A FUGA
Mandaqui, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.
Aquela noite seria longa para Breno. O jovem quase dera de cara com um
homem montado em uma mula sem cabeça. Desde que chegara do parque, após o
encontro com Régia, havia ficado pensativo, inquieto. Ele olhava pela janela do
quarto esperando algum sinal da índia misteriosa, enquanto o seu primo dormia.
Já era meia-noite, o
brilho da lua iluminava o quarto em que estava, e apenas algumas pessoas
andavam pela rua. O fundo da casa de seus tios dava para um bosque anexo do
Horto Florestal – e Breno não parava de pensar que, mais cedo ou mais tarde,
alguém surgiria das árvores. Ele esperava, do fundo do coração, que fosse
Régia.
— O que tá fazendo aí? —
era João, o primo de Breno. — Que horas são?
— Vai dormir! — Breno se
virou para o primo e continuou a observar o bosque pela janela.
— Eu trabalho. Acordo
cedo — resmungou João. — Ao contrário de você, que vive às custas dos meus
pais.
— O que quer dizer com
isso? — a atenção de Breno voltou-se para o primo.
— É isso mesmo — confirmou
João, abrindo um sorriso amarelo. — Você vive às custas dos meus pais e ainda
me impede de descansar em meu quarto.
— Por que você tá falando
isso, cara? — questionou Breno, aproximando-se lentamente do primo.
— Porque é a verdade — um
sorriso antipático surgiu no rosto de João. — Peninha.
Uma antiga ferida de
Breno foi cutucada ali. E foi cutucada com o graveto mais pontudo.
Breno sentiu uma dor
profunda ao relembrar tudo o que passara na infância. E a resposta instantânea
de defesa do seu inconsciente foi dar um soco no rosto do primo. Um esguicho de
sangue saltou da boca de João, que se levantou da cama e pulou sobre Breno. Os
dois começaram uma briga ali, derrubando tudo ao redor. Pouco tempo depois, os
tios de Breno entraram pela porta, afoitos.
— Mas que merda é essa? —
Alex, o tio de Breno, empurrou o sobrinho com um chute no ombro.
Breno caiu, enquanto sua
tia Neide tentava ajudá-lo. Alex, por sua vez, ajudava João a se erguer.
— O que vocês estão
fazendo? — perguntou Dona Neide, chorando. — Vocês dois são primos! Acham isso
bonito?
— Ele me provocou! —
acusou Breno. — Me chamou de Peninha.
Alex soltou um riso.
— Esse moleque não me
deixa dormir! — gritou João. — É meia-noite e ele fica andando de um lado pro
outro com a janela aberta. Eu trabalho, merda!
— Você devia respeitar
seu primo — comentou Alex.
— Eles deveriam se respeitar! — corrigiu Dona Neide.
— Eu vou embora, pode
ficar tranquilo, João — avisou Breno.
— O quê? — Dona Neide
olhou espantada para o sobrinho. — Não vai, mesmo! Você não tem que sair daqui.
— E o João não tem que
aguentar essas coisas — interviu Alex.
— Mãe? Pai? — era a filha
mais nova do casal, Drica, de dez anos. — O que tá acontecendo?
— Alex! — Dona Neide
lançou um olhar sério para o marido. — Eles precisam aprender a conviver. Ele é
seu sobrinho! Drica, meu anjo... Vai pra cama que eu já vou.
— Meu irmão morreu por
culpa dele! — berrou Alex.
— Mãe! — a menina começou
a soluçar.
— Hein? — Breno parou para observar o tio. — Que história é essa? Ele
morreu no incêndio...
— Alex, chega! — exigiu
Dona Neide. — Vem, Drica.
— Ele morreu queimado
para salvar você! — revelou Alex, irado.
Breno sentiu os ombros
encolherem. Sentiu o mundo espremendo-lhe. Aquilo era loucura, só podia. O
garoto abaixou a cabeça e começou a chorar.
— Eu avisei meu irmão que
não ia dar certo criar você — continuou Alex. — Você foi criado em laboratório,
se alimenta da vida dos outros! Você é como o fogo que matou o seu pai, consome
tudo o que está na sua frente.
— Chega, Alex! — insistiu
Dona Neide, após deixar a filha no seu quarto. — Ele não merece isso.
— Ele merece saber porque
meu irmão, o pai dele, morreu! — disse Alex, também chorando.
— Pai, acho que o senhor
está pegando pesado... — comentou João, tentando segurar o pai. — Eu e o Breno
sempre brigamos, desde pequenos, mas acabamos nos entendendo. Hoje passou um
pouco do limite.
— Tio, por favor... —
Breno soluçava, enquanto fitava Alex. — Chega, eu vou embora.
— Você tem que ouvir o
resto! — continuou Alex. — Foi você quem começou aquele maldito incêndio, sua
aberração!
— Chega! — Dona Neide deu
um tapa no rosto do marido, fazendo-lhe calar a boca.
Aproveitando o momento de
distração de todos, Breno pegou sua mochila e saiu correndo. Do quarto,
ouviu-se a porta da entrada batendo e, depois, podia-se ver o menino pela
janela do quarto correndo rua abaixo.
Breno não tinha rumo.
Chorava como uma criança enquanto vagava pelas ruas do bairro. Alguns moradores
de rua pediam-lhe esmola, mas ele nem os olhava no rosto. Sua dor era tanta que
parecia estar destruindo o seu corpo de dentro para fora. Quase foi atropelado
por um carro quando percebeu que estava correndo no meio da avenida. A sorte
foi que o motorista buzinara, assustando-lhe.
Depois de muito correr, o
garoto percebeu que estava próximo ao Horto Florestal. Foi até um dos portões
de entrada e viu que estava fechado. A guarita estava fechada, com uma fraca
luz laranja saindo de uma pequena janela – provavelmente, o guarda estava
dormindo. O menino teve a ideia absurda de subir a Rua do Horto até chegar à
entrada do Núcleo Pedra Grande do Parque da Cantareira. Se havia alguém de
guarda ali, não estava em seu posto. Sorrateiro, o menino arremessou a sua
mochila para o outro lado do portão e, em seguida, debruçou-se e escalou até
saltar para o interior do parque.
Seu coração quase saía
pela boca. Ficou com medo de chamarem a polícia e seus tios terem que ir
buscá-lo na delegacia. Não queria mais voltar para aquela casa. Não queria mais
ver o seu tio. Sentia apenas pela tia, que o acolhera como um filho, e pela
pequena Drica, que sempre vinha contar histórias da escola. E, um pouco, pelo
primo que, apesar das brigas, era um confidente.
Breno não hesitou em
seguir pela primeira trilha que veio em sua mente, a Trilha da Pedra
Grande. Levou cerca de uma hora até
chegar em seu destino: o mirante. Claro, levou alguns escorregões e ganhou
alguns arranhões por conta da escuridão – não carregava nenhuma lanterna, já
que não planejava estar ali –, além de rezar o caminho inteiro para não
encontrar nenhum bicho que pensasse que ele era uma presa.
No mirante, sentou-se
sobre o chão gelado da Pedra Grande e ficou observando a cidade. Uma névoa
pairava sobre alguns pontos, impossibilitando a visão completa. Mas, mesmo
assim, era lindo ver aquilo. Ele ouviu a grama farfalhar atrás dele e se virou,
tenso. Quando viu o que era – na verdade, quem –, seus ombros relaxaram e ele
soltou um suspiro de alívio, ainda que surpreso.
— Você — disse Breno,
sorrindo, correndo até o local.
— Venha cá — era Régia.
Ela abriu os braços e acolheu o garoto em um abraço.
Breno não fazia ideia de
como ela o encontrara ali, nem tampouco de como ela conseguira chegar ali
também. Mas isso não importava. Ele só queria que aquele abraço não acabasse.
— Você não está seguro
aqui — advertiu Régia, segurando a mão direita do menino. — Preciso tirar você
daqui o mais rápido que pudermos.
— Por quê? — questionou
Breno. — Como me encontrou?
— Vamos! — ela puxou o
garoto, quase o fazendo cair.
Os dois correram por
outra trilha e se embrenharam no meio da mata, desaparecendo naquela escuridão.
Poucos segundo depois, ouviu-se um relinchar ecoar por aquele lugar.
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