sábado, 21 de fevereiro de 2015

Conto - Terror na Rodovia

            A noite estava abafada. Não havia uma nuvem no céu; em contrapartida, as estrelas revestiam toda aquela imensidão de cor azul escuro. A rodovia, por sorte, estava livre – quase não se via carros passando pela pista contrária, nem atrás, nem à frente. Eram apenas Rodolfo e Luís, dentro daquele carro.
            — Caramba! — reclamou Luís. — Que calor horrível! Já é quase meia noite e o tempo ainda está assim...
            — Esta região aqui de Araçatuba é assim mesmo — comentou Rodolfo. — Mas estamos quase lá; só mais umas duas horas e chegaremos em Ilha Solteira.
            O casal estava dirigindo rumo à cidade de Ilha Solteira, última cidade do estado de São Paulo antes da divisa com Mato Grosso do Sul. A família de Rodolfo era do interior, e o jovem estava levando o namorado para apresentá-lo aos seus pais.
            — Se à noite é assim, imagine durante o dia! — pensou Luís, incomodado com o clima. — Mais duas horas e estaremos carbonizados...
            — Pare de ser exagerado, Luís! — pediu Rodolfo. — Lá tem um rio enorme pra você se refrescar durante o dia. Relaxa!
            — “Nhandeara” — comentou Luís. — Que nome esquisito, o dessa cidade!
            — É um nome de origem tupi — explicou Rodolfo.
            O carro estava com as janelas da frente abertas, para refrescar um pouco a viagem do casal. Alguns insetos acabavam entrando no carro e perturbando Luís, mas aquilo não era nada comparado àquele calor insuportável que o rapaz sentia.
            De repente, o carro começou a perder a velocidade. As luzes do painel frontal piscaram três vezes e se apagaram; depois, foi a vez dos faróis do carro. Estava um breu.
            — O que aconteceu? — questionou Luís, olhando ao redor. Estava tudo muito escuro, não havia sinal algum de uma cidade próxima. Nenhum carro passava na rodovia.
            — Caramba... Não sei! — respondeu Rodolfo. — A bateria deve ter arriado, ou algo do tipo. Não sei!
            — Como assim? — Luís ficou espantado. — Você não checou o carro antes da gente sair? Não podemos ficar parados aqui no meio do nada!
            — Espera um pouco... — Rodolfo tentou ligar o carro, mas não conseguiu. — Não sei o que houve. Vou precisar sair e procurar ajuda.
            — O quê? — Luís não acreditou no que ouvira. — Ficou louco, Rodolfo? Olha a escuridão que está lá fora! Por que não usa o celular?
            — Celular, neste meio do nada? — interrogou o jovem. — Não tem sinal aqui, Luís. Se eu não sair e procurar ajuda, ficaremos aqui, sabe-se lá até quando!
            — Rodolfo, não tem onde buscar ajuda! — insistiu Luís.
            Rodolfo saiu do carro e caminhou em volta do veículo. O rapaz esticava o pescoço para o lado direito da pista, tentando ver se encontrava alguma moradia no meio daquele campo sem fim.
            — Acho que tem uma casa ali — Rodolfo apontou no meio do nada.
            — Onde? — estranhou Luís. — Não vejo nada!
            — Olhe bem ali... — pediu Rodolfo. — Está vendo um pontinho iluminado? É uma janela! Tem uma casa ali!
            — Então vamos lá! — disse Luís.
            — Não! — respondeu o motorista, prontamente. — Se o carro ficar sozinho, pode ser roubado ou algo do tipo. Você fica; eu volto rápido!
            — Sozinho? — perguntou Luís, soltando um leve gemido de medo.
            — Eu volto logo! Prometo — Rodolfo deu um selinho no namorado, pegou duas lanternas no porta-luvas, uma para ele e outra para Luís. — Espere no carro.
            Assim, Rodolfo se embrenhou no meio do mato e desapareceu na escuridão.
            Enquanto isso, Luís ficou sentado no banco do passageiro, mexendo no celular. A lanterna iluminava o interior do carro, proporcionando um pouco mais de segurança ao rapaz.
            Pouco tempo depois, Luís ouviu um barulho; pelo retrovisor, o rapaz pôde ver os faróis de um carro se aproximando. Ele apagou a lanterna imediatamente e ficou em silêncio, tentando não chamar atenção.


            O carro passou ao lado, na pista, e estacionou no acostamento logo à frente.
            Luís começou a suar frio; achou que seria roubado, sequestrado ou, até mesmo, morto. O jovem começou a rezar em voz baixa e tremia.
            — Oi! — uma voz masculina ecoou dentro do carro. — ‘Tá tudo bem aí?
            — Oi — Luís abriu os olhos e encarou o homem na janela do carro. — Acho que a bateria do carro arriou. Meu nam... Meu amigo foi procurar ajuda.
            Ele preferiu não comentar que tinha um namorado. Se o homem desconhecido fosse homofóbico, mataria ele ali mesmo.
            — Ajuda? — estranhou o homem misterioso. Ele usava uma barba rala e seus olhos carregavam um ar sombrio. — A cidade mais próxima daqui está a uns trinta quilômetros. E se ele voltou, vai ter que andar, pelo menos, cinquenta quilômetros. Quer uma carona?
            — Não! — respondeu de imediato. — O Rodolfo não voltou... Ele acha que viu uma casa no meio do pasto, e foi até lá tentar pedir ajuda. Obrigado.
            — Tem certeza? Não há ninguém morando num raio de vinte quilômetros — comentou o homem. — Meu nome é Fernando. Moro em Pereira Barreto, é perto daqui. Se quiser, posso te dar uma carona até um posto policial.
            — Obrigado, mesmo... — agradeceu Luís, desconfiado. — Mas prefiro esperar pelo Rodolfo.
            — Esse Rodolfo é seu namorado, né? — questionou Fernando, intrometido.
            — Hein? — Luís começou a ficar mais apreensivo e demonstrou sua tensão.
            — Você tem uma aliança... — Fernando apontou para o dedo do rapaz. — Você não deixaria sua namorada para viajar com um amigo em plenas vésperas do Natal.
            — Cara, desculpe... — Luís estava incomodado. — Será que você pode ir?
            — Tudo bem! — disse Fernando, mostrando um belo sorriso. — Vou deixá-lo em paz. Espero que seu namorado não te deixe aqui plantado a noite inteira, pois você não merece. Boa sorte!
            Assim, Fernando volta para o seu carro e some na escuridão da rodovia.
            Luís reacende a lanterna e tenta ligar para o celular de Rodolfo, mas não consegue. O rapaz sai do carro e anda para o campo à sua direita – havia um pequeno morro, onde, talvez, o sinal do celular tivesse uma maior intensidade.
            Sobre o morro, Luís enxerga melhor a luz vista por Rodolfo; mas também se dá conta de que, com certeza, aquela não era a luz da janela de uma casa. O que Luís via era uma espécie de fogueira, bem longe dali, como uma festa. Havia algumas pessoas em volta do fogo, caminhando em círculo. Também havia quatro tochas, formando um quadrado em volta do círculo.
            Preocupado com o que pudesse ter acontecido ao seu namorado, Luís desceu do morro e caminhou rumo ao local. Já próximo da fogueira, o rapaz pôde distinguir nitidamente todo o evento: oito pessoas faziam uma espécie de ciranda em volta das chamas, cantando em um idioma desconhecido para Luís – pareciam estar num transe, numa hipnose.
            No meio do círculo, Luís conseguiu enxergar Rodolfo. Ele estava deitado sobre uma tábua de pedra, com um punhal ensanguentado ao lado de seu corpo. Então, Luís percebeu uma mancha vermelha na mão do namorado – sangue.
            — Rodolfo! — gritou Luís, saindo do meio do matagal em direção ao corpo do namorado.
            Nesse instante, as oito pessoas se calaram. Dois homens seguiram exatamente na direção de Luís e o agarraram pelos braços.
            — Me soltem! — gritou o jovem. — Socorro!
            Mas Luís desmaio enquanto era carregado para a tábua de pedra e via seu namorado se levantar como se nada tivesse acontecido.
            Cinco minutos depois, Luís foi acordado por Rodolfo, que mostrava um sorriso largo. Rodolfo passou a mão sobre o rosto de Luís e removeu o pano que impedia o jovem de gritar.
            — O que você está fazendo? — perguntou Luís, consternado. — Que droga é essa?
            — Fique calmo, não vai demorar — pediu Rodolfo, com calma total. — Colabore com a gente e tudo ficará bem.
            — Rodolfo, o que é isso? — insistiu Luís. — Me solta! Me deixa ir embora daqui... O que você ‘tá fazendo?
            — Silêncio! — o garoto deu um tapa para calar o namorado.
            Em seguida, os dois homens voltaram, junto com as outras seis pessoas. Todos fitavam Luís seriamente.
            — Quem são vocês? — questionou Luís, choramingando.
            — Minha família — respondeu Rodolfo. — Eu não disse que você os conheceria? Pois, então!
            — O Rodolfo é um garoto e tanto — comentou uma mulher, no círculo. Ela tinha feições semelhantes às de Rodolfo. — Como mãe, tenho orgulho de vivenciar a passagem de meu filho à vida adulta.
            — Do que ela está falando? — perguntou Luís, irritado e, ao mesmo tempo, desesperado, tentando se livrar das cordas que o amarravam.
            — Somos de uma linhagem secreta — revelou Rodolfo. — Sempre que um de nós completa os vinte e um anos, participamos do ritual de passagem à vida adulta. E você é meu convidado especial!
            — Não quero participar desta merda! — reclamou o menino, sem mais lágrimas para chorar. — Me tira daqui! Você me enganou o tempo todo... Como fui imbecil!
            — Não te enganei! — respondeu Rodolfo, ofendido. — Eu amo você, de verdade! Mas o ritual exige isso... Sacrificar o primeiro amor em troca das benções dos deuses por toda a sua vida.
            — Que deuses, seu louco? — vociferou Luís, sem paciência. — Eu quero ir embora!
            — Chega de conversa, Rodolfo — disse um senhor no círculo. — É chegada a hora do ritual!
            — Não! — contestou Luís.
            — Certo, pai — concordou Rodolfo.
            O garoto segurou o punhal que estava ao lado de seu corpo e ergueu o instrumento, alinhando-o com o peito de Luís.
            — Eu vos ofereço o sangue do meu primeiro e verdadeiro amor — proferiu Rodolfo, de olhos fechados. Lágrimas escorriam por seu rosto. — Recebam este sacrifício como prova de minha devoção e lealdade. Espero por suas benções em minha vida e, em troca, serei eternamente fiel a vocês.
            A chama da fogueira se intensificou e ficou mais alta. O ar ficava mais seco e caloroso. Luís fechou os olhos para não ver aquilo. Mas, para sua surpresa, Rodolfo baixou o punhal nos pulsos do garoto, libertando-o das cordas.
            — Fuja daqui — ordenou Rodolfo, com os olhos marejados. — Corra o mais rápido que puder!
            — E você? — mas, assim que concluiu a pergunta, a mãe e o pai de Rodolfo o esfaquearam pelas costas. E o jovem caiu morto numa poça de seu próprio sangue.
            — O ritual chegou ao fim — comentou o pai de Rodolfo. —, mas você não vai embora!
            Luís correu o máximo que conseguiu, mas foi encurralado por um dos homens que o aprisionara no início. O brutamonte fez um movimento rápido com um punhal e cortou o pescoço de Luís.
            Quase se afogando em seu sangue, que gorgolejava na garganta, Luís continuou correndo em direção à rodovia. Sua força se esvaía pouco a pouco. Suas esperanças reviveram quando enxergou, ao longe, um foco de luz vindo da rodovia; alguém mexia no carro do seu namorado. À medida que se aproximava, conseguia enxergar com mais nitidez – era Fernando, o homem que oferecera ajuda e que Luís, por medo e desconfiança, não havia aceitado; mas o garoto estava amargamente arrependido por não ter aceitado a ajuda do desconhecido, pois poderia estar bem melhor que naquele instante.
            Sem pestanejar, Luís continuou caminhando, dando passos falsos, rumo à rodovia. Mas sua visão começou a embaçar, seus lábios ficaram secos, um gosto de ferro se apropriou de sua boca, um zumbido agudo começou a irritar seus ouvidos. Aquele era o fim. Ele precisava correr para que Fernando pudesse vê-lo e correr com ele para um hospital.
            Luís estava a cinco metros de distância de Fernando, mas não podia gritar porque estava com a boca cheia de sangue. Inesperadamente, uma escuridão tomou conta de toda sua visão.

            O garoto, infelizmente, havia caído num buraco escondido no meio do mato. A última coisa que conseguiu ver, ainda de dentro do buraco, foram os dois brutamontes da família de Rodolfo, jogando terra dentro do buraco. Luís foi enterrado vivo, sem esperanças, e sem uma segunda chance.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Quando nasce a intolerância?

            Pra quem ainda não sabe, estou trabalhando como Orientador Socioeducativo num Centro para Crianças e Adolescentes aqui da zona norte de São Paulo. Minha turma conta com cerca de vinte e cinco crianças na faixa etária dos nove aos quinze anos de idade.
            Antes mesmo de entrar lá, eu já havia elaborado um projeto de fomento à leitura e à escrita; mas, quando soube que faria parte da equipe de Orientadores, expandi o projeto e dividi-o em três eixos. Hoje, o projeto consiste no Palavreando, no Fazendo Arte e no Socializando – os três, trabalhados simultaneamente, propiciaram a criação de um quarto: a Mostra Cultural.
            Cada projeto foi nomeado de forma que seu nome o defina.
            O Palavreando objetiva estimular a leitura e o desenvolvimento da escrita; nele, trabalharemos a produção de diversos gêneros: mapas, manchetes, poemas, notícias, narrativas, quadrinhos, rótulos, receitas, gráficos, placas etc. Isso fará com que as crianças e os adolescentes conheçam as possibilidades tanto no mundo da leitura como no da escrita – na escrita, por exemplo, elas aprenderão que não precisam só copiar, mas que elas podem criar.
            O Fazendo Arte será focado na apreciação de obras de arte, filmes, músicas e fotografias. Contextualizarei cada gênero de acordo com as necessidades encontradas na turma; discutiremos sobre os possíveis significados de cada obra; conheceremos os autores e o contexto sociocultural de cada obra. Após todo esse trabalho, no caso das obras de arte, realizaremos releituras e versões – isso permitirá que eles se apropriem dos detalhes passados despercebidos, bem como desenvolvam sua criatividade e sua criação.
            O Socializando foi criado, especialmente, para fazer com que a opinião das crianças e dos adolescentes seja ouvida – afinal, eles também fazem parte da Sociedade e têm o direito de opinar em todo e qualquer debate. Para isso, levarei discussões sobre temas contemporâneos, mas também discutirei temas os quais são evitados: morte, medos, futuro etc. Ainda no Socializando, criaremos um blogue destinado à postagens das atividades realizadas durante o ano, além das mensagens e bilhetes que eles escreverão sobre cada tema discutido.
            A Mostra Cultural, que tem previsão para acontecer ao fim do semestre, será um evento idealizado por eles desde o início: decoração do espaço, produção dos convites, organização das atividades a serem exibidas etc. Isso fará com que eles conheçam o processo de produção de um evento, onde cada um é responsável por uma parte para que todo o grupo consiga exercer o trabalho final.
            E de uma semana e meia pra cá tem sido assim: produções, discussões, ideias... Desde ontem, por conta do Carnaval que está por vir, estamos trabalhando sobre o tema: ontem, fizemos uma pintura do quadro Carnaval em Madureira, de Tarsila do Amaral – falamos um pouco das características carnavalescas que o quadro traz; hoje, pedi que eles retratassem no papel (em desenho ou em texto), aquilo que eles imaginam ao ouvir a palavra Carnaval.
Um Sábado Qualquer
            Nesse momento, ouvi um comentário: “Carnaval não é de Deus!”. No mesmo instante, uma das crianças veio me questionar isso. Perguntei à criança que disse a frase se ela sabia o que estava dizendo; então, outra criança repetiu: “Mas Carnaval não é, mesmo, de Deus, Júnior!”. Então, decidi explicar um pouco sobre a festa conhecida mundialmente.
            Contei às crianças que, possivelmente, a palavra carnaval tem dois significados: carne vale – que significa “adeus, carne!”; e carne levamen – que significa “supressão da carne”. Ambos os significados remetem ao que conhecemos hoje na festa – o período que antecede a Quaresma, uma “pausa” de quarenta dias nos excessos cometidos durante o ano; um período em que a religião católica acredita que se deve existir a privação da carne.
            Pedi às duas crianças que insistiram que a festa “não é de Deus”, que não tentassem impor isso às demais crianças, pois cada um é livre para acreditar ou não acreditar no que quiser. Com isso, uma outra criança comentou: “Júnior, eu acredito em outros deuses, como Buda, os deuses gregos, os deuses africanos...”. Isso gerou uma polêmica ainda maior. Do outro lado, alguém disse: “Deuses africanos? Credo! Eu não gosto de africanos...”.
            Aquilo me deixou surpreso e triste, ao mesmo tempo. Eu fiquei sem saber como agir. Pedi à criança que não disse mais aquilo, pois era um desrespeito muito grande, um preconceito. Expliquei que, no mundo, existem milhares de culturas, e cada cultura acredita em algo. Comecei a citar alguns dos deuses cultuados ao redor do mundo, hoje e antigamente: Zeus, Poseidon, Hades, Afrodite, Atena, Deus, Tupã, Guaraci, Jaci, Jurupari, Hórus, Ísis, Tot, Set, Lilith, Brama, e disse que há centenas de outros. Isso gerou um alvoroço.
            “Só existe um Deus!”, disse uma criança. Ali, eu percebi que não adiantaria continuar com aquela conversa; não naquele momento, sem um preparo maior. Pedi, mais uma vez, que ninguém tentasse impor seu Deus aos demais, que cada um acreditasse no que quisesse, mas guardasse essa crença para si. Mas planejo voltar com esse assunto em breve, pois acredito que deva ser discutido.
            O que eu quero dizer, é que esse episódio, nada mais, é fruto da intolerância religiosa praticada mundialmente. É o exemplo que deixamos para as nossas crianças: imponham suas crenças às demais, pois somente a sua crença é a correta. Mas, agindo assim, nenhuma nunca vai ser a correta, e as mortes e discriminações por intolerância vão continuar acontecendo.
            Nós, adultos, temos o dever de rever os nossos conceitos. É isso mesmo que queremos deixar para as crianças? Queremos, mesmo, mostrar a elas que, no mundo, apenas um deus é o verdadeiro? Chega dessa luta idiota e ignorante! Vamos mostrar às crianças que o mundo é feito de diferenças, é feito de peculiaridades, é feito de culturas distintas.

            Vamos mostrar às crianças que o mundo precisa ser feito de respeito.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Diabo: a criação de um implica na inexistência de outros.

            Muitas culturas acreditam em demônios, mas o Demônio (com letra maiúscula) é muito bem conhecido como o inimigo de Deus: ele é, a princípio, uma criação do Cristianismo.
            Geralmente, o Diabo é descrito como um anjo que perdeu sua luz, ou está associado com a serpente do Gênesis. Mas em Revelações, João viu o Diabo não como uma serpente, mas como um grande dragão de várias cabeças. Desde então, nestes quinze séculos, o Diabo se transformou na figura conhecida de hoje.
Estátua de Pã
            Algumas representações do deus grego da fertilidade, Pã, auxiliaram na construção do personagem conhecido atualmente: o Diabo adquiriu chifres, cascos, orelhas pontudas e um rabo – foi descrito como metade bode e metade homem. Essa descrição, contudo, bate com a descrição dos sátiros – criaturas da mitologia grega que são metade homens e metade bodes.
            O tridente de três pontas atribuído ao Diabo é o mesmo tridente de Poseidon, o
Estátua de Poseidon
deus grego dos mares. O tridente era utilizado como uma poderosa arma capaz de agitar as águas furiosamente – no épico A Odisseia, Poseidon era inimigo do herói Odisseu, e quebrava os seus navios frequentemente, fazendo com que o herói tivesse de voltar para casa.
            A cor de pele avermelhada que costumamos ver veio de Set, a entidade “maligna” egípcia. Set era o deus das tempestades, da escuridão e do caos – os gregos associavam Set com Tifão, a serpente monstro e deus da destruição.

Pintura de Set

            Até mesmo o nome do Diabo mudou no decorrer das eras: Mamon, Belzebu, Baal, Amon, Leviatã; todos, nomes que foram associados a Satã em algum momento da história. Embora esteja associado a várias entidades Pagãs e conhecido por diversos nomes, o nome mais conhecido do Diabo ficou conhecido no século cinco, após uma tradução equivocada de Isaias 14, feita por Jerônimo: Lúcifer.
            No fim do século treze, Lúcifer foi associado ao pecado do orgulho, sendo parte dos Sete Pecados Capitais. Acreditava-se que ele era um dos poderosos sete príncipes demônios que controlavam suas próprias legiões na guerra entre Céu e Inferno. A maior parte das obras literárias ajudou a estabelecer Lúcifer como o nome mais famoso do Diabo.
            A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita no início do século catorze, esboçou a visão particular do autor sobre o Inferno, dividido por níveis – baseados nos Sete Pecados Capitais; cada nível era propriedade de um demônio, embora Lúcifer não fosse apenas um príncipe demoníaco, mas o imperador do Inferno. Dante imaginou o Diabo tremendamente feio e alto (passando, até mesmo, dos gigantes), com grandes asas batendo, três rostos com cores diferentes (vermelho, amarelo e preto), com cada uma de suas três bocas mastigando as almas das pessoas más.
Yama
            O épico de Dante se tornou uma das obras mais influentes entre os Cristãos, influenciando e moldando amplamente a forma como eles enxergavam o Inferno e o Purgatório. E as descrições de Lúcifer continuaram mudando; ele já não era retratado como um monstro preto ou vermelho, mas um monstro azul; a vítima da vez era Yama, o deus hindu da morte. A cor azul representava a perda da luz divina de Deus.
            Em 1677, Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado, publicações de John Milton, fortaleceram a ideia de Lúcifer como o líder dos anjos caídos e atribui-lhe o nome oficial de Satanás, o arqui-inimigo de Deus. Milton transformou Lúcifer em um guerreiro poderosíssimo e carismático, preocupado em destruir o homem (como vingança por seu exílio); Milton fez de Lúcifer um tipo de herói romântico – sua queda é extremamente humana e compreensível por qualquer um; ele é rebelde e orgulhoso, e, em troca, perde tudo o que ele valoriza.
Diabo, retratado
como um judeu
            À medida que o tempo passava, a imagem do Diabo foi invocada repetidamente, como forma de menosprezar ou demonizar os inimigos – ainda mais se tratando de religiões concorrentes. Durante o século dezenove, o Diabo foi retratado como um judeu com um grande nariz curvo; tanto as sinagogas judaicas como as muçulmanas eram tidas como templos de Satanás.
            Hoje, para alguns, Lúcifer não representa a rebeldia e a maldade, mas a sabedoria, o conhecimento e a iluminação, livre das algemas das superstições e dos dogmas religiosos. Lúcifer se tornou um tipo de Prometeu, que trouxe conhecimento à humanidade, permitindo que os homens se tornassem semelhantes aos deuses. Ele é uma figura de liberdade e de avanço pessoal. Ele é o Portador da Luz, que traz a luz do conhecimento científico para o mundo mergulhado nas trevas das superstições que asfixiam dia-a-dia.

            Mas, para a maioria das pessoas, o Diabo ainda é a fonte de todo o mal existente, e elas esperam, temerosas e ansiosas, pelo dia em que Deus retornará à Terra para acabar de uma vez por todas com o seu inimigo mortal.
Estátua de Lúcifer

domingo, 25 de janeiro de 2015

Sampa: muitos parabéns e pouca água!


"Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva"


Globo.com


            25 de janeiro de 2015; aniversário da cidade de São Paulo.
            A sétima cidade mais populosa do planeta completa, hoje, 461 anos de idade. Mas, infelizmente, não há motivo para que seus quase doze milhões de habitantes (segundo estimativas do IBGE em 2014) comemorem a data. Um ano atrás, o nosso Sistema de Abastecimento de Água Cantareira contava com 23,1% de sua capacidade; hoje, com a cota do volume morto, o Sistema está com 23,7% abaixo de zero. Apenas com essas informações já percebemos que não há o que comemorar (ou, ao menos, não se deveria comemorar).
            Mas hoje, enquanto visualizava a minha rede social, vi uma série de postagens alegres pelo aniversário da cidade, pelas coisas boas oferecidas pela cidade, por sua “velha-idade”; é algo quase que encantador o modo como as pessoas estão se referindo à cidade – a mesma cidade que vem passando por uma série de problemas que estão fora do controle das autoridades públicas.
            O descaso com a população vem de todos os lados: saúde (filas de espera que demoram anos, falta de equipamentos necessários, “sumiço” das verbas), transporte (“ciclovias”, trânsito, Metrô com mau funcionamento), saneamento básico, direitos básicos (água, energia), meio ambiente (frequentes quedas de árvores durante a época de chuvas), e por aí vai. Ainda assim, São Paulo ganha de seus habitantes um belo “parabéns” e inúmeros agradecimentos. Tudo bem... Você pode até dizer que a cidade não tem culpa; mas nós temos! Fomos nós quem escolhemos a autoridade que a governa, fomos nós quem escolhemos a autoridade que governa o estado, fomos nós quem escolhemos a autoridade que governa o país. Então, sim, a cidade tem culpa, porque nós somos a cidade.
            Por conta da chuva na noite da última quarta-feira, uma árvore caiu sobre a fiação da Estação Elevatória de Água João 23, responsável pelo abastecimento de Taboão da Serra, Embu, Itapecerica da Serra, Cotia e Jardim Arpoador; isso causou uma “pane” nos equipamentos, o que fez com que a distribuição da água para esses locais fosse interrompida. Porém, os moradores da região (cerca de 1,2 milhão de pessoas) ficaram prejudicados até sexta-feira, quando a distribuição de água voltou ao normal. Tudo por conta de uma árvore que caiu e demorou cerca de doze horas para ser removida.
            Estamos sem saída; não há o que fazer: quando não estamos sem água, estamos sem luz e, geralmente, estamos sem os dois serviços. A gente sabe (ou deveria saber!) que, de fato, a água vai acabar; e isso vai afetar a vida de todos os habitantes da cidade; indústrias mudarão suas localidades; shoppings, escolas e universidades, muito provavelmente, terão de fechar as portas, pois são locais que exigem muito o uso da água. Mas a gente atribui os erros ao governador (quando se atribui) e espera os milagres de Deus (ou de São Pedro); quando deveríamos ter cobrado do governador e não esperar por Deus ou milagres.
            Acredito que boa parte da população esteja comemorando o aniversário da cidade por não ter ideia da crise em que nos encontramos; a população ainda está confortável. Precisamos mudar nossos hábitos urgentemente! Com o calor que estamos enfrentando nos últimos dias, não nos preocupamos se vamos gastar mais água ou não ao correr para comprar piscinas ou tomar diversos banhos demorados no dia; o Carnaval está chegando e vai abafar, mais uma vez (vide a Copa do Mundo, ou as eleições), toda a crise pela qual estamos passando. Há países na Europa em que o uso da água não passa de sessenta litros por pessoa por dia; enquanto, aqui, no Brasil, há locais onde se registra mais de quatrocentos litros por pessoa por dia. Se continuarmos atribuindo a culpa aos governantes e não mudarmos, será tarde demais.
            Assim, povo paulistano, certifique-se de que não há o que comemorar – ao menos, não, por um bom tempo. Talvez, a nossa cidade vire uma cidade fantasma daqui a alguns anos (nada é impossível; afinal, achávamos que nunca passaríamos pela crise a qual estamos enfrentando). A festa oferecida, hoje, à população, nada mais é do que um agrado, um “cale-se porque estou-te dando um dia inteiro de lazer, cultura, água, ener...”; opa! Exceto água, água não!

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Conto: 31 de dezembro de 2070

Um conto distópico sobre o futuro da água; sobre o futuro do ser humano.


27 de outubro de 2070. São Paulo, Brasil.

            Após passar por sérias crises de falta de água e desertificação de boa parte do seu território, o Brasil chegou a um estado de calamidade: os doze por cento de água doce mundial, a qual o país um dia possuiu, acabou; o pouco que sobrou é motivo para guerra.
            A população da cidade de São Paulo chegou a um milhão de habitantes, somando, inclusive, os habitantes da região metropolitana do estado. Isso fez com que as autoridades públicas criassem projetos de Concentrações, onde os habitantes se dividiram de modo a compartilhar os recursos naturais ainda restantes – apenas na região metropolitana de São Paulo foram criadas dez Concentrações.
            Lúcio é morador da megalópole brasileira, e trabalha como ajudante geral numa indústria dessalinizadora na Concentração SP, uma espécie de refúgio, criado para a população remanescente da cidade, que abriga cem mil habitantes. O rapaz vive com seu tio e sua prima, sua única família:
            — Bom dia, tio! — diz Lúcio, assim que chega ao refeitório para o café da manhã.
            — Filho, eu peguei o seu café — diz Pedro, o tio do garoto. — As coisas deste turno estavam acabando, então peguei o seu e da Alice.
            — Obrigado, tio — agradece Lúcio.
            O café da manhã é o mesmo de sempre: uma lata de refrigerante e uma massa assada que lembrava o sabor de pão, embora fosse muito seca. No almoço, sempre é servida uma lata de refrigerante e uma fatia de bife com raspas da casca de árvores. Na janta, o prato é um copo de leite – de vaca ou de ovelha, de acordo com a disponibilidade – e mais um pouco da massa do café da manhã. Durante o dia, cada pessoa tem direito a 500ml de água, os quais são dosados para não passar sede.
            — Meu estômago está queimando... — comenta Lúcio. — Acho que não vou querer o refrigerante.
            Por conta do excesso de refrigerantes, muitas pessoas têm, frequentemente, problemas gastrointestinais.
            — E vai engolir a massa a seco? — questiona Alice.
            A garota, de doze anos de idade, aparenta ter vinte anos ou mais. Sua pele, assim como a pele de toda a população, é cheia de pequenas manchas e enrugada pela exposição ao forte sol. Todos, homens e mulheres, têm os seus cabelos raspados para evitar o acúmulo de sujeira, já que banho com água é permitido apenas uma vez ao ano – exceto pelas autoridades públicas; estes tomam banho toda semana.
            — Tio, o seu aniversário está chegando... — comenta Lúcio. — O que vai querer?
            — Nada, meu filho — responde o homem, sorridente. — Não temos condições nenhuma de comprar presentes. Estou satisfeito com o que tenho. E o meu aniversário é dia 31 de dezembro, o dia em que podemos tomar o nosso banho anual. Tem presente melhor?
            — É, não tem — o jovem dá risada e termina de comer sua refeição.
           
            Os três se levantam e seguem para a praça comunitária. Toda a Concentração é rodeada por uma fortaleza de trinta metros de altura; a razão de tanta proteção é a frequência com que disputas acontecem em busca de recursos naturais – as Concentrações “guerreiam” entre si para tentar conquistar mais recursos.
            Na praça, um grupo de pessoas despejam peças de roupas em um grande container – as roupas são descartadas toda semana, já que não há água para lavá-las. Cinco crianças brincam de pega-pega num banco de areia; todas carecas, com a pele enrugada e o corpo magricela. Do outro lado da rua, um caminhão de areia jogava um pouco de seu conteúdo nas fossas – os esgotos, todos, entupiram, já que a água não circula mais; então, foram cavadas fossas para as necessidades fisiológicas da população. Um pouco longe dali, cinco jovens são arrastados por homens do exército – provavelmente estão sendo retirados da zona de ventilação por não terem condições de pagar pelo ar que respiram.
            — Lúcio! — Sandro, namorado do jovem, chama-lhe. — Está indo para a fábrica?
            — Oi, Sandro! — o jovem beija o namorado enquanto segura suas mãos. — Sim... Vou só deixar o meu tio e a Alice no dormitório.
            — Oi, Sr. Pedro... Oi, Alice! — Sandro acena para os dois.
            — Oi! Filho, não precisa... — diz Pedro. — A Alice me acompanha. Não é?
            — Sim, pai! — responde a garota.
            — ‘Tá bom, então, tio — Lúcio abraça o tio e a prima, e sai com o namorado rumo ao trabalho.
            Assim que os dois chegam à filial da Salíquido, indústria responsável pela dessalinização das águas litorâneas do país, percebem uma grande movimentação na entrada do local.
            Lúcio segue na frente e encontra o seu patrão em uma espécie de palanque:
            — E então? Quem vai querer? — pergunta o homem, carrancudo. — Precisamos de alguém jovem para tal feito.
            — O que será que é isso? — questiona Lúcio.
            — Acho que eu sei... — comenta Sandro esticando o pescoço. — Os líderes mundiais estão selecionando pessoas de cada nação para um projeto meio secreto.
            — “Meio secreto”? — Lúcio fica confuso.
            — É — confirma Sandro. — Sabe aquele Buraco de Minhoca que eles construíram há alguns anos no espaço? Então... Eles enviaram um objeto para esse Buraco e, incrivelmente, o objeto foi encontrado num sítio arqueológico nos Estados Unidos.
            — Tipo uma viagem no tempo? — pergunta Lúcio, surpreso.
            — Isso! — concorda Sandro. — E eles querem fazer isso, agora, com cartas! Querem enviar cartas para o passado, para tentarmos reverter a nossa situação.
            — E por que não enviar uma pessoa? — interroga o jovem, curioso.
            — A pessoa seria estraçalhada, provavelmente — supõe Sandro. — Eles preferem não arriscar. Caso as cartas não cheguem, ao menos não haverá vidas perdidas.
            — Mas, isso não criaria um desastre, caso alguém encontre essas cartas e “mude” o futuro? — pergunta Lúcio.
            — É um risco que teremos de correr — diz Sandro. — Antes consertarem o futuro e a vida na Terra ter um futuro do que continuar assim e sermos extinguidos em mais algumas décadas ou séculos.
            — Vocês! — o patrão dos dois chama a atenção. — Vão se candidatar?
            — Sr., meu tio não pode se inscrever? — pergunta o jovem. — Ele viu tanto... Ele é o mais velho e lúcido da nossa Concentração. Ele nasceu quando as coisas ainda tinham salvação.
            — Jovens, Lúcio — enfatiza o homem. — Jovens. Quantos anos tem o seu tio?
            — Ele faz cinquenta anos em dezembro — responde Lúcio.
            — Não podemos — diz o patrão. — Vai ou não se candidatar? As cartas serão enviadas aos Estados Unidos no último dia do ano.
            — Até lá, eu decido — diz Lúcio, entrando na fábrica com seu namorado.


24 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            — O que você tem, Lúcio? — pergunta Pedro, enquanto vê o sobrinho com a feição tristonha.
            — Tio, ainda não decidi sobre aquela carta — responde o jovem. — Eu não conheço nada, tenho só vinte anos... Você devia escrevê-la... É o mais velho aqui da Concentração.
            — O papai deve ser o mais velho do Brasil — brinca Alice.
            Os quatro riem; Sandro está almoçando com a família.
            — O Lúcio tem toda a razão — concorda Sandro. — O senhor sabe como as coisas eram antes de chegar a este ponto; algo que nem os líderes atuais viram.
            — Não sei por que esse negócio de escolher pessoas mais novas para cargos de liderança — comenta Lúcio, insatisfeito.
            — Sangue novo é bom, filho — rebate Pedro.
            — Já sei o que podemos fazer! — sugere Sandro.
            — Então diga! Temos só uma semana para fazer isso — apressa o jovem.
            — Sr. Pedro, pense no que escreverá — pede Sandro. — Vou planejar tudo e trarei a carta na semana que vem. Sua carta vai para aquele Buraco de Minhoca.


31 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            O dia 31 de dezembro não é mais comemorado como a véspera do Ano Novo no Brasil; é comemorado apenas como o Dia Anual do Banho, um dia em que toda a população teria direito a dez minutos de banho com água.
            Os preparativos para a data na Concentração SP estão a todo vapor: as autoridades já disponibilizaram os chuveiros em local estratégico, próximo à Praça Central; o exército já está a posto, a fim de evitar problemas com os cidadãos que ultrapassassem o tempo limite no chuveiro.
            Lúcio, Pedro e Alice ainda estão em seu dormitório quando Sandro chega com uma surpresa:
            — Conseguiu? — pergunta Lúcio, ansioso.
            — Meus pais me deixaram isto aqui — Sandro mostra um envelope branco.
            — Um envelope de carta? — questiona Pedro. — Mas o que tem nele?
            — Dentro dele — corrige Sandro, abrindo o envelope.
            De dentro do envelope, Sandro retira um aparelho tecnológico que já não é utilizado há quase três décadas por determinação dos líderes mundiais; um tablet.
            — Um tablet! — conclui Pedro.
            — Para quê serve isso? — questiona Alice, achando o objeto esquisito.
            — É uma espécie de computador — responde Pedro.
            — Já vi o meu chefe com algo parecido, mas bem menor — diz Lúcio.
            — Era muito utilizado até trinta anos atrás — revela o tio do jovem. — Mas as autoridades decidiram nos isolar de tal tecnologia, talvez por medo, não sei. Mas isso pode se conectar com outros computadores ao redor do mundo.
            — Sim — confirma Sandro. — E eu já sei como e em qual computador iremos nos conectar.
            — Como assim? — questiona Lúcio.
            — Quando meus pais me deram isto, eles pediram para que eu usasse apenas numa situação de extrema importância, e deixaram instruções de como usar — explica o namorado de Lúcio. — Como há poucos destes por aí, é fácil conectar-se a outros.
            — E você vai conectar a quem? — pergunta Pedro.
            — À presidente — revela Sandro. — À presidente do Brasil. Tenho certeza de que, ao ver sua carta, ela vai elegê-la como a carta do Brasil.
            — Ótimo! — diz Lúcio. — Tio, você sabe escrever nisso aí? Precisamos achar um lápis...
            — Não! — Pedro solta um riso. — Não preciso de um lápis.
            Ao ligar o objeto e começar a escrever numa tela digital, os jovens ficam pasmos com a habilidade de Pedro; mais pasmos ainda com a funcionalidade do objeto.
            — Pronto — diz Pedro, devolvendo o tablet ao namorado do sobrinho.
            — Vou enviar — Sandro digita alguns botões e envia o documento criado por Pedro à presidente do Brasil, uma mulher que havia assumido o posto há pouco mais de dois anos, e estava tentando mudar o país e dar melhores condições à população remanescente. — Pronto. Agora é só torcer!
            Os quatro seguem para a Praça Central, onde tomarão o seu banho anual.
            Lúcio tem esperanças de que tudo aquilo mudaria; ele sabe que poderá esquecer toda a vida que teve ou, até mesmo, simplesmente deixar de existir. Mas ele quer dar um futuro à vida na Terra.
            Ao término do dia, os quatro se reúnem no dormitório e comemoram o dia. Comemoram, também, pois em um pronunciamento público – assistido pelas telas na Praça Central – a presidente acabou escolhendo a carta de Pedro para enviar ao Buraco de Minhoca.


Abril de 2002. São Paulo, Brasil.

            O telejornal de alcance nacional anuncia na televisão sobre uma carta encontrada numa expedição ao Mar Morto. A carta data o ano de 2070, e relata a vida no futuro, com a possível falta de água e outros recursos naturais:
            “Olá a todos. Meu nome é Pedro, mas falo por toda a população de meu país, Brasil. Estamos no ano de 2070, no mês de dezembro, no dia 31. Hoje, completei os meus cinquenta anos de cidade – e jamais pensei que chegaria a tal. Sou, provavelmente, o homem mais velho do país e, mesmo com essa idade, aparento ter mais de oitenta anos.
            Lembro dos meus cinco anos de idade, quando as coisas ainda não haviam chegado a tal ponto. Havia muitas árvores nos parques e nas praças, o fundo do orfanato em que eu vivia tinha um lindo jardim florido e, lá, eu gastava quase uma hora no banho. Agora, não temos mais água. Podemos tomar banho com água apenas uma vez ao ano, e um banho de dez minutos; nos outros dias, nos limpamos com toalhas umedecidas em azeite mineral. Por conta disso, todos precisamos raspar nossos cabelos para evitar o acúmulo de sujeira.
            Meu pai adotivo lavava o carro com a água da mangueira; hoje, as crianças nem acreditam que utilizávamos a água para isso. Também me lembro de muitos cartazes e outdoors dizendo ‘Cuide da água’, mas ninguém nunca ligou pra isso – mesmo com os reservatórios baixos, achávamos que a água jamais acabaria. Agora, os rios, barragens, lagos e mananciais que não estão esgotados, estão contaminados.
            Antigamente, todo mundo dizia que a quantidade ideal de ingestão de água era de oito copos por dia, isso para um adulto. Hoje, na minha idade, bebo apenas meio litro por dia, quando é possível. Por conta disso, a aparência das pessoas é horrível: todos muito magros, enrugados por causa da desidratação, manchas na pele causadas pelos raios ultravioletas – a camada de ozônio está destruída. As principais causas de morte são as infecções gastrointestinais (bebemos uma grande quantidade de refrigerante em nossas refeições diárias, já que é uma bebida sintética, tal qual nossos alimentos), dermatológicas e urinárias.
            Aqui no Brasil, houve uma grande desertificação.
            Nossas roupas são descartáveis, pois não há como lavá-las, então produzimos muito lixo. E tivemos de voltar a utilizar as fossas porque as redes de esgoto estão entupidas já que a água não circula mais.
            O mercado de trabalho teve uma mudança tremenda: muitos estão desempregados e, quem trabalha, trabalha apenas nas indústrias de dessalinização, que pagam com água potável em vez de dinheiro. Como se isso já não bastasse, muitos trabalhadores têm seus baldes de água roubados no caminho de volta para casa ao passar por ruas desertas.
            Não há como fabricar água, nem mesmo pela umidade do ar. O oxigênio está degradado pela desflorestamento – e isso acabou diminuindo a capacidade intelectual das novas gerações. Houve, também, alteração genética; os cientistas explicaram que as crianças que nascem com mutações e deformações ficaram assim por uma mutação nos espermatozoides.
            Não recebemos ajuda do governo; ou melhor, não recebíamos. O governo atual vem tentando mudar a situação e agir mais pela população, buscando melhores condições de sobrevida. Mas ainda há o exército, que abusa da autoridade e acaba cobrando até o ar que respiramos: quem não pode pagar por isso, é retirado das áreas ventiladas, as chamadas Concentrações, e acaba morrendo no deserto árido. A expectativa média de vida é de trinta e cinco anos de idade.
            Aqui em São Paulo, estamos divididos em dez Concentrações; mas algumas guerreiam entre si para conseguir mais água. A população da região metropolitana chegou a um milhão de habitantes; e continua caindo.
            Alguns países são protegidos ferozmente por suas Forças Armadas, porque conseguiram manter focos de vegetação e de água; e isso é motivo para guerra, certamente. Aqui no Brasil, contudo, quase não há árvores porque quase nunca chove e, quando chove, o pH é muito ácido.
            Sempre que minha filha me pede para contar-lhe histórias da minha infância, eu digo o quão lindos eram os parques, os bosques, a chuva, as flores. Falo, até mesmo, da alegria que tínhamos em entrar debaixo do chuveiro num dia quente; sobre como era bom pescar e nadar nos rios; sobre como era bom beber água à vontade; sobre como as pessoas ainda tinha saúde.
            Quando ela me pergunta por que a água acabou, não consigo não me sentir culpado, pois sou da geração que ainda tinha água e não soube cuidar dela. Não levamos em conta o número de avisos que nos deram. Hoje, nossos filhos e netos pagam um alto preço e, sinceramente, não acredito que haverá vida na Terra em algumas décadas ou, no máximo, em um século. Chegamos a um ponto irreversível.
            Se, algum dia, esta carta chegar até vocês, do passado, pensem e reflitam sobre os recursos os quais possuem. Não é o planeta Terra que precisa de atenção, somos nós. Nós é quem precisamos de atenção e de estar atentos aos recursos que o planeta nos oferece. O planeta vai continuar existindo; nós, seres vivos, não. Eu queria poder voltar no tempo, eu mesmo, e dar este aviso; como não posso, espero que vocês consigam reverter essa situação. Obrigado!


31 de dezembro de 2020. São Paulo, Brasil.

            Numa casa de parto da Grande São Paulo, um casal mal vestido comemorava a chegada de seu filho:
            — Márcio, olhe como ele é lindo! — diz a mulher, com lágrimas nos olhos.
            — É uma pena que tenha nascido em meio a esta crise que estamos passando — comenta Márcio, acariciando o bebê.
            — Teremos mesmo de colocá-lo num orfanato? — questiona a mulher.
            — Patrícia, meu amor... — Márcio dá a mão para Patrícia. — Não temos água para sustentar esta criança, como ela crescerá? Os orfanatos ainda são mantidos pelo governo e recebem toda a ajuda necessária. Lá, ele poderá crescer forte e saudável.
            — Por que não soubemos cuidar de tudo o que Deus nos deu? — questiona a mulher, consternada.
            — Meu amor, será o melhor para ele — diz Márcio. — Não se culpe. Como ele vai se chamar?
            — Pedro — responde Márcia. — Ele será forte como uma rocha, tão duro quanto uma pedra... Porque ele vai precisar dessa força para sobreviver neste mundo sem água. E, por isso, o nome dele vai ser Pedro.