sábado, 31 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte final


AS RAÍZES DA ALMA


Serra da Cantareira, Mairiporã, Brasil. Maio de 2014.

A vida de Breno havia tomado rumos que, até então, desconhecia. Tudo porque havia decidido agir como herói e ajudar uma moça em perigo – ou que parecia estar em perigo. Havia momentos em que interpretava o surgimento de Régia em sua vida como uma maldição, que trouxe tudo abaixo. Em outros, o garoto achava que ter conhecido a índia o libertou de sua prisão, a prisão interior.
            Estava ali, dentro de uma rocha encantada pela luz da lua, com uma índia e outra mulher misteriosa. O que mais viria a seguir, ele não fazia ideia e temia pensar.
            — Bem, acho que quer, antes de tudo, saber quem é a Naiá, de fato — supôs a mulher da rocha. — Não é?
            — Naiá? Se está falando da Régia, sim. Seria legal — respondeu Breno, olhando sem jeito para a índia.
            — Cari, eu prometi que contaria — disse Régia.
            — Então pode contar, Naiá — disse a mulher. — Vou lá fora ver se está tudo bem.
            A mulher desapareceu na escuridão, como mágica. Breno voltou o olhar para a índia.
            — Bem... — Régia sentou-se diante de Breno. — Eu tenho, digamos, alguns séculos de existência. Nasci em 1500, logo que os portugueses chegaram nesta terra. Fui batizada com o nome de Naiá. Quando eu era moça, exatamente como sou hoje, eu me vi fascinada pela lua. Toda noite eu saía da floresta para vê-la, escondida de meus pais e da tribo.
            Breno olhava incrédulo para a índia, embora não estivesse desatento, não havia tirado o olho de Régia.
            — Certa noite, aproximei-me de um rio e vi a lua nele. Estava tão próxima — as memórias da índia pareciam vir freneticamente. — Fiquei extasiada com aquilo. Vi uma oportunidade de chegar até ela, nadando. Sem pensar, saltei na água em direção à lua. Mas era apenas um reflexo, e eu não sabia. Morri ali mesmo, afogada.
            — Morreu? — Breno questionou, indignado.
            — Sim. Morri — confirmou a índia. — Mas Jaci, a lua, salvou a minha añã, a minha alma. Transformou o meu corpo em uma bela flor das águas e resgatou minha alma. Desde então, tenho Jaci como uma mãe e vivo com ela.
            — A lenda da Vitória-Régia! — lembrou-se o garoto. — Você é a planta!
            — Não — a índia soltou um riso. — Eu sou um espírito. A planta foi originada a partir de meu corpo físico. Não costumo utilizar o nome de Vitória Régia. Apenas Régia. E Naiá, como viu minha mãe chamar. Bem, é isso.
            — Uau! — Breno estava tentando se manter calmo, mas uma corrente elétrica percorria o seu corpo. — Eu diria que isso é folclore. Mas estou vivendo tudo isso... É impossível!
            — Eu sei que parece loucura — concordou Régia. — Mas não é.
            — E a Jaci? — indagou o rapaz. — Se ela é a lua e tem poder para salvar sua alma, ela é uma deusa?
            — Não é bem assim — Jaci surgiu novamente da escuridão, surpreendendo o garoto. — Não nos reconhecemos de tal forma. Acreditamos que essa palavra acabaria nos tornando seres imponentes, autoritários e onipotentes. E não somos isso.
            — Não são? — estranhou Breno. — Então você não é a única?
            — Mas é claro que não — a mulher riu. — Somos muitos. Mas somos divindades. Fomos criados por uma energia muito maior para cuidarmos da Terra e auxiliarmos vocês, mortais, em suas experiências terrenas.
            — Deus criou vocês? — questionou Breno.
            — Não — respondeu Jaci, com um ar de mistério. — Quem criou tudo o que há no Universo, quem criou toda a vida existente, foi Nhanderuvuçu.
            — Quem? — aquele nome pareceu um xingamento para o menino.
            — Também conhecido como Nhandejara, ou Nhamandú, meu pai é a energia maior e criadora do Universo — explicou Jaci. — É energia que nos ronda, que sempre existiu e sempre existirá. No princípio de tudo, criou as duas energias secundárias, uma positiva e a outra negativa, as quais ele chamou de añã, ou alma. Juntou as duas e formou añãdeci, a matéria. Então ele criou a água, a terra, as vegetações, os animais, e nos criou para tomar conta de cada parte.
            — E o Mão de Luva? — questionou Breno. — O que ele tem a ver com tudo isso?
            — Bem, ele era um mortal — contou Jaci. — Ele nasceu por volta de 1740. Tornou-se garimpeiro e seu nome era Manoel. Ele era um português muito ambicioso, roubou alguns dos tesouros que encontrou e os escondeu em grutas por todo o país. Mas ele não apenas escondia os tesouros, ele os oferecia para uma divindade muito perigosa em troca de riqueza eterna, de vida longa.
            — Uma divindade do mal? — questionou Breno.
            — Mais ou menos — disse Jaci. — Jurupari é meu irmão e também foi criado por meu pai. Mas ele se alimenta do mal, é conhecido como O Senhor da Escuridão. Ele mata muitos pobres coitados em seus pesadelos, pois eles não conseguem acordar e nem gritar, morrendo asfixiados.
            — Então ele é mau, sim! — insistiu Breno.
            — Breno... — Régia chamou a atenção do garoto.
            — Desculpe... — o menino percebeu que estava falando do irmão da mulher.
            — Enfim... — prosseguiu Jaci. — Manoel entregou a alma para Jurupari, que cobrou quando a hora chegou. Em 1786, quando foi aprisionado por seus crimes em Vila Rica, local hoje conhecido como Ouro Preto, Manoel tentou se suicidar. Mas Jurupari surgiu oferecendo algo melhor. Ofereceu transformá-lo em um espírito para cumprir as ordens da divindade para a eternidade.
            — Então o Mão de Luva é um capanga do demônio? — Breno pareceu aterrorizado.
            — Jurupari não é um demônio — repetiu Jaci.
            — Certo. Desculpe — pediu Breno. — Mas é que esse cara está atrás de mim!
            — O Mão de Luva fundou uma facção. A Organização Anhangüera — revelou Jaci. — Uma facção que deseja destruir todos os seres espirituais e possuir um dos maiores tesouros do mundo espiritual, a Fênix. Ele nunca foi visto desde então, mas é temido pelos animais e pelos seres espirituais. Até alguns de meus irmãos têm medo dele, por ele trabalhar para Jurupari.
            — A Fênix? — Breno balançou a cabeça e passou a mão no rosto. — O pássaro de fogo?
            — Ela não é um pássaro de fogo — corrigiu Jaci. — Angra, minha irmã, surgiu de uma centelha divina durante o processo de criação de nosso pai. Ela é a divindade do fogo. E, por ser tão agradecida ao nosso pai, ela arrancou uma das partes mais importantes do seu corpo espiritual, o coração, e modelou uma criatura para presenteá-lo.
            — Ela fez o quê? — o garoto ficou pasmo. — Ela arrancou o próprio coração para dar de presente?
            — Nosso coração não é o nosso órgão vital — explicou Jaci, imediatamente. — É o nosso órgão de sentimentos. Então ela não morreu por isso... Mas foi um grande gesto, sim. Essa criatura que ela moldou foi a Fênix, que é um pássaro assexuado. Feito a partir do coração em chamas de Angra, ele é invulnerável ao fogo, podendo ser queimado apenas pelo fogo emitido de seu próprio coração, em um processo de autocombustão.
            Breno sentiu um calafrio no momento.
            Tentou relacionar a invulnerabilidade ao fogo da Fênix com a sua. E, em seguida, achou aquilo um absurdo, afastando o pensamento. Aquilo, sim, era pura idiotice.
            — As lágrimas da Fênix podem curar qualquer ferida ou doença. Sua força permite carregar peso seis vezes maior que o seu corpo — contou Jaci. — O pássaro possui um ciclo de vida de cem anos e quando sente que está prestes a morrer, prepara uma pira de ramos de canela, sálvia e mirra, e então se incendeia.
            — Mas aí ele renasce, não é? — Breno se esqueceu, por um momento, que estava falando de um mito. Para ele, tudo aquilo era real agora.
            — Sim — afirmou Jaci. — A Fênix sempre renasce a partir de suas cinzas, demonstrando a sua imortalidade e o renascimento espiritual. Então, começou a surgir a fala de que aquele que comer da carne da Fênix será imortal. Outros dizem que as cinzas da Fênix podem levantar até os mortos. Mas o pássaro está desaparecido desde seu último ciclo de vida, que finalizou há dezoito anos.
            — A Fênix é um dos seres espirituais mais poderosos do Universo — comentou Régia.
            — Estou vendo... — disse Breno. — Olha... Se isso tudo é real... Então o Mão de Luva deve estar procurando a Fênix para conseguir a imortalidade, isso? Mas ele já não é um espírito eterno?
            — Não — respondeu Jaci. — Jurupari deu trezentos anos para ele cumprir suas ordens. E o prazo está vencendo. Após isso, seu espírito irá se incendiar e desaparecer para sempre. Por isso ele busca a Fênix. Ele poderá utilizar a imortalidade para si e Jurupari planeja erguer os mortos.
            — Todos os mortos? — perguntou Breno. — Mas eles não estão sem suas almas?
            — Exatamente — confirmou Jaci. — Imagine o que um homem é capaz de fazer sem sua alma. Imagine todos os homens que já morreram... Um exército de desalmados.
            Breno colocou as mãos no rosto e deu um profundo suspiro.
            Ele ainda não compreendia o seu papel em tudo aquilo. Não entendia o propósito de Régia em ter levado ele até ali, para aquela divindade da lua contar-lhe tudo sobre o que ele achava ser puro folclore.
            — Olha, vai parecer um pouco ignorante da minha parte... — avisou o garoto. — Mas o que tenho a ver com tudo isso?
            Régia e Jaci sorriram juntas, o que deixou o menino ainda mais confuso.
            — Você tem uma marca em seu braço, não tem? — adivinhou Jaci.
            — Sim, uma mancha... — respondeu Breno. — Mas todo mundo acha que é uma tatuagem, porque é tão bem definida.
            — E você tem um segredo, não tem? — perguntou Jaci, enigmática.
            — Segredo? — ele ficou surpreso. Não imaginava como ela podia saber sobre isso.
            — Sobre o fogo — cutucou Régia.
            — É. Tenho — disse Breno. — Eu meio que sou invulnerável ao fogo...
            — Breno, você tem uma história especial — revelou Jaci. — Sei que sua vida tem sido muito difícil e repleta de provas. Mas você precisa acreditar que um futuro melhor o espera.
            — Não entendo, Jaci... — o menino tentava não olhar para a divindade.
            — Os seus pais se propuseram a algo muito inusitado — disse Jaci. — Há dezoito anos, quando faziam uma pesquisa na Amazônia, foram procurados por alguém. Descobri isso muito recentemente, por isso pedi a ajuda de Régia. Angra, a criadora da Fênix, estava muito preocupada com o destino de sua ave, o presente que dera ao nosso pai, por conta dos planos mirabolantes de Jurupari. Ela decidiu, então, fazer algo inédito. Ela quis transferir o espírito da Fênix para o corpo de um humano.
            — E como ela conseguiu isso? — indagou Breno. — Isso mataria o humano, não?
            — Sim, isso faria com que o humano virasse pó, literalmente — concordou a divindade lunar. — Mas ela foi esperta. Há algum tempo, duas divindades experimentaram também algo novo.
            Jaci riu por um momento, demonstrando vergonha.
            — Eu lancei meu espírito na Terra, e consegui entrar no corpo de uma humana. É claro que tive que reduzir o meu nível de divindade para não destruí-la, mas consegui — revelou Jaci. — E uma outra divindade, Guaraci, fez o mesmo com o corpo de um humano.
            — Jaci e Guaraci são amantes antigos — Régia posicionou Breno na história. — Guaraci é o responsável pelo brilho do sol. Sabe aquela velha história, de que o sol e a lua jamais se encontravam?
            Breno tentou segurar o riso, imaginando o que aquilo significava.
            — É. Constrangedor, eu sei — disse Jaci. — Eu e Guaraci nos encontramos na Terra, em corpos humanos. E você pode imaginar o que aconteceu.
            — Então, provavelmente Angra pensou em inserir o espírito da Fênix naquele que seria o filho de duas divindades, ainda que incorporadas em humanos, pois só assim o corpo físico aguentaria o poder da ave? — supôs o garoto.
            — Exatamente — concluiu Jaci.
            — E onde eu entro? — questionou Breno. — Esse alguém que procurou meus pais na Amazônia foi Angra?
            — Sim, Angra os procurou — respondeu Jaci. — Sua mãe estava esperando um bebê, e nem sabia disso ainda. Foi Angra que contou.
            — Meus pais conheceram vocês, então? — estranhou Breno.
            — Foram os corpos de seus pais que eu e Guaraci “possuímos” — revelou Jaci, sem jeito. — É claro que, depois, contamos toda a verdade a eles, que receberam tudo isso muito bem. Foi inacreditável.
            — Eu era a criança que minha mãe carregava na barriga quando Angra foi procurá-la — comentou Breno.
            — Sim — respondeu Jaci. — Eu havia contado à Angra o que acontecera e ela ficou ansiosa para conhecer os seus pais.
            — O que você quer dizer com isso, Jaci? — mais uma vez, o mundo de Breno pareceu rodar.
            O garoto sentiu as pernas amolecerem. Por sorte, estava sentado, caso contrário cairia. Régia tentou se aproximar, mas o garoto fez um gesto pedindo que ela ficasse onde estava.
            Breno desejou acordar e perceber que tudo aquilo não passava de um sonho. Quis voltar para sua prisão interior. Queria poder fugir. A raiva que tomou conta do seu corpo era tão grande, pois começou a pensar que seus pais tivessem morrido apenas por sua causa. Se aquilo fosse verdade... Ele mal conseguia formular os pensamentos.
            — Breno, fique calmo! — gritou Régia, apavorada.
            Uma chama começou a se alastrar das mãos e dos pés do garoto em direção ao centro de seu corpo. Ele percebeu e ficou assustado.
            — Fique calmo, criança — suplicou Jaci. — Se você continuar assim, não poderemos ajudá-lo!
            Régia, sem medo, colocou as duas mãos no rosto do menino, que ardia. Ela retirou as mãos por um instante, sentindo o ardor em suas palmas, e então voltou-as para o rosto do garoto, tentando acalmá-lo.
            — Eu estou aqui, contigo — disse a índia, serenamente. — Fique calmo, tudo vai ficar bem, eu prometo.
            O fogo já chegava aos ombros e às coxas quando as chamas começaram a se apagar. Régia soltou um suspiro de agradecimento. Jaci olhou para cima e agradeceu.
            Breno tremia. Ele se sentou novamente, com a ajuda de Régia, que segurava a sua mão. Percebeu que Jaci o olhava profundamente, transmitindo uma calma intensa.
            — Jaci... — já recuperado, o garoto fitava a divindade da lua, como que implorando por uma certeza. — Isso quer dizer que...

            — Isso, Breno — Jaci acenou com a cabeça. — Você é a Fênix.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte 4


GUIADOS PELO LUAR

Parque Estadual da Cantareira, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.

Depois de um bom tempo correndo pela escuridão daquela mata, Breno e Régia fizeram uma pausa. O garoto respirava ofegante, enquanto a menina mal demonstrava cansaço.
            — Caramba, eu cansei — disse o menino, com as mãos apoiadas sobre os joelhos. — A gente correu demais... Aquele bicho voltou, é isso?
            — Não é só um — contou Régia. — Tem um grupo de capangas do Mão de Luva atrás de você, cari. Precisamos encontrar o meu povo.
            — Mais de um? — estranhou Breno. — Não existe uma mula de cabeça, apenas? E quem é seu povo? Não tem índio aqui em São Paulo!
            — Chega de nhenhenhém — ordenou Régia. — Precisamos fugir!
            — Régia, estamos no meio de um parque, não tem pra onde fugir... — lembrou Breno. — Por que não chamamos a polícia?
            — Isso não é coisa pra polícia resolver, cari — respondeu a índia. — Venha!
            Os dois continuaram o caminho. A índia corria pelas matas escuras com muita habilidade. Já o garoto, parecia um objeto sendo arrastado, estava todo arranhado pelos galhos e pedras que entravam em seu caminho.
            Quando se deu conta, Breno estava sozinho no meio da mata. Provavelmente, Régia estava a alguns minutos à frente. Um vento bateu na pele do garoto, trazendo um cheiro estranho. Era um aroma conhecido, de alguma flor, meio adocicado e exuberante. O garoto olhou para os lados, tentando enxergar alguma coisa, sem sucesso.
            Então, surgiu uma figura feminina por trás das árvores. Ela usava uma espécie de vestido feito com folhas e uma flor branca por cima da orelha. Seus cabelos eram lisos e escorriam até os seios, refletindo o luar. Não usava maquiagem nenhuma, e nem precisava, o seu rosto era perfeito. O seu olhar penetrava no olhar de Breno, como se o puxasse até ela.
            — Oi? — Breno tentou se aproximar.
            — Garotão... — disse a mulher, passando a mão pelas curvas de seu corpo. — Quer conhecer a floresta?
            — Estou meio perdido — respondeu Breno. — Preciso encontrar uma amiga.
            — Se quiser, posso ser essa amiga — a oferta da mulher foi tentadora para o rapaz. — É só vir comigo...
            — Abaeté, deixa o abaetê em paz — era Régia, surgindo da escuridão. — Jaci me mandou até aqui.
            No instante em que ouviu o nome proferido por Régia, a mulher desapareceu na escuridão. Em seguida, Régia lançou um olhar repreensivo ao garoto.
            — O que foi? — perguntou o menino.
            — Você não consegue ficar em segurança? — indagou a índia. — Se eu não tivesse voltado, você teria sido morto!
            — Morto? — duvidou Breno. — Era só uma pobre coitada!
            — Pobre coitado é você — disse Régia, com rispidez. — Aquela era uma Dama da Noite. Você sabe do que elas são capazes?
            — Dama da Noite? — perguntou Breno. — Isso não é uma flor?
            — Não. As flores receberam esse nome por causa delas — explicou Régia. — Existem cinco espíritos da mata conhecidos como Damas da Noite. Aquela era Ipomoea, a líder delas.
            — Régia, que história é essa de espíritos da mata? — questionou Breno. — Quem é você? Se aquilo era um espírito da mata, por que me queria?
            — Tudo ao seu tempo, cari — respondeu Régia. — Precisamos ficar em segurança, primeiramente. Vem comigo. Estamos próximos.
            — Próximos de onde? — interrogou Breno.
            Régia puxou o garoto pela mão.
            Cerca de meia hora depois, os dois chegaram à beira de uma estrada de asfalto. Era uma escuridão assustadora. Breno enxergou uma placa no acostamento.
            — Mairiporã? — ele leu. — Estamos na Estrada de Santa Inês! Andamos pra caramba, Régia.
            — Fique quieto, cari — exigiu a índia. — Não estamos sozinhos aqui. Olhe ali!
            Régia apontou um pouco adiante da placa. Luzes saíam de um conjunto de construções antigas. Havia lojas e restaurantes ali.
            — O Velhão! — lembrou Breno. — Tem gente que trabalha ali, que visita ali... Vamos pedir ajuda!
            — Não! — respondeu Régia, prontamente. — Não podemos, cari... Você não entende. Precisa vir comigo.
            — Ir com você? — o menino se soltou. — Caramba, Régia... Você me fez andar tudo isso. Você me fez ver uma mula sem cabeça. E não quer me deixar pedir ajuda?
            — Breno, por favor... — insistiu Régia. — É para o seu bem. Venha comigo!
            — Aonde você vai me levar? — perguntou Breno. — Por que tudo isso?
            — Eu explico quando estivermos seguros — prometeu a índia.
            — Não — decretou o garoto. — Então, eu não vou com você. Vou lá para O Velhão e pedir ajuda. Alguém vai poder me ajudar.
            — Não! — insistiu Régia. — Ninguém mais pode te ajudar! Eu conto, se for preciso para você vir comigo...
            Breno olhou nos olhos na índia. Um carro passou rapidamente por trás dos dois, na estrada, em direção à Mairiporã.
            — Certo — respondeu Breno.
            — Você, essa sua mancha, os seus pais... — começou Régia. — Tudo tem relação com o Mão de Luva, com essas criaturas que você tem visto.
            De repente, ouviu-se um relinchar muito forte. E outro, em seguida. Não era apenas um animal, ou mula sem cabeça, que estava por ali, mas vários.
            — Eles nos alcançaram! — constatou Régia. — Precisamos ir, Breno!
            — Tudo bem, vamos logo... — o garoto sentiu um arrepio na espinha ao ouvir aqueles equinos mitológicos relinchando.
            Imediatamente, Régia puxou Breno e atravessou a estrada, embrenhando-se novamente na mata. Correndo muito rápido, Breno sentia o ar queimar seus pulmões. Estava quase caindo quando Régia parou.
            O garoto estranhou. Não havia nada ali. Era uma grande área descampada, sem árvores. Breno olhou para Régia, confuso.
            — Jaci, minha mãe, mostre-nos o caminho — as palavras que saíram repentinamente da boca de Régia assustaram o rapaz. — Guie-nos até o seu templo, minha mãe.
            — Régia... — Breno estava começando a falar quando ficou boquiaberto.
            A luz da lua se intensificou. No chão, o luar traçava um caminho perfeito que se estendia pelo horizonte. Régia prontamente segurou a mão de Breno e o arrastou pelo caminho iluminado. O garoto percebeu que o caminho se apagava à medida em que pisavam. Cerca de cinco minutos depois, chegaram a uma mata muito densa, com uma grande rocha posicionada no meio de algumas árvores.
            Instintivamente, Régia continuou a se aproximar da rocha, tocando-lhe a superfície. O luar alcançou a rocha, como um milagre – era impossível a luz da lua penetrar pelas densas copas das árvores – e possibilitou que os dois enxergasse uma passagem.
            — O que? — Breno ficou pasmo. — Não havia um buraco aí! Eu vi!
            — É Jaci — respondeu Régia, sorrindo. — Ela quer conhecer você.
            Ambos entraram na abertura que havia sido iluminada. Ao entrar, o buraco escureceu novamente, parecendo ter se fechado. Breno olhou apreensivo para Régia, com medo de morrer sufocado dentro daquela rocha, mas a índia o confortou com um breve sorriso. Enquanto caminhavam ali dentro – o que parecia ser apenas uma rocha por fora, era uma gigantesca caverna por dentro –, uma luz serena voltou a brilhar, guiando os dois na escuridão.
            Finalmente, os dois chegaram onde Régia queria.
            Naquela parte, a caverna se alargava e o seu teto parecia ser inalcançável, de tão alto. Havia algumas pedras posicionadas umas sobre as outras, centralizadas, com uma espécie de canhão de luz da lua sobre a cabeça de uma mulher que ali estava sentada.
            — Jaci, minha mãe — Régia ajoelhou-se perante a mulher, em uma reverência.
            Breno ficou olhando aquilo sem entender. Mas a mulher era linda, para variar.
            — A Régia é sua filha? — com tantas coisas para perguntar, aquela foi a primeira coisa que veio à mente do rapaz.
            — Sim — sorriu a mulher. — Estava ansiosa para conhecê-lo. Você não faz ideia do quão importante é para mim, para meus irmãos e, principalmente, para meu pai – o nosso pai.
         A única coisa que Breno conseguiu fazer foi se sentar em uma pequena pedra que havia ao seu lado. Estava disposto a ouvir tudo o que aquela mulher estranha tinha para dizer. Estava disposto, embora com medo, a ouvir toda a verdade.

Conto: O Mistério da Fênix - Parte 3


A FUGA

Mandaqui, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.

Aquela noite seria longa para Breno. O jovem quase dera de cara com um homem montado em uma mula sem cabeça. Desde que chegara do parque, após o encontro com Régia, havia ficado pensativo, inquieto. Ele olhava pela janela do quarto esperando algum sinal da índia misteriosa, enquanto o seu primo dormia.
            Já era meia-noite, o brilho da lua iluminava o quarto em que estava, e apenas algumas pessoas andavam pela rua. O fundo da casa de seus tios dava para um bosque anexo do Horto Florestal – e Breno não parava de pensar que, mais cedo ou mais tarde, alguém surgiria das árvores. Ele esperava, do fundo do coração, que fosse Régia.
            — O que tá fazendo aí? — era João, o primo de Breno. — Que horas são?
            — Vai dormir! — Breno se virou para o primo e continuou a observar o bosque pela janela.
            — Eu trabalho. Acordo cedo — resmungou João. — Ao contrário de você, que vive às custas dos meus pais.
            — O que quer dizer com isso? — a atenção de Breno voltou-se para o primo.
            — É isso mesmo — confirmou João, abrindo um sorriso amarelo. — Você vive às custas dos meus pais e ainda me impede de descansar em meu quarto.
            — Por que você tá falando isso, cara? — questionou Breno, aproximando-se lentamente do primo.
            — Porque é a verdade — um sorriso antipático surgiu no rosto de João. — Peninha.
            Uma antiga ferida de Breno foi cutucada ali. E foi cutucada com o graveto mais pontudo.
            Breno sentiu uma dor profunda ao relembrar tudo o que passara na infância. E a resposta instantânea de defesa do seu inconsciente foi dar um soco no rosto do primo. Um esguicho de sangue saltou da boca de João, que se levantou da cama e pulou sobre Breno. Os dois começaram uma briga ali, derrubando tudo ao redor. Pouco tempo depois, os tios de Breno entraram pela porta, afoitos.
            — Mas que merda é essa? — Alex, o tio de Breno, empurrou o sobrinho com um chute no ombro.
            Breno caiu, enquanto sua tia Neide tentava ajudá-lo. Alex, por sua vez, ajudava João a se erguer.
            — O que vocês estão fazendo? — perguntou Dona Neide, chorando. — Vocês dois são primos! Acham isso bonito?
            — Ele me provocou! — acusou Breno. — Me chamou de Peninha.
            Alex soltou um riso.
            — Esse moleque não me deixa dormir! — gritou João. — É meia-noite e ele fica andando de um lado pro outro com a janela aberta. Eu trabalho, merda!
            — Você devia respeitar seu primo — comentou Alex.
            — Eles deveriam se respeitar! — corrigiu Dona Neide.
            — Eu vou embora, pode ficar tranquilo, João — avisou Breno.
            — O quê? — Dona Neide olhou espantada para o sobrinho. — Não vai, mesmo! Você não tem que sair daqui.
            — E o João não tem que aguentar essas coisas — interviu Alex.
            — Mãe? Pai? — era a filha mais nova do casal, Drica, de dez anos. — O que tá acontecendo?
            — Alex! — Dona Neide lançou um olhar sério para o marido. — Eles precisam aprender a conviver. Ele é seu sobrinho! Drica, meu anjo... Vai pra cama que eu já vou.
            — Meu irmão morreu por culpa dele! — berrou Alex.
            — Mãe! — a menina começou a soluçar.
            — Hein? — Breno parou para observar o tio. — Que história é essa? Ele morreu no incêndio...
            — Alex, chega! — exigiu Dona Neide. — Vem, Drica.
            — Ele morreu queimado para salvar você! — revelou Alex, irado.
            Breno sentiu os ombros encolherem. Sentiu o mundo espremendo-lhe. Aquilo era loucura, só podia. O garoto abaixou a cabeça e começou a chorar.
            — Eu avisei meu irmão que não ia dar certo criar você — continuou Alex. — Você foi criado em laboratório, se alimenta da vida dos outros! Você é como o fogo que matou o seu pai, consome tudo o que está na sua frente.
            — Chega, Alex! — insistiu Dona Neide, após deixar a filha no seu quarto. — Ele não merece isso.
            — Ele merece saber porque meu irmão, o pai dele, morreu! — disse Alex, também chorando.
            — Pai, acho que o senhor está pegando pesado... — comentou João, tentando segurar o pai. — Eu e o Breno sempre brigamos, desde pequenos, mas acabamos nos entendendo. Hoje passou um pouco do limite.
            — Tio, por favor... — Breno soluçava, enquanto fitava Alex. — Chega, eu vou embora.
            — Você tem que ouvir o resto! — continuou Alex. — Foi você quem começou aquele maldito incêndio, sua aberração!
            — Chega! — Dona Neide deu um tapa no rosto do marido, fazendo-lhe calar a boca.
            Aproveitando o momento de distração de todos, Breno pegou sua mochila e saiu correndo. Do quarto, ouviu-se a porta da entrada batendo e, depois, podia-se ver o menino pela janela do quarto correndo rua abaixo.
            Breno não tinha rumo. Chorava como uma criança enquanto vagava pelas ruas do bairro. Alguns moradores de rua pediam-lhe esmola, mas ele nem os olhava no rosto. Sua dor era tanta que parecia estar destruindo o seu corpo de dentro para fora. Quase foi atropelado por um carro quando percebeu que estava correndo no meio da avenida. A sorte foi que o motorista buzinara, assustando-lhe.
            Depois de muito correr, o garoto percebeu que estava próximo ao Horto Florestal. Foi até um dos portões de entrada e viu que estava fechado. A guarita estava fechada, com uma fraca luz laranja saindo de uma pequena janela – provavelmente, o guarda estava dormindo. O menino teve a ideia absurda de subir a Rua do Horto até chegar à entrada do Núcleo Pedra Grande do Parque da Cantareira. Se havia alguém de guarda ali, não estava em seu posto. Sorrateiro, o menino arremessou a sua mochila para o outro lado do portão e, em seguida, debruçou-se e escalou até saltar para o interior do parque.
            Seu coração quase saía pela boca. Ficou com medo de chamarem a polícia e seus tios terem que ir buscá-lo na delegacia. Não queria mais voltar para aquela casa. Não queria mais ver o seu tio. Sentia apenas pela tia, que o acolhera como um filho, e pela pequena Drica, que sempre vinha contar histórias da escola. E, um pouco, pelo primo que, apesar das brigas, era um confidente.
            Breno não hesitou em seguir pela primeira trilha que veio em sua mente, a Trilha da Pedra Grande.  Levou cerca de uma hora até chegar em seu destino: o mirante. Claro, levou alguns escorregões e ganhou alguns arranhões por conta da escuridão – não carregava nenhuma lanterna, já que não planejava estar ali –, além de rezar o caminho inteiro para não encontrar nenhum bicho que pensasse que ele era uma presa.
            No mirante, sentou-se sobre o chão gelado da Pedra Grande e ficou observando a cidade. Uma névoa pairava sobre alguns pontos, impossibilitando a visão completa. Mas, mesmo assim, era lindo ver aquilo. Ele ouviu a grama farfalhar atrás dele e se virou, tenso. Quando viu o que era – na verdade, quem –, seus ombros relaxaram e ele soltou um suspiro de alívio, ainda que surpreso.
            — Você — disse Breno, sorrindo, correndo até o local.
            — Venha cá — era Régia. Ela abriu os braços e acolheu o garoto em um abraço.
            Breno não fazia ideia de como ela o encontrara ali, nem tampouco de como ela conseguira chegar ali também. Mas isso não importava. Ele só queria que aquele abraço não acabasse.
            — Você não está seguro aqui — advertiu Régia, segurando a mão direita do menino. — Preciso tirar você daqui o mais rápido que pudermos.
            — Por quê? — questionou Breno. — Como me encontrou?
            — Vamos! — ela puxou o garoto, quase o fazendo cair.
            Os dois correram por outra trilha e se embrenharam no meio da mata, desaparecendo naquela escuridão. Poucos segundo depois, ouviu-se um relinchar ecoar por aquele lugar.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte 2


UMA MULA SEM CABEÇA


Mandaqui, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.

Após ouvir o tio dar broncas durante todo o café da tarde, Breno se levantou e foi escovar os dentes. No banheiro, enquanto olhava o espelho, pensou ter visto de relance um rosto. Não qualquer rosto, mas o rosto de Régia, a menina que conhecera no dia anterior no Horto Florestal.
            O menino ainda estava intrigado com a forma que conhecera a jovem. Ouviu-a gritando pelo parque e, quando chegou até ela, descobriu que não havia nada. Ou pelo menos ela dizia que não havia nada. Mas a forma como ela olhava para o topo das árvores era como se estivesse aguardando socorro.
            Ele cuspiu a pasta de dente, enxaguou os dentes, pegou a mochila e saiu, sem avisar aonde iria. Caminhou em passos largos até o ponto de ônibus, o que fez com que chegasse em pouco menos de três minutos no ponto – ele media quase dois metros de altura, então suas pernas davam longos passos –, e pegou o ônibus Pedra Branca logo em seguida. No caminho, não parou de pensar na menina um segundo sequer. Assim que chegou ao seu destino, apressou-se ao desembarcar do ônibus e correu para o parque.
            Enquanto andava dentro do parque, tentando se lembrar a trilha exata em que havia conhecido a menina, ouviu o celular tocar. Era sua tia.
            — Alô? — Breno atendeu o telefone.
            — Como você sai e não fala nada? — questionou Dona Neide, a tia do garoto. — Não sou sua mãe, mas tenho o direito de saber por onde você anda!
            — Desculpe, tia — pediu o menino. — Esqueci que eu tinha marcado de caminhar hoje com uns amigos aqui no Horto, por isso saí correndo.
            — Amigos? — a mulher estranhou. Breno não tinha amigos.
            — Um pessoal aqui do parque — inventou o menino, de imediato. — A gente sempre se junta quando passa por aqui. Preciso ir, eles estão me esperando. Não chego tarde, tá?
            — Está certo — concordou Dona Neide. — Mas o seu tio não anda gostando muito desses seus sumiços.
            — Beijos, tia! — Breno desligou o telefone.
            Ele odiava ter que mentir, ainda mais quando era para os seus tios. Os dois suavam para sustentar a casa, o filho, e ainda tinham que sustentar o sobrinho bastardo. Mas não tinha escolhas.
            Sem ter muito trabalho, Breno logo viu uma moça à beira do lago, observando os patos. Era Régia. Ela usava o mesmo vestido do dia anterior. Sua pele morena brilhava com o crepúsculo vespertino. O menino logo se aproximou da jovem, que percebeu sua presença e se virou, sorridente.
            — Você... — disse Régia.
            — Oi! — Breno devolveu um sorriso. — Como vai?
            O garoto percebeu que ela ainda usava a mesma tiara no cabelo. Mas a flor não era mais rosada mas, sim, branca.
            — Não está meio tarde pra você passear no parque? — questionou a jovem.
            — Não tenho medo de escuro — Breno riu. — Mas você pensou estar sendo seguida ontem, como tem coragem de andar por aqui no fim da tarde?
            — Ja... — Régia se conteve. — A lua está cheia e brilhante hoje. Ela ilumina os meus caminhos.
            Breno a fitou por um instante. Quis rir, mas notou que a menina levava a sério o que tinha falado.
            — Está bem brilhante, mesmo — ele concordou. — Você tem descendência indígena?
            — É, eu tenho...  — ela soltou um riso abafado. — É tão notável assim?
            — É — respondeu Breno. — E lind...
            De repente, eles ouviram um relinchar vindo do interior do parque. Perceberam que o sol já havia se escondido completamente, enquanto a lua começava a brilhar ainda mais no céu, que escurecia e se enchia de estrelas. Haviam passado quarenta minutos, incrivelmente.
            — Uau! — Breno ficou surpreso. — O tempo passou rápido. Mas... Não sabia que aqui têm cavalos.
            — Mas não têm — confirmou Régia, com um ar de preocupação. — É melhor você ir embora, está ficando muito tarde.
            — Como assim? — Breno ficou sem entender. — Eu sou o homem daqui. Eu devia te dizer isso, não acha?
            — Não apoio essas regras de cari — disse Régia, observando atentamente as árvores ao redor.
            — Hein? — Breno não entendeu o que ela quis dizer.
            — Cari — ela repetiu. — Homem branco, da cidade. Desculpe, mas vez ou outra ainda acabo usando palavras do dialeto indígena.
            — Eu é que peço desculpas por ser tão idiota — pediu Breno. — Não quis parecer machista. Mas é que você está aí, toda valente, como se eu fosse um alvo fácil aqui.
            — Você é um babaquara — ela sorriu, ainda preocupada. — Não sabe de nada!
            — Isso aqui tá ficando cada vez melhor... — Breno estava ficando confuso.
            Então, mais uma vez um relinchar foi ouvido pelos dois. Dessa vez, foi muito mais alto. As poucas pessoas que ainda estavam no parque, já indo embora, pareciam nem ligar para aquele barulho estranho. Os guardas do parque, muito menos.
            — Ninguém está surpreso com o barulho de um cavalo aqui? — estranhou Breno.
            — Eles não podem ouvir — comentou Régia.
            — Como eles não podem ouvir? Está alto pra caramba! — contestou o garoto. — Se eu estivesse na rua eu conseguiria ouvir...
            — Não duvido disso, tingaré — ela disse com firmeza. — Ah! Isso significa, homem branco amigo. Precisamos sair daqui.
            — Sim, precisamos — confirmou o menino. — O parque vai fechar em alguns minutos.
            — Não, você precisa vir comigo — disse Régia, olhando o garoto com seriedade.
            — Ir para onde? — questionou Breno. — Só dá pra sair do parque.
            — Vem logo! — Régia segurou a mão do menino e o arrastou pelo parque.
            Depois de correr por alguns minutos parque a dentro, os dois chegaram a uma trilha que mesmo Breno, que estava habituado com o parque e achava conhecê-lo como a palma de sua mão, não conhecia. Era uma trilha estreita, onde era possível andar apenas duas pessoas, lado a lado, pois as árvores formavam extensos paredões. Um breu tomava conta de tudo, impossibilitando enxergar o que havia adiante ou mesmo atrás dos dois.
            Um brilho avermelhado começou a reluzir muito longe e, imediatamente, Régia puxou o menino para o meio das árvores. Os dois ficaram com alguns arranhões que arderiam no dia seguinte por conta da manobra inesperada. Logo em seguida, um barulho de galope começou a crescer e a ficar ensurdecedor. Então, por uma fresta no meio das árvores, os dois conseguiram descobrir o que passava pela trilha. Um animal com a cabeça em chamas, sendo cavalgado por o que parecia ser um homem.
            Alguns segundos após a passagem da criatura, Breno permanecia imóvel e com os olhos arregalados, enquanto que Régia colocava a cabeça para fora do paredão de árvores, tentando verificar se a passagem estava segura. Sem falar nada com o garoto, ela o puxou mais uma vez pela mão e o arrastou pela trilha, correndo o mais rápido que podiam. Na saída do parque, eles respiravam ofegantes, com os corpos dobrados e apoiados nos joelhos.
            — Você está bem? — perguntou Régia.
            — O que... O que foi aquilo? — os olhos de Breno continuavam arregalados e suas pupilas, dilatadas. — Mas que inferno! O que foi aquilo?
            — Falei que você é um babaquara — lembrou Régia. — Fique calmo, você precisa ir para casa.
            — Merda, Régia! — o menino estava transtornado. — Que droga foi aquilo?
            — Era um capanga do Mão de Luva — contou a moça, séria.
            — Mão de Luva? — Breno ficou com raiva da menina. — Você é louca? Que merda foi aquela? Você me deu alguma droga? Aquele cavalo estava com a cabeça pegando fogo!
            — Não era um cavalo, cari. Era uma mula — ela revelou. — Uma mula sem cabeça.
            — Quê? — a ira do menino aumentou. — Você deve ter cheirado, menina! O que você fez comigo?
            — Deixe de ser ité. Está sendo repulsivo! — disse a menina.
            — Você ficou louca? — perguntou Breno, gritando. — Mão de Luva? Mula sem cabeça? Isso é coisa de criança!
            — Pare de gritar, babaquara! — pediu Régia, fechando a boca do menino com sua mão. — Quer atrair o capanga de novo?
            — Régia, o que está acontecendo aqui? — insistiu Breno. — O que você fez comigo? Vou chamar a polícia!
            — Breno, por favor! — pediu a moça, mais uma vez. — Vou contar tudo o que quiser saber, mas você precisa ir para a sua casa agora, aqui você está em perigo.
            — Em perigo? — duvidou o menino.
            Mais uma vez, o relinchar da misteriosa criatura ressoou pelo parque.
            Os dois se entreolharam, com pavor nos olhos.
            — Vai! — ordenou Régia. — Tem um daqueles carros coletivos ali, quase saindo.
            — E você? — interrogou o jovem.
            — Vai! Eu me viro, cari! — insistiu a jovem, dando um beijo na boca de Breno e o empurrando em direção ao ônibus que estava parado no ponto.
            — Como vou encontrar você? — perguntou Breno.
            — Eu vou encontrar você, cari — respondeu Régia. — Vai!
            Breno, então, corre para o ônibus que já estava fechando a porta. Enquanto passava pela catraca, fica observando a moça enigmática, que entra novamente no parque e desaparece na escuridão, junto com o relinchar daquela criatura assustadora.
            Enquanto o ônibus se afastava do parque, o garoto ficava pensando em tudo o que tinha visto. Um homem cavalgando em um cavalo com a cabeça em chamas. Uma mula sem cabeça. Uma índia que acreditava em tudo aquilo. Por um momento, pensou novamente que talvez pudesse ter sido drogado pela garota – mas então se deu conta de que em nenhum momento provou qualquer substância oferecida por Régia. Ela nem oferecera nada.

            Aquilo era real. Ele só ainda não entendia como podia ser real.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Conto: O Mistério da Fênix - Parte 1


Horto Florestal, São Paulo, Brasil. Maio de 2014.

Aquele era mais um dia chato e comum.
            Ou era o que Breno pensava. Um garoto de dezessete anos, recém-formado do ensino médio e morador de uma das cidades mais populosas do planeta, São Paulo. O menino morava com os tios, pois era órfão desde os dez anos de idade, quando os pais morreram em um incêndio no prédio em que viviam.
            Desde então, sempre fora tido como um garoto problemático. Não que fosse. Os médicos sempre tentavam justificar a sua introversão como algo positivo, que talvez ele prestasse mais atenção para dentro de si do que para o mundo exterior. Mas não era isso. Breno se sentia diferente, e o era, de fato. Durante o incêndio que matara os seus pais, que se iniciou de maneira misteriosa e até hoje não revelada, o menino não se queimou, nem teve a pele lesionada. Foi algo totalmente enigmático, que a família e até mesmo os médicos atribuíram à um milagre divino.
            Com a chegada da adolescência, as coisas complicaram muito mais. Breno se viu em um mundo totalmente perverso, onde os colegas de escola zombavam dele por ser órfão, por ser tímido. Mas o maior motivo de zombaria era sua mancha de nascença no braço esquerdo. Uma perfeita pena desenhada. Nem mesmo ele entendia como algo tão perfeito pudesse ser um “defeito” da genética. O menino era conhecido como “Peninha”. Por vezes, a ira do garoto acabava causando certos acontecimentos inexplicáveis – por sorte, até então ninguém jamais presenciara tais fatos. Certa vez, enquanto usava o banheiro, um grupo de adolescentes começou a chutar a cabine onde estava até quebrar a porta, deixando-o completamente constrangido. Assim que os meninos saíram, rindo pelos corredores da escola, Breno pegou uma bituca de cigarro do chão, ainda acesa, e pressionou contra o próprio pulso, tentando fazer uma besteira. Mas, para a sua surpresa, nada aconteceu. Exatamente. A pele do menino continuou intacta. Aquilo fez Breno jogar a bituca no chão e sair correndo para a sala de aula, e ele nunca tocou no assunto com ninguém.
            Morando na casa dos tios, no bairro do Mandaqui, Breno adorava ir ao Horto Florestal. O contato com a natureza o deixava mais calmo e afastava todo e qualquer pensamento ruim. Naquele dia, havia saído bem cedo para caminhar no parque.
            Após algumas horas de caminhada dentro do parque, Breno se deitou sob algumas árvores, admirando a sua copa. De repente, ouviu um grito vindo de uma das trilha do parque. Era um grito feminino. Sem hesitar, o menino correu até a direção do grito, mas quando chegou no local, viu apenas uma jovem olhando para galhos vazios.
            — Moça? — o menino se aproximou. — Está tudo bem?
            — Oh! — a menina olhou de um modo desconfortável. — Eu... Eu pensei ter visto alguém me seguindo.
            — Ah... É que você gritou tão alto — comentei. — Acho que algum guarda vai chegar daqui a pouco.
            — Você me ouviu gritar? — a jovem o olhou com um ar de desconfiança.
            — O parque inteiro deve ter ouvido, moça... — Breno respondeu. — Mas se está tudo bem aí, sem problemas.
            — Não! — ela se aproximou.
            O rosto da moça tinha traços levemente indígenas. Seu cabelo liso e preto escorria até a metade de suas costas. Ela usava uma tiara com uma linda flor rosa, cheia de pétalas, e um vestido que a deixava confortável.
            — Não? — estranhou Breno, dando um passo para trás, com receio.
            — Não pode ir embora sem eu ao menos agradecê-lo — completou a jovem. — Obrigado pela preocupação.
            — Mas você disse que não havia ninguém aqui — lembrou o menino. —, que era só imaginação...
            — Eu sei — respondeu a jovem. — Mesmo assim, você se preocupou. Prazer! O meu nome é Régia.
            Breno estendeu a mão, copiando o gesto da moça e a cumprimentando. Ficou com vontade de coçar os seus cabelos ruivos, de tão confuso que estava.
            — Você gosta da natureza, não é? — perguntou a jovem. — Do jeito que você admira... Dá para perceber.
            — É... — gaguejou Breno. — Eu gosto. Aliás... O prazer é meu! Meu nome é Breno.
            — Breno? — Régia demonstrou certa surpresa. — Nome bonito.
            — Bem, preciso ir, Régia... — disse Breno. — Já estou fora de casa há algumas horas e meus tios devem estar preocupados.
            — Seus tios? — estranhou a moça. — Não vive com os seus pais?
            Breno se sentiu esquisito demais para começar a falar de sua vida pessoal para um estranho – por mais que o estranho fosse uma mulher linda como aquela.
            — Bem... Não — respondeu o menino. —Preciso ir.
            — Tudo bem — disse Régia, olhando Breno nos olhos. — Até a próxima!
            — Até! — disse Breno, voltando pela trilha, em direção à saída do parque.

Régia continuou ali, na trilha, observando os galhos das árvores. Eles continuavam vazios. Então, um serelepe – um esquilo com cerca de vinte centímetros de comprimento – saltou do tronco de uma árvore em direção à jovem.
            — Oi! — a moça o pegou em sua mão sem medo e sem qualquer dificuldade. — Pode avisar o Povo da Mata que encontramos o nosso líder... E diga que estou bem.
            O serelepe escutou atento às instruções da jovem, devolvendo um olhar emotivo.
            — Vá! — Régia solta o bichinho no chão. — Diga a eles que ainda temos uma chance!
            Assim, o pequeno esquilo saltou de volta na árvore e subiu com destreza, saltitando para a árvore da frente, e para outra, e outra...

Durante o caminho de volta, no ônibus, Breno ficou pensando na jovem que conhecera no parque. Ela era linda, sem dúvidas, mas muito misteriosa. Agiu de modo tão estranho quando ele a questionou o motivo de sua gritaria, como se ninguém devesse ter ouvido.
            Já em casa, em seu quarto, Breno brincava com um isqueiro. Ele não fumava, mas sempre mantinha um dentro de sua mochila – apenas para fazer a sua brincadeira preferida nos momentos de tensão. Ele acendia o isqueiro e passava a mão pela chama. E ele nunca se queimava, e não entendia a razão disso. Qualquer pessoa se queimaria, faria sérios estragos. Mas ele, não. Ele era invulnerável ao fogo, e tinha que guardar este segredo.

            Mais uma vez, o rosto de Régia surgiu na mente de Breno. Aquela menina realmente havia-o deixado intrigado. E ele mal conversara com ela. Se já não passasse das cinco da tarde, voltaria ao parque para tentar encontrar a menina e conversar mais com ela. Mas decidiu que não daria certo. Então arrumou as suas coisas e desceu para jantar com a família, como se aquele fosse mais um dia chato e comum.

sábado, 17 de maio de 2014

Ser e Falar. A fenda entre as duas posições.


Sempre há aquelas pessoas que dizem que temos que ser assim, ou daquele jeito. Ou daquele outro.
Sempre há aquelas pessoas que ditam que devemos fazer assim, ou daquela forma. Ou daquela outra.
Existem, ainda, as pessoas que querem que pensemos como elas, ou daquela forma. Ou daquela outra.

Depois de seguir todos esses passos, essas "receitas" de como viver na sociedade, dei-me conta de que nenhuma pode ser seguida. Aliás, poder ser seguida, pode...

Um dia eu acordei e me dei conta de que há um abismo sem fim entre o SER e o FALAR.
Há pessoas que falam tanto, se dizem o modelo pra tantas coisas. E, no fim, não conseguem resolver os próprios problemas.
Não que isso seja recriminável. Mas é estranho. Se você fala tanto como ser alguém, porque você não é esse alguém?

Por causa dos medos. Os medos de anos ainda assombram.
Mas como conseguem falar como o outro deve vencer o seu medo se elas mesmas não conseguem vencê-lo? É isso que me inquieta.

Pare de falar. Aja mais. Seja aquele que você cria em seus sofismas.
Não vou lutar pelo outro sem antes eu lutar por mim. Não vou tentar mostrar os benefícios da mudança ao outro, sem antes eu conseguir enxergar estes benefícios.

Goste de quem você é, e não do que você diz ser.