AS RAÍZES DA ALMA
Serra da Cantareira, Mairiporã, Brasil. Maio de 2014.
A vida de Breno havia tomado rumos que, até então, desconhecia. Tudo
porque havia decidido agir como herói e ajudar uma moça em perigo – ou que
parecia estar em perigo. Havia momentos em que interpretava o surgimento de
Régia em sua vida como uma maldição, que trouxe tudo abaixo. Em outros, o
garoto achava que ter conhecido a índia o libertou de sua prisão, a prisão
interior.
Estava ali, dentro de uma
rocha encantada pela luz da lua, com uma índia e outra mulher misteriosa. O que
mais viria a seguir, ele não fazia ideia e temia pensar.
— Bem, acho que quer, antes
de tudo, saber quem é a Naiá, de fato — supôs a mulher da rocha. — Não é?
— Naiá? Se está falando
da Régia, sim. Seria legal — respondeu Breno, olhando sem jeito para a índia.
— Cari, eu prometi que
contaria — disse Régia.
— Então pode contar, Naiá
— disse a mulher. — Vou lá fora ver se está tudo bem.
A mulher desapareceu na
escuridão, como mágica. Breno voltou o olhar para a índia.
— Bem... — Régia
sentou-se diante de Breno. — Eu tenho, digamos, alguns séculos de existência.
Nasci em 1500, logo que os portugueses chegaram nesta terra. Fui batizada com o
nome de Naiá. Quando eu era moça, exatamente como sou hoje, eu me vi fascinada
pela lua. Toda noite eu saía da floresta para vê-la, escondida de meus pais e
da tribo.
Breno olhava incrédulo para
a índia, embora não estivesse desatento, não havia tirado o olho de Régia.
— Certa noite,
aproximei-me de um rio e vi a lua nele. Estava tão próxima — as memórias da
índia pareciam vir freneticamente. — Fiquei extasiada com aquilo. Vi uma oportunidade
de chegar até ela, nadando. Sem pensar, saltei na água em direção à lua. Mas
era apenas um reflexo, e eu não sabia. Morri ali mesmo, afogada.
— Morreu? — Breno
questionou, indignado.
— Sim. Morri — confirmou
a índia. — Mas Jaci, a lua, salvou a minha añã,
a minha alma. Transformou o meu corpo em uma bela flor das águas e resgatou
minha alma. Desde então, tenho Jaci como uma mãe e vivo com ela.
— A lenda da
Vitória-Régia! — lembrou-se o garoto. — Você é a planta!
— Não — a índia soltou um
riso. — Eu sou um espírito. A planta foi originada a partir de meu corpo
físico. Não costumo utilizar o nome de Vitória Régia. Apenas Régia. E Naiá,
como viu minha mãe chamar. Bem, é isso.
— Uau! — Breno estava
tentando se manter calmo, mas uma corrente elétrica percorria o seu corpo. — Eu
diria que isso é folclore. Mas estou vivendo tudo isso... É impossível!
— Eu sei que parece
loucura — concordou Régia. — Mas não é.
— E a Jaci? — indagou o
rapaz. — Se ela é a lua e tem poder para salvar sua alma, ela é uma deusa?
— Não é bem assim — Jaci
surgiu novamente da escuridão, surpreendendo o garoto. — Não nos reconhecemos
de tal forma. Acreditamos que essa palavra acabaria nos tornando seres
imponentes, autoritários e onipotentes. E não somos isso.
— Não são? — estranhou Breno. — Então você não
é a única?
— Mas é claro que não — a
mulher riu. — Somos muitos. Mas somos divindades. Fomos criados por uma energia
muito maior para cuidarmos da Terra e auxiliarmos vocês, mortais, em suas
experiências terrenas.
— Deus criou vocês? —
questionou Breno.
— Não — respondeu Jaci,
com um ar de mistério. — Quem criou tudo o que há no Universo, quem criou toda
a vida existente, foi Nhanderuvuçu.
— Quem? — aquele nome
pareceu um xingamento para o menino.
— Também conhecido como
Nhandejara, ou Nhamandú, meu pai é a energia maior e criadora do Universo —
explicou Jaci. — É energia que nos ronda, que sempre existiu e sempre existirá.
No princípio de tudo, criou as duas energias secundárias, uma positiva e a
outra negativa, as quais ele chamou de añã, ou alma. Juntou as duas e formou añãdeci, a matéria. Então ele criou a
água, a terra, as vegetações, os animais, e nos criou para tomar conta de cada
parte.
— E o Mão de Luva? —
questionou Breno. — O que ele tem a ver com tudo isso?
— Bem, ele era um mortal
— contou Jaci. — Ele nasceu por volta de 1740. Tornou-se garimpeiro e seu nome
era Manoel. Ele era um português muito ambicioso, roubou alguns dos tesouros
que encontrou e os escondeu em grutas por todo o país. Mas ele não apenas
escondia os tesouros, ele os oferecia para uma divindade muito perigosa em
troca de riqueza eterna, de vida longa.
— Uma divindade do mal? —
questionou Breno.
— Mais ou menos — disse
Jaci. — Jurupari é meu irmão e também foi criado por meu pai. Mas ele se
alimenta do mal, é conhecido como O Senhor da Escuridão. Ele mata muitos pobres
coitados em seus pesadelos, pois eles não conseguem acordar e nem gritar,
morrendo asfixiados.
— Então ele é mau, sim! —
insistiu Breno.
— Breno... — Régia chamou
a atenção do garoto.
— Desculpe... — o menino
percebeu que estava falando do irmão da mulher.
— Enfim... — prosseguiu
Jaci. — Manoel entregou a alma para Jurupari, que cobrou quando a hora chegou.
Em 1786, quando foi aprisionado por seus crimes em Vila Rica, local hoje conhecido
como Ouro Preto, Manoel tentou se suicidar. Mas Jurupari surgiu oferecendo algo
melhor. Ofereceu transformá-lo em um espírito para cumprir as ordens da
divindade para a eternidade.
— Então o Mão de Luva é
um capanga do demônio? — Breno pareceu aterrorizado.
— Jurupari não é um
demônio — repetiu Jaci.
— Certo. Desculpe — pediu
Breno. — Mas é que esse cara está atrás de mim!
— O Mão de Luva fundou
uma facção. A Organização Anhangüera — revelou Jaci. — Uma facção que deseja
destruir todos os seres espirituais e possuir um dos maiores tesouros do mundo
espiritual, a Fênix. Ele nunca foi visto desde então, mas é temido pelos
animais e pelos seres espirituais. Até alguns de meus irmãos têm medo dele, por
ele trabalhar para Jurupari.
— A Fênix? — Breno
balançou a cabeça e passou a mão no rosto. — O pássaro de fogo?
— Ela não é um pássaro de
fogo — corrigiu Jaci. — Angra, minha irmã, surgiu de uma centelha divina
durante o processo de criação de nosso pai. Ela é a divindade do fogo. E, por
ser tão agradecida ao nosso pai, ela arrancou uma das partes mais importantes
do seu corpo espiritual, o coração, e modelou uma criatura para presenteá-lo.
— Ela fez o quê? — o
garoto ficou pasmo. — Ela arrancou o próprio coração para dar de presente?
— Nosso coração não é o
nosso órgão vital — explicou Jaci, imediatamente. — É o nosso órgão de
sentimentos. Então ela não morreu por isso... Mas foi um grande gesto, sim.
Essa criatura que ela moldou foi a Fênix, que é um pássaro assexuado. Feito a
partir do coração em chamas de Angra, ele é invulnerável ao fogo, podendo ser
queimado apenas pelo fogo emitido de seu próprio coração, em um processo de
autocombustão.
Breno sentiu um calafrio
no momento.
Tentou relacionar a
invulnerabilidade ao fogo da Fênix com a sua. E, em seguida, achou aquilo um
absurdo, afastando o pensamento. Aquilo, sim, era pura idiotice.
— As lágrimas da Fênix
podem curar qualquer ferida ou doença. Sua força permite carregar peso seis
vezes maior que o seu corpo — contou Jaci. — O pássaro possui um ciclo de vida
de cem anos e quando sente que está prestes a morrer, prepara uma pira de ramos
de canela, sálvia e mirra, e então se incendeia.
— Mas aí ele renasce, não
é? — Breno se esqueceu, por um momento, que estava falando de um mito. Para
ele, tudo aquilo era real agora.
— Sim — afirmou Jaci. — A
Fênix sempre renasce a partir de suas cinzas, demonstrando a sua imortalidade e
o renascimento espiritual. Então, começou a surgir a fala de que aquele que
comer da carne da Fênix será imortal. Outros dizem que as cinzas da Fênix podem
levantar até os mortos. Mas o pássaro está desaparecido desde seu último ciclo
de vida, que finalizou há dezoito anos.
— A Fênix é um dos seres
espirituais mais poderosos do Universo — comentou Régia.
— Estou vendo... — disse
Breno. — Olha... Se isso tudo é real... Então o Mão de Luva deve estar
procurando a Fênix para conseguir a imortalidade, isso? Mas ele já não é um
espírito eterno?
— Não — respondeu Jaci. —
Jurupari deu trezentos anos para ele cumprir suas ordens. E o prazo está
vencendo. Após isso, seu espírito irá se incendiar e desaparecer para sempre.
Por isso ele busca a Fênix. Ele poderá utilizar a imortalidade para si e
Jurupari planeja erguer os mortos.
— Todos os mortos? —
perguntou Breno. — Mas eles não estão sem suas almas?
— Exatamente — confirmou
Jaci. — Imagine o que um homem é capaz de fazer sem sua alma. Imagine todos os
homens que já morreram... Um exército de desalmados.
Breno colocou as mãos no
rosto e deu um profundo suspiro.
Ele ainda não compreendia
o seu papel em tudo aquilo. Não entendia o propósito de Régia em ter levado ele
até ali, para aquela divindade da lua contar-lhe tudo sobre o que ele achava
ser puro folclore.
— Olha, vai parecer um
pouco ignorante da minha parte... — avisou o garoto. — Mas o que tenho a ver
com tudo isso?
Régia e Jaci sorriram
juntas, o que deixou o menino ainda mais confuso.
— Você tem uma marca em
seu braço, não tem? — adivinhou Jaci.
— Sim, uma mancha... —
respondeu Breno. — Mas todo mundo acha que é uma tatuagem, porque é tão bem definida.
— E você tem um segredo,
não tem? — perguntou Jaci, enigmática.
— Segredo? — ele ficou
surpreso. Não imaginava como ela podia saber sobre isso.
— Sobre o fogo — cutucou
Régia.
— É. Tenho — disse Breno.
— Eu meio que sou invulnerável ao fogo...
— Breno, você tem uma
história especial — revelou Jaci. — Sei que sua vida tem sido muito difícil e
repleta de provas. Mas você precisa acreditar que um futuro melhor o espera.
— Não entendo, Jaci... —
o menino tentava não olhar para a divindade.
— Os seus pais se
propuseram a algo muito inusitado — disse Jaci. — Há dezoito anos, quando
faziam uma pesquisa na Amazônia, foram procurados por alguém. Descobri isso
muito recentemente, por isso pedi a ajuda de Régia. Angra, a criadora da Fênix,
estava muito preocupada com o destino de sua ave, o presente que dera ao nosso
pai, por conta dos planos mirabolantes de Jurupari. Ela decidiu, então, fazer
algo inédito. Ela quis transferir o espírito da Fênix para o corpo de um
humano.
— E como ela conseguiu
isso? — indagou Breno. — Isso mataria o humano, não?
— Sim, isso faria com que
o humano virasse pó, literalmente — concordou a divindade lunar. — Mas ela foi
esperta. Há algum tempo, duas divindades experimentaram também algo novo.
Jaci riu por um momento,
demonstrando vergonha.
— Eu lancei meu espírito
na Terra, e consegui entrar no corpo de uma humana. É claro que tive que
reduzir o meu nível de divindade para não destruí-la, mas consegui — revelou
Jaci. — E uma outra divindade, Guaraci, fez o mesmo com o corpo de um humano.
— Jaci e Guaraci são
amantes antigos — Régia posicionou Breno na história. — Guaraci é o responsável
pelo brilho do sol. Sabe aquela velha história, de que o sol e a lua jamais se
encontravam?
Breno tentou segurar o
riso, imaginando o que aquilo significava.
— É. Constrangedor, eu
sei — disse Jaci. — Eu e Guaraci nos encontramos na Terra, em corpos humanos. E
você pode imaginar o que aconteceu.
— Então, provavelmente
Angra pensou em inserir o espírito da Fênix naquele que seria o filho de duas
divindades, ainda que incorporadas em humanos, pois só assim o corpo físico
aguentaria o poder da ave? — supôs o garoto.
— Exatamente — concluiu
Jaci.
— E onde eu entro? —
questionou Breno. — Esse alguém que procurou meus pais na Amazônia foi Angra?
— Sim, Angra os procurou
— respondeu Jaci. — Sua mãe estava esperando um bebê, e nem sabia disso ainda.
Foi Angra que contou.
— Meus pais conheceram
vocês, então? — estranhou Breno.
— Foram os corpos de seus
pais que eu e Guaraci “possuímos” — revelou Jaci, sem jeito. — É claro que, depois,
contamos toda a verdade a eles, que receberam tudo isso muito bem. Foi
inacreditável.
— Eu era a criança que
minha mãe carregava na barriga quando Angra foi procurá-la — comentou Breno.
— Sim — respondeu Jaci. —
Eu havia contado à Angra o que acontecera e ela ficou ansiosa para conhecer os
seus pais.
— O que você quer dizer
com isso, Jaci? — mais uma vez, o mundo de Breno pareceu rodar.
O garoto sentiu as pernas
amolecerem. Por sorte, estava sentado, caso contrário cairia. Régia tentou se
aproximar, mas o garoto fez um gesto pedindo que ela ficasse onde estava.
Breno desejou acordar e
perceber que tudo aquilo não passava de um sonho. Quis voltar para sua prisão
interior. Queria poder fugir. A raiva que tomou conta do seu corpo era tão
grande, pois começou a pensar que seus pais tivessem morrido apenas por sua
causa. Se aquilo fosse verdade... Ele mal conseguia formular os pensamentos.
— Breno, fique calmo! —
gritou Régia, apavorada.
Uma chama começou a se
alastrar das mãos e dos pés do garoto em direção ao centro de seu corpo. Ele
percebeu e ficou assustado.
— Fique calmo, criança —
suplicou Jaci. — Se você continuar assim, não poderemos ajudá-lo!
Régia, sem medo, colocou
as duas mãos no rosto do menino, que ardia. Ela retirou as mãos por um
instante, sentindo o ardor em suas palmas, e então voltou-as para o rosto do
garoto, tentando acalmá-lo.
— Eu estou aqui, contigo
— disse a índia, serenamente. — Fique calmo, tudo vai ficar bem, eu prometo.
O fogo já chegava aos
ombros e às coxas quando as chamas começaram a se apagar. Régia soltou um
suspiro de agradecimento. Jaci olhou para cima e agradeceu.
Breno tremia. Ele se
sentou novamente, com a ajuda de Régia, que segurava a sua mão. Percebeu que
Jaci o olhava profundamente, transmitindo uma calma intensa.
— Jaci... — já
recuperado, o garoto fitava a divindade da lua, como que implorando por uma
certeza. — Isso quer dizer que...
— Isso, Breno — Jaci
acenou com a cabeça. — Você é a Fênix.