Capítulo 3 – Atualização de dados
— Onde estamos? — perguntou Felipe
assim que desceu do carro em frente a um casarão, aparentemente, abandonado.
— Eu vivo aqui — respondeu o homem.
— Vamos, entre!
O homem abriu a porta do imóvel e
Felipe entrou. Era tudo muito grande lá dentro: um vasto corredor que se
estendia até uma porta de aço vermelha e enferrujada; diversas portas
posicionadas em ambos os lados do corredor.
— O que tem naquela porta? — Felipe
apontava para a porta vermelha. O seu coração palpitava rapidamente.
— Você vai saber, pode ir até lá —
disse o homem.
Felipe correu pelo corredor e,
quando chegou à porta, parou e ficou observando aquela estrutura de aço;
parecia um cofre.
— Posso abrir? — perguntou Felipe.
— Primeiro, deve buscar a chave —
comentou o homem. — Segunda porta à direita, o taco de madeira que fica no meio
do batente é falso; tire-o e você encontrará a chave.
Em menos de dois minutos, Felipe
estava de volta com uma chave enferrujada na mão esquerda:
— Tome — o menino esticou o braço em
direção ao homem, que pegou a chave e a girou na fechadura.
Enquanto a porta abria, um rangido
agudo incomodava os dois, que entravam num cômodo escuro e circular. No centro
do cômodo, havia uma escada em espiral que subia uns dez metros. Felipe e o
homem subiram pela escada até chegar noutro cômodo escuro.
— Aqui, tem luz — disse o homem,
passando a mão na parede e acendendo uma lamparina. — Seja bem-vindo.
— O que é isso? — a sala não era
muito grande: ao lado direito, uma parede repleta de retratos antigos e sem
cor; ao lado esquerdo, uma túnica preta pendurada na parede; e, ao centro, uma
mesa de madeira e, sobre ela, uma espécie de livro ao lado duma lâmina que
media cerca de trinta centímetros.
— Aquele é o traje que você deve
utilizar sempre que for exercer a sua função — explicou o homem. — Deixará você
mais forte, mais seguro. Aquele é o diário sobre o qual falei. E aquela...
O homem e o menino encararam a
lâmina; era comprida, curva e afiada.
— Aquela será a sua arma — disse o
homem, exibindo, novamente, aquele sorriso misterioso cheio de satisfação.
— Mas eu já matei alguém — comentou
Felipe, lembrando-se de Eduardo. — E eu usei uma faca... Não uma foice!
— Não é uma foice — corrigiu o
homem. — É uma gadanha. Muitos acabam cometendo um erro ao dizer que a Morte se
utiliza duma foice para levar as suas almas; mas é uma gadanha.
— ‘Tá. Tudo bem — concordou o
menino. — Mas e o Eduardo? Eu larguei o corpo dele lá na casa dele... E se
descobrirem?
— Não descobrirão — garantiu o
homem, virando-se para o menino. — Prometo a você: não descobrirão. Agora,
precisamos tomar cuidado para as próximas almas.
— Próximas? — Felipe achou estranho.
Eduardo merecia, embora fosse um acidente tudo o que aconteceu; mas ele não
faria o mesmo com ninguém mais.
— Sim — confirmou o homem. — Você,
agora, é um Ceifador. Ceifadores existem para isso: levar uma alma dum lugar a
outro.
— Mas... O que eu fiz com o Eduardo?
— o menino começou a raciocinar sobre o que fizera.
— Não, não! Não fique pensando nisso
— pediu o homem. — O que está feito, está feito. Você fez o que era preciso...
A hora dele havia chegado, assim como chegará a hora de muitos outros. Você
ajudou a alma do Eduardo a desligar-se do corpo físico e seguir rumo ao destino
dela.
— Você tem razão. Não fiz nada de
mais — concordou Felipe. — A essa hora, o Eduardo deve estar no Inferno.
— Certamente — concordou o homem,
passando a mão sobre os cabelos de Felipe. — Agora, você precisa ir. Fique com
a chave e, sempre que precisar, pode vir buscar o seu material de trabalho.
Esta sala é sua agora.
— O que direi aos meus pais? —
Felipe se lembrou de que a mãe havia ligado para ele enquanto ele estava na
casa de Eduardo.
— Garoto, você já tem 15 anos —
lembrou o homem. — Não precisa ficar dando explicações a ninguém; a vida é
assim.
— Você está certo — os olhos do
menino cintilavam. — Obrigado.
Felipe partiu rumo à sua casa.
Assim que chegou em casa, por volta
das quatro da manhã, Felipe encontrou os pais, na sala, acordados:
— Onde você estava? — questionou
Julio, muito bravo.
— Meu filho! — Marta abraçou o
menino e desabou em prantos.
— Eu estava passando mal — mentiu
Felipe, de imediato. — Não quis acordar vocês, por isso saí.
— Passando mal? — perguntou Julio. —
E porque não atendeu à ligação da sua mãe?
— Eu atendi, mas a bateria do
celular acabou — Felipe retirou o aparelho do bolso e mostrou que estava
desligado. — Desculpem. Estou com sono... Posso ir dormir?
— Claro, meu filho! — Marta deu um
beijo na bochecha do filho e o mandou para o quarto.
— Marta! — Julio encarou a mulher
após o filho entrar no quarto. — O que está fazendo? Ele some por horas na
madrugada e você deixa ele ir dormir?
— Julio, ele explicou o que
aconteceu — contestou a mulher. — Deixa ele.
Julio, então, cheio de desconfiança,
sobe para o seu quarto e vai deitar com a sua esposa.
No dia seguinte, após levantar e
escovar os dentes, Felipe não desceu para tomar café; debruçou-se na janela do
quarto e viu o sedan preto. Dentro do carro, o homem misterioso (o qual ainda
não se havia identificado para o menino) lançava um olhar festivo para Felipe.
Ele ainda causava-lhe arrepios.
Felipe deu um breve aceno e fechou
as cortinas; pegou o ultrabook sobre
a escrivaninha e ligou o aparelho. Na tela e inicialização, uma janela piscava
na área de trabalho: “Deseja verificar a
atualização de dados do Messorem?”; “Sim”.
Após clicar na opção, o programa foi
aberto diretamente na aba Nomina:
Luciana Pêra do Vale
Gabriele Fontana
Otávio Macedo
Edivânia Costa da Silva
José Fernandes de Abreu
Marta Vicentini Ferraz
Julio Vicentini Ferraz
O nome de Eduardo estava tachado. De
alguma forma, o programa identificara a ação de Felipe; sabia que o menino
havia acabado com a vida de Eduardo.
— Mas que merda é essa? — Felipe
ficou pasmo quando ligou uma coisa à outra.
O menino pegou a sua mochila no
armário, desceu as escadas correndo e saiu da casa direto para o outro lado da
rua, onde estava estacionado o sedan preto.
— O que você ‘tá fazendo? — o
menino, com um olhar de preocupação, perguntou ao homem misterioso. — Que droga
toda é essa?
— Você se refere a quê? — questionou
o homem, passivo.
— Aquele programa... O Messorem! — comentou Felipe. — Os
nomes... Eu achava que eram algo qualquer, mas não; eu matei o Dudu e o nome
dele apareceu riscado no programa!
— Você quer montar um palco e contar
para todo o bairro que você matou alguém? — o homem fez um alerta ao volume de
voz do garoto.
Felipe não respondeu; apenas lançou
um olhar cheio de dúvida.
— Entre no carro — ordenou o homem.
— Agora!
Sem questionar, o menino entrou e
sentou no banco do passageiro. O carro preto, então, começou a andar e dar
voltas no bairro.
— O programa no seu computador
funciona para você como o meu diário funcionou para mim — explicou o homem. — É
uma espécie de agenda; vai mostrar tudo o que deve fazer.
— Mas que porra é aquela? — Felipe
estava nervoso. — O nome do Eduardo era o primeiro da lista e agora está
riscado!
— Conforme você pratica... — o homem
pensou um pouco e preferiu rebuscar as palavras. — Conforme você completa os
seus objetivos e adquire as suas conquistas, o programa fará atualizações para
você. É por isso que o nome do Eduardo foi tachado; ele foi a sua primeira
tarefa concluída com sucesso.
— Você ‘tá zoando comigo — disse o
menino. — Só pode!
— Não brinco com essas coisas, Felipe
— o homem estava sério, mas sereno. — Você é um aprendiz... Vai aprender tudo
ao seu tempo.
— Não quero mais isso! — disse
Felipe, quase chorando. — Some da minha vida!
— Mas... — antes que pudesse
concluir, o homem teve de brecar o carro, pois Felipe abriu a porta e saiu sem
mesmo preocupar-se com o que aconteceria ao sair com o carro em movimento.
— Faça um favor a você — Felipe
parou e olhou nos olhos do homem enquanto falava. — Desaparece ou eu faço com
você o mesmo que fiz com o Eduardo!
Um olhar penoso foi lançado contra
Felipe. O homem demonstrou, ali, o quanto sentia pela decisão precipitada do
menino. Imediatamente, o sedan preto deu partida e desapareceu quando fez curva
na primeira esquina daquela rua.
Felipe estava muito assustado. Se
tudo o que o homem dissera fosse verdade, e se tudo o que ele havia relacionado
fizesse sentido, o fim de tudo aquilo não seria bom. Marta, a sua mãe, estava
naquela lista (era a penúltima); e Julio, o seu pai, o seu herói, deveria ser a
sua última missão. Ele não queria aquilo para si; matar os próprios pais não
fazia sentido algum.
A única coisa que o menino queria
era esquecer tudo o que fizera nos últimos dias; nada melhor que alguém muito
amigo para ajudar na tarefa. Naquele dia, Felipe não foi para a escola; mas,
naquele dia, Felipe também não voltou para casa. O menino decidiu ir dormir na
casa dos tios com a sua prima preferida – Luciana.