1. Enquanto ele ronronava
Olhe, talvez, quando for ler esta história, você ache
que seja uma tremenda bobagem ou que eu esteja muito louco. Mas eu garanto: é
sério, aconteceu, e eu não usei drogas para ver essas coisas. O mundo em que eu
vivo rompe várias regras e leis universais, então, acredite se quiser!
O que eu vou contar agora foi algo
meio assustador; aconteceu na semana passada, no sábado. Todo sábado eu vou ao
shopping comprar alguma coisa e, no último sábado, não foi diferente.
Quando cheguei ao shopping, peguei o
carrinho de compras no estacionamento e corri para a melhor parte: uma rampa
bem inclinada que levava ao andar inferior, onde ficava o acesso às lojas.
Enquanto eu descia empurrando o carrinho e dando risada, as pessoas me olhavam
– ou muito sérias ou fazendo caretas –, mas não liguei muito pra isso.
Nos corredores iniciais do shopping,
há algumas agências bancárias, todas com paredes de vidro medindo cinco metros
de altura – a segurança por aqui é muito boa (para quem tem dinheiro!). Cruzei
o corredor e o mezanino enquanto diversas pessoas também seguiam na mesma
direção ou voltavam de suas compras.
Quando saí do mezanino, que tinha o
piso de vidro também, entrei no corredor das lojas. A primeira loja era a loja
de chocolates, uma loja bem famosa, que leva o nome da fruta que é a
matéria-prima do chocolate. Para a minha sorte, havia algumas coisas em
promoção – os cartazes amarelos quase saltavam nos olhos dos clientes.
Um homem alto, de cabelo claro,
roupas em tons escuros e um pouco sisudo. A mulher, pelo contrário, mostrava-se
supergentil e sorridente, com o seu cabelo afro e a sua roupa multicolorida:
— Bom dia! Em que posso ajuda-lo? — perguntou-me o homem,
fingindo um sorriso.
— Oi — eu respondi, sem graça. — Vou querer aqueles chocolates ali.
Quando
apontei para as barras de chocolate no alto da prateleira, vi duas coisas que
me chamaram a atenção, sendo uma delas algo que me arrependo de ter comprado
(eu devia ter pegado a outra coisa!): um boneco de pano que tinha a cara de um
gato, com uma mancha no olho; e um ovo de páscoa de dois quilos.
—
E aquilo ali — apontei para o boneco felino, curioso. — Quanto fica?
—
Ótima escolha! — a atendente, que havia acabado de dispensar um cliente, veio
falar comigo e intrometer-se na venda do parceiro. — É peça única.
—
Ah! — sorri, fingindo gratidão. — Quanto fica?
—
Tudo por R$ 48 — respondeu o homem, ao mesmo tempo em que eu vi o valor
digitado no computador.
Nesse instante, ouvi uma bagunça
vinda do corredor do shopping; havia uma gritaria intensa e repleta de
xingamentos. Os atendentes da loja em que eu estava ficaram visivelmente
perturbados com a situação – eles se olhavam como se quisessem dizer algo um ao
outro.
— Vá! — o homem gritou para mim. Ele apontou a direção, mostrando o
fundo da loja, e ordenou que a mulher me seguisse. — Vá com ele. Rápido!
Não
tive tempo de perguntar o que estava acontecendo: a mulher me empurrou para o
fundo da loja e saímos por uma portinha que dava acesso a uma rua deserta. Logo
atrás, o homem sisudo saiu pela porta e passou a chave no trinco:
—
O que foi isso? — questionei, preocupado.
—
Caramba — reclamou a mulher, chocada com o que via.
O
lugar onde estávamos parecia outro de onde eu havia saído. Quando cheguei ao
shopping, o céu estava limpo e ensolarado; mas, agora, o céu estava carregado
de nuvens cinzentas e uma névoa gelada pairava sobre tudo. Aliás, não havia um
shopping atrás da gente, muito menos a porta pela qual havíamos saído.
—
O que está acontecendo? — insisti, inutilmente.
—
Vamos! — o homem pegou na mão da mulher e desceu a rua, mostrando-me o caminho.
Enquanto
descíamos o quarteirão pela calçada, passamos por uma grande catedral ao nosso
lado direito; estava abandonada, pois as portas caíam aos pedaços e os vidros
das janelas haviam sido todos quebrados. As paredes do templo religioso estavam
pretas, chamuscadas de cinzas – provavelmente, por um incêndio.
—
Filho da puta! — um homem gritava no meio da rua, um pouco mais abaixo. — Eu
ando onde eu quiser...
Ele
estava bêbado.
Como
eu percebi isso? Ele cambaleava enquanto andava no meio dos carros; e segurava
uma garrafa de cachaça na mão direita. Devia ser algum morador de rua, pois
suas roupas estavam sujas e rasgadas.
Então,
deixando-me mais surpreso e assustado, o gato de pano que eu carregava no colo
ronronou. Isso mesmo, o gato de pano ronronou.
Em
seguida, o bêbado atacou um dos carros com a sua garrafa e, depois, começou a
se jogar em cima dos carros.
O
casal de atendentes me puxou e viramos à direita, cruzando a rua e passando ao
lado do bêbado troglodita:
—
Seus putos! — gritou o bêbado enquanto passávamos por ele.
Apertarmos
o passo e continuamos a subir a rua. Neste ponto, a voz do bêbado parecia um
murmúrio.
O
homem e a mulher pararam em frente a uma casa de arquitetura antiga, com arcos
na varanda. Entramos no pequeno quintal e a porta de madeira se abriu sozinha
num ranger amedrontador.
—
O que vão fazer? — perguntei aos dois enquanto observávamos o interior da casa.
Logo em frente à porta, uma escadaria levava ao piso superior, onde tudo era
muito escuro e impossível de enxergar.
—
Precisamos entrar — disse a mulher. — Não estamos seguros aqui fora.
Subimos
as escadas e a porta se fechou logo atrás. Quando chegamos no piso superior,
encontramos um longo corredor – era possível enxergar a sua extensão por conta
de uma luz azulada que vinha do fundo.
Então,
uma silhueta surgiu três metros à nossa frente. Forçando a visão, percebi que
era uma senhora vestindo uma camisola.
—
Há! — a mulher idosa soltou um grito agoniante e infantil, de tão agudo.
Quando
percebi que eu tinha que correr, o chão desapareceu e caí, junto aos
atendentes, num cômodo muito escuro. O cômodo era quadrado, mas não tinha
nenhuma saída. Lá em cima, a senhora nos encarava:
—
Que o Terceiro Dilúvio comece! — berrou a velha.
Por
algumas frestas entre os tijolos de pedra nas paredes, começou a cair água e
inundar o cômodo.
—
Nós vamos morrer! — eu gritei, muito assustado.
—
Lá! — a mulher apontou para o teto, onde havia um pequeno buraco.
A
água, rapidamente, inundou o quarto e fomos expulsos para o corredor forrado de
pedras. Enquanto éramos levados pela correnteza no estreito corredor,
enxergamos, sob a água, alguns bichos estranhos refletidos contra a luz azulada
e turva.
Graças
àquela luz, pude enxergar uma alavanca que estava no chão do corredor e puxei-a
no sentido contrário – eu nem imaginava qual seria o resultado daquilo. Em
seguida, a água começou a perder a vazão e foi sugada pelas paredes e pelo
chão.
—
Vamos correr antes que ela volte! — eu sugeri. Só aí é que eu percebi que ainda
tinha o gato de pano comigo.
Corremos
pelo corredor o mais rápido que pudemos assim que percebemos a mulher atrás de
nós.
Mais
um grito ecoou pelas paredes de pedra, tornando o som muito mais estridente.
Continuamos
a correr quando vimos uma porta aberta, exibindo a rua.
—
Jogue isso fora! — o homem apontava para o gato de pano que eu segurava. — Se
não, não conseguiremos fugir!
Olhei
mais uma vez para o boneco de pano felino, que ainda ronronava nas minhas mãos
como se estivesse vivo. Joguei o bichano no chão e aumentei a minha velocidade
enquanto corria.
O
homem e a mulher já haviam conseguido passar pela porta. Olhei mais uma vez
para trás e vi que a velha louca corria na minha direção (ou na direção do
boneco) e isso me motivou a correr ainda mais. Quando passei pela porta, caí no
chão e eu respirava ofegante enquanto os dois tentavam me ajudar.
Enquanto
eu recuperava o meu fôlego, vi a mulher idosa ainda correndo dentro do túnel de
pedras rumo à porta que, por sorte, fechou-se de súbito. Logo depois, uma
substância branca e leitosa começou a ser jorrada da parede e cobrir toda a
porta até formar uma grossa e rígida camada intransponível.
—
Vamos embora — disse o homem, olhando para a mulher e abraçando-a. — Boa sorte,
garoto.
Eles
subiram a rua até sumir no horizonte.
Quando
me virei para o sentido contrário, notei que o homem bêbado ainda estava ali no
cruzamento das ruas. Porém, ele não estava mais gritando, xingando e batendo nos
carros; ele estava caído no asfalto, morto, enquanto os carros passavam sobre
ele sem se importarem.
Eu
só consegui respirar aliviado.
Assim, desci a rua para
tentar encontrar o caminho de volta para casa.
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