quinta-feira, 19 de junho de 2014

Conto: O Fruto do Conhecimento


A noite era fria. Um vento úmido e gelado corria pelo quarto. Levante-me para fechar as janelas que ainda estavam abertas. Fechando a janela da sala, percebi algo ao lado de fora. Lá em cima, no alto das Colinas Gêmeas, havia uma silhueta perambulando de um lado para o outro, debaixo da Árvore Santa.
            Então, a figura que andava parou. Estava muito escuro para conseguir enxergar, mas parecia que estava olhando em minha direção. Senti um arrepio na nuca. Era como um breve suspiro em minhas costas. Olhei para trás, aturdida, mas não havia ninguém – era só uma má-impressão. Quando voltei a olhar para as Colinas Gêmeas, a silhueta não estava mais lá. Somente a Árvore Santa, com seus galhos e folhas balançando com o forte vento que tomava conta de tudo.
            Fechei as cortinas e voltei para o meu quarto. Enquanto me arrumava debaixo das cobertas, senti um breve aroma. Era cedro. Vinha da Árvore Santa, provavelmente. Bebi um gole do chá de gengibre e apaguei a luminária.
            Estava um silêncio infinito.
            Eu não ouvia nada além daquele zumbido interior, de quando tudo está quieto e seu ouvido fica tentando localizar algum som. Fechei os olhos. Enfim, o meu corpo cede ao cansaço e eu durmo. Ou, ao menos, acredito estar dormindo.
            Comecei a enxergar um foco de luz vindo da cozinha. De imediato, pensei que fosse um sonho. Levantei-me e fui até a claridade, que se apagou quando me aproximei. Foi aí que percebi que eu estava, de fato, acordada, na cozinha. Fiquei meio assustada. Aquilo nunca havia acontecido. Não sou sonâmbula.
            Enquanto voltava ao quarto, senti novamente aquele aroma. Cedro.
            Abri a janela da sala e olhei para as Colinas Gêmeas. A Árvore Santa agora estava estável. Já não ventava mais. Então de onde teria vindo o cheiro de cedro?
            Para meu espanto, enquanto eu pensava naquela hora da noite, alguém bateu à porta de casa. Fiquei tensa. Já passavam das duas horas da manhã e eu não esperava por visitas. Pensei na silhueta que caminhava no alto das colinas. Voltei para o meu quarto e fechei a porta, mas continuavam a bater na porta da sala, insistentemente.
            Destranquei a porta do quarto e peguei a primeira coisa que vi na frente que, por sinal, era um guarda-chuva. Caminhei em passos lentos e silenciosos até a sala. Perguntei quem estava batendo, mas não ouvi resposta. Perguntei mais uma vez, e nada. Então, sentei-me no sofá e ali fiquei.
            O aroma de cedro se intensificou. Junto, um cheiro de queimado se alastrou por minha casa. Corri até a janela da sala e vi o que acontecia. A Árvore Santa estava em chamas. Alguém havia iniciado um incêndio naquela árvore gigantesca. Seus galhos, queimados, caíam enquanto as folhas secavam.
            Quem estava ao lado de fora de casa voltou a bater na porta. Dessa vez, impacientemente. Parecia que minha porta ia cair a qualquer instante. Segurei firme o guarda-chuva. Perguntei mais uma vez quem era. Mas não houve resposta. Decidida, e com muito medo, abri a porta. E não havia ninguém. Ninguém. Coloquei a cabeça para fora, olhando de um lado para o outro e não encontrei vestígio de que havia alguém ali.
            Peguei meu celular e disquei o número da polícia. Assim que atenderam, falei que havia colocado fogo na Árvore Santa, e a atendente ficou surpresa. Fui informada de que deveria ligar para os bombeiros, mas expliquei que não era apenas aquele o motivo de minha ligação. Contei que havia alguém batendo na porta de casa e que estava escondido lá fora. Ela ia dizer algo quando a ligação caiu. Tentei discar novamente, mas o meu celular estava sem sinal. Tentei pelo telefone fixo, mas não havia linha. Tentei ligar o notebook, mas ele não ligava de jeito nenhum.
            Entrei em desespero e comecei a gritar por socorro.
            Eu assistia a árvore morrer a cada segundo. Era desesperador. E eu morreria também, dependendo de quem estivesse lá fora. Chorei como criança. Então, vi que o fogo apagou magicamente. Em seguida, começou a cair um temporal. A fumaça do que havia se queimado subia e se misturava ao vento úmido da chuva. Era uma cena assustadora. E ouvi, novamente, alguém bater na porta.
            Não hesitei. Busquei uma faca na cozinha e fui até a sala. Em frente à porta, abri-a com cuidado. Havia um homem de meia-idade, com cavanhaque e vestido com roupas de frio. Ele mantinha os olhos fixos nos meus, como se desejasse ver o meu interior.
            Perguntei, com a voz trêmula, quem ele era e o que ele queria. Ele sorriu. Foi um sorriso bonito, mas carregava um ar de mistério. Ele fez menção de entrar na sala, quando levantei a faca, ameaçando-lhe. Mais uma vez, ele sorriu. Apontou para a janela que dava vista para a Árvore Santa, olhando o resto da árvore milenar. Finalmente, ele falou. Ele me disse que aquilo não era nada. Aquilo não era nada comparado ao que podia fazer com todo o seu poder. Tencionei os meus ombros, amedrontada. Mas ele disse que nada faria contra mim, pois eu já havia feito. Questionei-lhe sobre o que se referia, e ele riu mais uma vez. Senti um impulso tomar meu braço e lancei a faca que eu segurava contra o seu peito.
            Para a minha surpresa, e pânico, nada aconteceu.
            Ele continuou sorrindo. E ali eu percebi, era um sorriso maléfico, perverso.
            Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia quem ele era e nem o que ele queria. Eu não sabia o que viria depois, nem imaginava o rumo que minha vida tomaria depois daquela madrugada. Perguntei, de novo, quem ele era.
            Dessa vez, ele respondeu. Mas eu preferia nunca ter ouvido aquela resposta.
            “Sou aquele que não mente. Sou aquele que quer apenas estar entre a humanidade. Sou aquele que quer ser humano e, por desejar ser humano, fui arremessado de meu posto ao lado de meu pai.” Foi o que ele me respondeu. Não era brincadeira. Não era uma piada. Aqueles olhos não eram de brincadeiras.
            Quando me dei conta, eu estava me desfazendo em lágrimas. Eu chorava como quem vê a morte à sua frente e não quer morrer. Eu chorava como quem perde o pai, a mãe. Eu chorava como quem chora quando não sabe o seu destino. E ele continuava ali, sorrindo e me observando.
            Perguntei, pela última vez, o que ele queria comigo. E ele disse. Disse que queria me mostrar a verdade. Que ele era a verdade, e não o que toda a humanidade acreditava que fosse. Ele me disse que jamais tirou a vida de alguém por mera demonstração de poder, ou para castigar, ou para satisfazer o seu ego. Não. Ele agia apenas por vingança. E ele agiria vingativamente até o fim, quando pudesse retornar ao seu posto e dizer ao seu pai que tudo o que ele queria era ser amado, como os humanos foram amados.
            Ali, notei o quão tola fui de questioná-lo e desejar saber sobre ele. Minha vida mudou dali em diante. Ele foi embora antes que eu pudesse perguntar ou falar qualquer outra coisa. Ele desapareceu. Nunca mais o vi.
            Mas eu ainda o sinto. Sinto sua presença como jamais senti.
            Agora, tenho um turbilhão de confusões em minha mente. Minha vida se danou desde então. Agora eu sei a verdade. Eu sei as duas verdades. E vou carregá-las até o fim de meus dias, tentando saber qual é a verdade, de fato. E isso me consome. Isso me angustia. Há dias em que desejo morrer, apenas para ter a certeza de que aquele homem estava sendo verdadeiro ou não.
            Fui tomada pelo desejo de saber a verdade. Fui tomada pelo conhecimento.

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