quinta-feira, 10 de março de 2016

Série - O Mundo dos Sonhos: Cap.1


1. Enquanto ele ronronava


           Olhe, talvez, quando for ler esta história, você ache que seja uma tremenda bobagem ou que eu esteja muito louco. Mas eu garanto: é sério, aconteceu, e eu não usei drogas para ver essas coisas. O mundo em que eu vivo rompe várias regras e leis universais, então, acredite se quiser!
            O que eu vou contar agora foi algo meio assustador; aconteceu na semana passada, no sábado. Todo sábado eu vou ao shopping comprar alguma coisa e, no último sábado, não foi diferente.
            Quando cheguei ao shopping, peguei o carrinho de compras no estacionamento e corri para a melhor parte: uma rampa bem inclinada que levava ao andar inferior, onde ficava o acesso às lojas. Enquanto eu descia empurrando o carrinho e dando risada, as pessoas me olhavam – ou muito sérias ou fazendo caretas –, mas não liguei muito pra isso.
            Nos corredores iniciais do shopping, há algumas agências bancárias, todas com paredes de vidro medindo cinco metros de altura – a segurança por aqui é muito boa (para quem tem dinheiro!). Cruzei o corredor e o mezanino enquanto diversas pessoas também seguiam na mesma direção ou voltavam de suas compras.
            Quando saí do mezanino, que tinha o piso de vidro também, entrei no corredor das lojas. A primeira loja era a loja de chocolates, uma loja bem famosa, que leva o nome da fruta que é a matéria-prima do chocolate. Para a minha sorte, havia algumas coisas em promoção – os cartazes amarelos quase saltavam nos olhos dos clientes.
            Um homem alto, de cabelo claro, roupas em tons escuros e um pouco sisudo. A mulher, pelo contrário, mostrava-se supergentil e sorridente, com o seu cabelo afro e a sua roupa multicolorida:
            — Bom dia! Em que posso ajuda-lo? — perguntou-me o homem, fingindo um sorriso.
            — Oi — eu respondi, sem graça. — Vou querer aqueles chocolates ali.
            Quando apontei para as barras de chocolate no alto da prateleira, vi duas coisas que me chamaram a atenção, sendo uma delas algo que me arrependo de ter comprado (eu devia ter pegado a outra coisa!): um boneco de pano que tinha a cara de um gato, com uma mancha no olho; e um ovo de páscoa de dois quilos.
            — E aquilo ali — apontei para o boneco felino, curioso. — Quanto fica?
            — Ótima escolha! — a atendente, que havia acabado de dispensar um cliente, veio falar comigo e intrometer-se na venda do parceiro. — É peça única.
            — Ah! — sorri, fingindo gratidão. — Quanto fica?
            — Tudo por R$ 48 — respondeu o homem, ao mesmo tempo em que eu vi o valor digitado no computador.
            Nesse instante, ouvi uma bagunça vinda do corredor do shopping; havia uma gritaria intensa e repleta de xingamentos. Os atendentes da loja em que eu estava ficaram visivelmente perturbados com a situação – eles se olhavam como se quisessem dizer algo um ao outro.
            — Vá! — o homem gritou para mim. Ele apontou a direção, mostrando o fundo da loja, e ordenou que a mulher me seguisse. — Vá com ele. Rápido!
            Não tive tempo de perguntar o que estava acontecendo: a mulher me empurrou para o fundo da loja e saímos por uma portinha que dava acesso a uma rua deserta. Logo atrás, o homem sisudo saiu pela porta e passou a chave no trinco:
            — O que foi isso? — questionei, preocupado.
            — Caramba — reclamou a mulher, chocada com o que via.
            O lugar onde estávamos parecia outro de onde eu havia saído. Quando cheguei ao shopping, o céu estava limpo e ensolarado; mas, agora, o céu estava carregado de nuvens cinzentas e uma névoa gelada pairava sobre tudo. Aliás, não havia um shopping atrás da gente, muito menos a porta pela qual havíamos saído.
            — O que está acontecendo? — insisti, inutilmente.
            — Vamos! — o homem pegou na mão da mulher e desceu a rua, mostrando-me o caminho.
            Enquanto descíamos o quarteirão pela calçada, passamos por uma grande catedral ao nosso lado direito; estava abandonada, pois as portas caíam aos pedaços e os vidros das janelas haviam sido todos quebrados. As paredes do templo religioso estavam pretas, chamuscadas de cinzas – provavelmente, por um incêndio.
            — Filho da puta! — um homem gritava no meio da rua, um pouco mais abaixo. — Eu ando onde eu quiser...
            Ele estava bêbado.
            Como eu percebi isso? Ele cambaleava enquanto andava no meio dos carros; e segurava uma garrafa de cachaça na mão direita. Devia ser algum morador de rua, pois suas roupas estavam sujas e rasgadas.
            Então, deixando-me mais surpreso e assustado, o gato de pano que eu carregava no colo ronronou. Isso mesmo, o gato de pano ronronou.
            Em seguida, o bêbado atacou um dos carros com a sua garrafa e, depois, começou a se jogar em cima dos carros.
            O casal de atendentes me puxou e viramos à direita, cruzando a rua e passando ao lado do bêbado troglodita:
            — Seus putos! — gritou o bêbado enquanto passávamos por ele.
            Apertarmos o passo e continuamos a subir a rua. Neste ponto, a voz do bêbado parecia um murmúrio.
            O homem e a mulher pararam em frente a uma casa de arquitetura antiga, com arcos na varanda. Entramos no pequeno quintal e a porta de madeira se abriu sozinha num ranger amedrontador.
            — O que vão fazer? — perguntei aos dois enquanto observávamos o interior da casa. Logo em frente à porta, uma escadaria levava ao piso superior, onde tudo era muito escuro e impossível de enxergar.
            — Precisamos entrar — disse a mulher. — Não estamos seguros aqui fora.
            Subimos as escadas e a porta se fechou logo atrás. Quando chegamos no piso superior, encontramos um longo corredor – era possível enxergar a sua extensão por conta de uma luz azulada que vinha do fundo.
            Então, uma silhueta surgiu três metros à nossa frente. Forçando a visão, percebi que era uma senhora vestindo uma camisola.
            — Há! — a mulher idosa soltou um grito agoniante e infantil, de tão agudo.
            Quando percebi que eu tinha que correr, o chão desapareceu e caí, junto aos atendentes, num cômodo muito escuro. O cômodo era quadrado, mas não tinha nenhuma saída. Lá em cima, a senhora nos encarava:
            — Que o Terceiro Dilúvio comece! — berrou a velha.
            Por algumas frestas entre os tijolos de pedra nas paredes, começou a cair água e inundar o cômodo.
            — Nós vamos morrer! — eu gritei, muito assustado.
            — Lá! — a mulher apontou para o teto, onde havia um pequeno buraco.
            A água, rapidamente, inundou o quarto e fomos expulsos para o corredor forrado de pedras. Enquanto éramos levados pela correnteza no estreito corredor, enxergamos, sob a água, alguns bichos estranhos refletidos contra a luz azulada e turva.
            Graças àquela luz, pude enxergar uma alavanca que estava no chão do corredor e puxei-a no sentido contrário – eu nem imaginava qual seria o resultado daquilo. Em seguida, a água começou a perder a vazão e foi sugada pelas paredes e pelo chão.
            — Vamos correr antes que ela volte! — eu sugeri. Só aí é que eu percebi que ainda tinha o gato de pano comigo.
            Corremos pelo corredor o mais rápido que pudemos assim que percebemos a mulher atrás de nós.
            Mais um grito ecoou pelas paredes de pedra, tornando o som muito mais estridente.
            Continuamos a correr quando vimos uma porta aberta, exibindo a rua.
            — Jogue isso fora! — o homem apontava para o gato de pano que eu segurava. — Se não, não conseguiremos fugir!
            Olhei mais uma vez para o boneco de pano felino, que ainda ronronava nas minhas mãos como se estivesse vivo. Joguei o bichano no chão e aumentei a minha velocidade enquanto corria.
            O homem e a mulher já haviam conseguido passar pela porta. Olhei mais uma vez para trás e vi que a velha louca corria na minha direção (ou na direção do boneco) e isso me motivou a correr ainda mais. Quando passei pela porta, caí no chão e eu respirava ofegante enquanto os dois tentavam me ajudar.
            Enquanto eu recuperava o meu fôlego, vi a mulher idosa ainda correndo dentro do túnel de pedras rumo à porta que, por sorte, fechou-se de súbito. Logo depois, uma substância branca e leitosa começou a ser jorrada da parede e cobrir toda a porta até formar uma grossa e rígida camada intransponível.
            — Vamos embora — disse o homem, olhando para a mulher e abraçando-a. — Boa sorte, garoto.
            Eles subiram a rua até sumir no horizonte.
            Quando me virei para o sentido contrário, notei que o homem bêbado ainda estava ali no cruzamento das ruas. Porém, ele não estava mais gritando, xingando e batendo nos carros; ele estava caído no asfalto, morto, enquanto os carros passavam sobre ele sem se importarem.
            Eu só consegui respirar aliviado.
            Assim, desci a rua para tentar encontrar o caminho de volta para casa.

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