A noite era fria. Um vento úmido e gelado corria pelo quarto. Levante-me
para fechar as janelas que ainda estavam abertas. Fechando a janela da sala,
percebi algo ao lado de fora. Lá em cima, no alto das Colinas Gêmeas, havia uma
silhueta perambulando de um lado para o outro, debaixo da Árvore Santa.
Então, a figura que
andava parou. Estava muito escuro para conseguir enxergar, mas parecia que
estava olhando em minha direção. Senti um arrepio na nuca. Era como um breve
suspiro em minhas costas. Olhei para trás, aturdida, mas não havia ninguém –
era só uma má-impressão. Quando voltei a olhar para as Colinas Gêmeas, a
silhueta não estava mais lá. Somente a Árvore Santa, com seus galhos e folhas
balançando com o forte vento que tomava conta de tudo.
Fechei as cortinas e
voltei para o meu quarto. Enquanto me arrumava debaixo das cobertas, senti um
breve aroma. Era cedro. Vinha da Árvore Santa, provavelmente. Bebi um gole do
chá de gengibre e apaguei a luminária.
Estava um silêncio
infinito.
Eu não ouvia nada além
daquele zumbido interior, de quando tudo está quieto e seu ouvido fica tentando
localizar algum som. Fechei os olhos. Enfim, o meu corpo cede ao cansaço e eu
durmo. Ou, ao menos, acredito estar dormindo.
Comecei a enxergar um
foco de luz vindo da cozinha. De imediato, pensei que fosse um sonho.
Levantei-me e fui até a claridade, que se apagou quando me aproximei. Foi aí
que percebi que eu estava, de fato, acordada, na cozinha. Fiquei meio
assustada. Aquilo nunca havia acontecido. Não sou sonâmbula.
Enquanto voltava ao
quarto, senti novamente aquele aroma. Cedro.
Abri a janela da sala e
olhei para as Colinas Gêmeas. A Árvore Santa agora estava estável. Já não
ventava mais. Então de onde teria vindo o cheiro de cedro?
Para meu espanto,
enquanto eu pensava naquela hora da noite, alguém bateu à porta de casa. Fiquei
tensa. Já passavam das duas horas da manhã e eu não esperava por visitas.
Pensei na silhueta que caminhava no alto das colinas. Voltei para o meu quarto
e fechei a porta, mas continuavam a bater na porta da sala, insistentemente.
Destranquei a porta do
quarto e peguei a primeira coisa que vi na frente que, por sinal, era um
guarda-chuva. Caminhei em passos lentos e silenciosos até a sala. Perguntei
quem estava batendo, mas não ouvi resposta. Perguntei mais uma vez, e nada.
Então, sentei-me no sofá e ali fiquei.
O aroma de cedro se
intensificou. Junto, um cheiro de queimado se alastrou por minha casa. Corri
até a janela da sala e vi o que acontecia. A Árvore Santa estava em chamas.
Alguém havia iniciado um incêndio naquela árvore gigantesca. Seus galhos,
queimados, caíam enquanto as folhas secavam.
Quem estava ao lado de
fora de casa voltou a bater na porta. Dessa vez, impacientemente. Parecia que
minha porta ia cair a qualquer instante. Segurei firme o guarda-chuva.
Perguntei mais uma vez quem era. Mas não houve resposta. Decidida, e com muito
medo, abri a porta. E não havia ninguém. Ninguém. Coloquei a cabeça para fora,
olhando de um lado para o outro e não encontrei vestígio de que havia alguém
ali.
Peguei meu celular e
disquei o número da polícia. Assim que atenderam, falei que havia colocado fogo
na Árvore Santa, e a atendente ficou surpresa. Fui informada de que deveria
ligar para os bombeiros, mas expliquei que não era apenas aquele o motivo de
minha ligação. Contei que havia alguém batendo na porta de casa e que estava
escondido lá fora. Ela ia dizer algo quando a ligação caiu. Tentei discar
novamente, mas o meu celular estava sem sinal. Tentei pelo telefone fixo, mas
não havia linha. Tentei ligar o notebook, mas ele não ligava de jeito nenhum.
Entrei em desespero e
comecei a gritar por socorro.
Eu assistia a árvore
morrer a cada segundo. Era desesperador. E eu morreria também, dependendo de
quem estivesse lá fora. Chorei como criança. Então, vi que o fogo apagou
magicamente. Em seguida, começou a cair um temporal. A fumaça do que havia se
queimado subia e se misturava ao vento úmido da chuva. Era uma cena
assustadora. E ouvi, novamente, alguém bater na porta.
Não hesitei. Busquei uma
faca na cozinha e fui até a sala. Em frente à porta, abri-a com cuidado. Havia
um homem de meia-idade, com cavanhaque e vestido com roupas de frio. Ele
mantinha os olhos fixos nos meus, como se desejasse ver o meu interior.
Perguntei, com a voz
trêmula, quem ele era e o que ele queria. Ele sorriu. Foi um sorriso bonito,
mas carregava um ar de mistério. Ele fez menção de entrar na sala, quando
levantei a faca, ameaçando-lhe. Mais uma vez, ele sorriu. Apontou para a janela
que dava vista para a Árvore Santa, olhando o resto da árvore milenar.
Finalmente, ele falou. Ele me disse que aquilo não era nada. Aquilo não era
nada comparado ao que podia fazer com todo o seu poder. Tencionei os meus
ombros, amedrontada. Mas ele disse que nada faria contra mim, pois eu já havia
feito. Questionei-lhe sobre o que se referia, e ele riu mais uma vez. Senti um
impulso tomar meu braço e lancei a faca que eu segurava contra o seu peito.
Para a minha surpresa, e
pânico, nada aconteceu.
Ele continuou sorrindo.
E ali eu percebi, era um sorriso maléfico, perverso.
Eu não sabia o que
fazer. Eu não sabia quem ele era e nem o que ele queria. Eu não sabia o que
viria depois, nem imaginava o rumo que minha vida tomaria depois daquela
madrugada. Perguntei, de novo, quem ele era.
Dessa vez, ele
respondeu. Mas eu preferia nunca ter ouvido aquela resposta.
“Sou aquele que não mente.
Sou aquele que quer apenas estar entre a humanidade. Sou aquele que quer ser
humano e, por desejar ser humano, fui arremessado de meu posto ao lado de meu
pai.” Foi o que ele me respondeu. Não era brincadeira. Não era uma piada.
Aqueles olhos não eram de brincadeiras.
Quando me dei conta, eu
estava me desfazendo em lágrimas. Eu chorava como quem vê a morte à sua frente
e não quer morrer. Eu chorava como quem perde o pai, a mãe. Eu chorava como
quem chora quando não sabe o seu destino. E ele continuava ali, sorrindo e me
observando.
Perguntei, pela última
vez, o que ele queria comigo. E ele disse. Disse que queria me mostrar a
verdade. Que ele era a verdade, e não o que toda a humanidade acreditava que
fosse. Ele me disse que jamais tirou a vida de alguém por mera demonstração de
poder, ou para castigar, ou para satisfazer o seu ego. Não. Ele agia apenas por
vingança. E ele agiria vingativamente até o fim, quando pudesse retornar ao seu
posto e dizer ao seu pai que tudo o que ele queria era ser amado, como os
humanos foram amados.
Ali, notei o quão tola
fui de questioná-lo e desejar saber sobre ele. Minha vida mudou dali em diante.
Ele foi embora antes que eu pudesse perguntar ou falar qualquer outra coisa.
Ele desapareceu. Nunca mais o vi.
Mas eu ainda o sinto.
Sinto sua presença como jamais senti.
Agora, tenho um
turbilhão de confusões em minha mente. Minha vida se danou desde então. Agora
eu sei a verdade. Eu sei as duas verdades. E vou carregá-las até o fim de meus
dias, tentando saber qual é a verdade, de fato. E isso me consome. Isso me
angustia. Há dias em que desejo morrer, apenas para ter a certeza de que aquele
homem estava sendo verdadeiro ou não.
Fui tomada pelo desejo
de saber a verdade. Fui tomada pelo conhecimento.
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