhas.
Sem ter muito trabalho,
Breno logo viu uma moça à beira do lago, observando os patos. Era Régia. Ela
usava o mesmo vestido do dia anterior. Sua pele morena brilhava com o
crepúsculo vespertino. O menino logo se aproximou da jovem, que percebeu sua
presença e se virou, sorridente.
— Você... — disse Régia.
— Oi! — Breno devolveu um
sorriso. — Como vai?
O garoto percebeu que ela
ainda usava a mesma tiara no cabelo. Mas a flor não era mais rosada mas, sim,
branca.
— Não está meio tarde pra
você passear no parque? — questionou a jovem.
— Não tenho medo de
escuro — Breno riu. — Mas você pensou estar sendo seguida ontem, como tem
coragem de andar por aqui no fim da tarde?
— Ja... — Régia se
conteve. — A lua está cheia e brilhante hoje. Ela ilumina os meus caminhos.
Breno a fitou por um
instante. Quis rir, mas notou que a menina levava a sério o que tinha falado.
— Está bem brilhante,
mesmo — ele concordou. — Você tem descendência indígena?
— É, eu tenho... — ela soltou um riso abafado. — É tão notável
assim?
— É — respondeu Breno. —
E lind...
De repente, eles ouviram
um relinchar vindo do interior do parque. Perceberam que o sol já havia se
escondido completamente, enquanto a lua começava a brilhar ainda mais no céu,
que escurecia e se enchia de estrelas. Haviam passado quarenta minutos,
incrivelmente.
— Uau! — Breno ficou
surpreso. — O tempo passou rápido. Mas... Não sabia que aqui têm cavalos.
— Mas não têm — confirmou
Régia, com um ar de preocupação. — É melhor você ir embora, está ficando muito
tarde.
— Como assim? — Breno
ficou sem entender. — Eu sou o homem daqui. Eu devia te dizer isso, não acha?
— Não apoio essas regras
de cari — disse Régia, observando
atentamente as árvores ao redor.
— Hein? — Breno não
entendeu o que ela quis dizer.
— Cari — ela repetiu. —
Homem branco, da cidade. Desculpe, mas vez ou outra ainda acabo usando palavras
do dialeto indígena.
— Eu é que peço desculpas
por ser tão idiota — pediu Breno. — Não quis parecer machista. Mas é que você
está aí, toda valente, como se eu
fosse um alvo fácil aqui.
— Você é um babaquara — ela sorriu, ainda preocupada.
— Não sabe de nada!
— Isso aqui tá ficando
cada vez melhor... — Breno estava ficando confuso.
Então, mais uma vez um
relinchar foi ouvido pelos dois. Dessa vez, foi muito mais alto. As poucas
pessoas que ainda estavam no parque, já indo embora, pareciam nem ligar para
aquele barulho estranho. Os guardas do parque, muito menos.
— Ninguém está surpreso
com o barulho de um cavalo aqui? — estranhou Breno.
— Eles não podem ouvir —
comentou Régia.
— Como eles não podem
ouvir? Está alto pra caramba! — contestou o garoto. — Se eu estivesse na rua eu
conseguiria ouvir...
— Não duvido disso, tingaré — ela disse com firmeza. — Ah!
Isso significa, homem branco amigo. Precisamos sair daqui.
— Sim, precisamos —
confirmou o menino. — O parque vai fechar em alguns minutos.
— Não, você precisa vir
comigo — disse Régia, olhando o garoto com seriedade.
— Ir para onde? —
questionou Breno. — Só dá pra sair do parque.
— Vem logo! — Régia
segurou a mão do menino e o arrastou pelo parque.
Depois de correr por
alguns minutos parque a dentro, os dois chegaram a uma trilha que mesmo Breno,
que estava habituado com o parque e achava conhecê-lo como a palma de sua mão,
não conhecia. Era uma trilha estreita, onde era possível andar apenas duas
pessoas, lado a lado, pois as árvores formavam extensos paredões. Um breu
tomava conta de tudo, impossibilitando enxergar o que havia adiante ou mesmo
atrás dos dois.
Um brilho avermelhado
começou a reluzir muito longe e, imediatamente, Régia puxou o menino para o
meio das árvores. Os dois ficaram com alguns arranhões que arderiam no dia
seguinte por conta da manobra inesperada. Logo em seguida, um barulho de galope
começou a crescer e a ficar ensurdecedor. Então, por uma fresta no meio das
árvores, os dois conseguiram descobrir o que passava pela trilha. Um animal com
a cabeça em chamas, sendo cavalgado por o que parecia ser um homem.
Alguns segundos após a
passagem da criatura, Breno permanecia imóvel e com os olhos arregalados,
enquanto que Régia colocava a cabeça para fora do paredão de árvores, tentando
verificar se a passagem estava segura. Sem falar nada com o garoto, ela o puxou
mais uma vez pela mão e o arrastou pela trilha, correndo o mais rápido que
podiam. Na saída do parque, eles respiravam ofegantes, com os corpos dobrados e
apoiados nos joelhos.
— Você está bem? —
perguntou Régia.
— O que... O que foi
aquilo? — os olhos de Breno continuavam arregalados e suas pupilas, dilatadas.
— Mas que inferno! O que foi aquilo?
— Falei que você é um
babaquara — lembrou Régia. — Fique calmo, você precisa ir para casa.
— Merda, Régia! — o
menino estava transtornado. — Que droga foi aquilo?
— Era um capanga do Mão
de Luva — contou a moça, séria.
— Mão de Luva? — Breno
ficou com raiva da menina. — Você é louca? Que merda foi aquela? Você me deu
alguma droga? Aquele cavalo estava com a cabeça pegando fogo!
— Não era um cavalo,
cari. Era uma mula — ela revelou. — Uma mula sem cabeça.
— Quê? — a ira do menino
aumentou. — Você deve ter cheirado, menina! O que você fez comigo?
— Deixe de ser ité. Está sendo repulsivo! — disse a
menina.
— Você ficou louca? —
perguntou Breno, gritando. — Mão de Luva? Mula sem cabeça? Isso é coisa de
criança!
— Pare de gritar,
babaquara! — pediu Régia, fechando a boca do menino com sua mão. — Quer atrair
o capanga de novo?
— Régia, o que está
acontecendo aqui? — insistiu Breno. — O que você fez comigo? Vou chamar a
polícia!
— Breno, por favor! —
pediu a moça, mais uma vez. — Vou contar tudo o que quiser saber, mas você
precisa ir para a sua casa agora, aqui você está em perigo.
— Em perigo? — duvidou o
menino.
Mais uma vez, o relinchar
da misteriosa criatura ressoou pelo parque.
Os dois se entreolharam,
com pavor nos olhos.
— Vai! — ordenou Régia. —
Tem um daqueles carros coletivos ali, quase saindo.
— E você? — interrogou o
jovem.
— Vai! Eu me viro, cari!
— insistiu a jovem, dando um beijo na boca de Breno e o empurrando em direção
ao ônibus que estava parado no ponto.
— Como vou encontrar
você? — perguntou Breno.
— Eu vou encontrar você, cari — respondeu Régia. — Vai!
Breno, então, corre para
o ônibus que já estava fechando a porta. Enquanto passava pela catraca, fica
observando a moça enigmática, que entra novamente no parque e desaparece na
escuridão, junto com o relinchar daquela criatura assustadora.
Enquanto o ônibus se
afastava do parque, o garoto ficava pensando em tudo o que tinha visto. Um
homem cavalgando em um cavalo com a cabeça em chamas. Uma mula sem cabeça. Uma
índia que acreditava em tudo aquilo. Por um momento, pensou novamente que talvez
pudesse ter sido drogado pela garota – mas então se deu conta de que em nenhum
momento provou qualquer substância oferecida por Régia. Ela nem oferecera nada.
Aquilo
era real. Ele só ainda não entendia como podia ser real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Me dê a sua opinião, pois será importante para o meu aperfeiçoamento e para que eu possa fixar em áreas específicas da preferência do público.