segunda-feira, 13 de junho de 2016

Conto: In(tolerância)

            O conto a seguir é inspirado no massacre ocorrido numa boate em Orlando, cidade dos Estados Unidos, no dia 12 de junho de 2016. A ideia é provocar a reflexão sobre o tipo de sociedade que somos e o tipo de sociedade que desejamos ser.
* * *
            Às sete da manhã de domingo, o noticiário informou que um atirador, conhecido como Almir Khouri, de 30 anos, causou a morte de mais de 50 pessoas e deixou outras 60 feridas. Após um tiroteio, a polícia conseguiu interceptar o atirador, que acabou morrendo no local. O atentado foi iniciado por volta das duas horas da manhã e, de acordo com testemunhas, Almir atirou por vários minutos sem parar; alguns rapazes disseram que o tiroteio chegou a durar uma música inteira. Os familiares e amigos das vítimas fazem vigília em protesto à violência e à intolerância em frente à boate; diversos grupos, ao redor do mundo, também demonstraram solidariedade à causa e indignação com o massacre.
* * *
Horas antes.
            Numa cidade pequena, um dos programas mais prediletos da população jovem é sair para as boates e para os bares no fim de semana. Com Felipe não era diferente; se havia algo que agradava a ele, era sair para a balada com os amigos e com o namorado. Naquela noite de sábado, o jovem de 27 anos preparava-se para uma festa com DJs convidados numa boate da região central da cidade.
            — Boa diversão, filho — desejou Luana, mãe de Felipe. — Leve a sua chave porque você vai chegar tarde, né?
            — Vou chegar cedo, mãe... Amanhã de manhã — brincou Felipe, dando um beijo no rosto da mãe e saindo.
            Ao lado de fora da casa, havia um Sportage vermelho estacionado em frente ao jardim:
            — E aí, gatão! — era Pedro, o namorado de Felipe. — Até que você foi rápido desta vez...
            — Engraçadinho — Felipe entrou no carro e beijou o namorado.
            Assim que chegaram à boate, o casal comprou os ingressos e desceu para a pista de dança. A casa estava lotada – os dançarinos e as dançarinas estavam fazendo uma apresentação no palco enquanto a multidão delirava. Felipe e Pedro logo começaram a dançar com alguns amigos que encontraram.
            Por volta de uma e meia da manhã, Pedro demonstrou estar um pouco cansado:
            — O que você tem? — perguntou Felipe, enquanto puxava o namorado de volta para a pista de dança. — Está cansado?
            — Eu trabalhei hoje, lembra? — comentou Pedro, sorrindo e olhando nos olhos de Felipe. — Mas fica tranquilo; se você ainda quiser ficar, não tem problema.
            — Só mais um pouco? — Felipe deslizou o seu corpo para "embalar" o namorado na sua dança.
            — Quanto tempo você quiser! — respondeu Pedro, beijando o namorado.
            A música preferida do casal começou a tocar: "I lived", da banda OneRepublic.
* * *
            Do outro lado da cidade, um rapaz de 30 anos havia acabado de sair de casa. Ele caminhou em passos pesados até o ponto de ônibus, onde embarcou num coletivo rumo ao centro da cidade.

Hope when you take that jump
You don't fear the fall

            Seu nome era Almir, descendente de afegãos e morador da cidade desde o seu nascimento. Há alguns meses, Almir vinha demonstrando um comportamento estranho sempre que via ou ouvia pessoas do mesmo sexo tendo um relacionamento homoafetivo. Os seus pais até tentaram evitar que ele tivesse qualquer tipo de contato com tais situações a fim de não deixar o filho estressado.

Hope when the crowd screams out
They're screaming your name

            O ônibus em que Almir estava estacionou em seu ponto final e o rapaz desembarcou. Ele viu um letreiro néon piscando na escuridão e seguiu para o seu destino. Enquanto caminhava, Almir mexia na mochila em suas costas tentando arrumar alguma coisa.

Hope if everybody runs
You'll choose to stay

            O rapaz puxou um rifle de dentro da bolsa e mirou nos seguranças da boate. Mentalmente, levaram apenas cinco segundos para o tiroteio iniciar.
* * *
            Felipe ouviu um breve e agudo bipe do seu relógio de pulso e verificou que já eram duas da manhã.

Hope that you fall in love
And it hurts so bad

            Enquanto se juntava a Pedro no bar da boate, Felipe ouviu barulhos fortes que pareciam vir do piso superior; eram como estalidos.
            — O que foi isso? — Pedro tentou concentrar-se no estalido. — Você consegue ouvir?

The only way you can know
You gave it all you had

            — É — concordou Felipe. — Eu ouvi.
            No segundo seguinte, o que deu para ouvir foram gritos sobrepostos aos estalidos, que ficaram mais fortes. De repente, as pessoas que estavam no piso superior da boate desceram correndo, derrubando quem estava na frente, e gritando:
            — É tiro! Corre! — berravam em coro.

And I hope that you don't suffer
But take the pain

            Felipe e Pedro se olharam e só pensaram em se agachar. Cada um olhava para um lado enquanto todos corriam pela pista de dança, parecendo formigas quando têm o seu formigueiro destruído.

I owned every second that this world could give

            O casal correu para trás do bar e ficou escondido atrás do balcão junto a duas meninas e outro rapaz. Os cinco tremiam de tanto pavor, mas estavam tão chocados que não conseguiam emitir nem um grito.

I saw so many places, the things that I did

            Então, embora estivesse escuro, Felipe conseguiu ver o que acontecia: havia um homem segurando um rifle e atirando contra todos na boate. Ele mirava e atirava sem parar, repondo a munição com maestria.

Hope that you spend your days
And they all add up

            — Eu não quero morrer! — Felipe chorou segurando a mão de Pedro com toda a força.
            Enquanto isso, uma das meninas ao seu lado caiu para trás quando foi atingida por uma bala no meio da cabeça.

And when that sun goes down
Hope you raise your cup

            — Puta que o pariu! — Felipe e Pedro se levantaram imediatamente, tropeçando nos corpos mortos e feridos que estavam jogados e esbarrando na multidão que corria pela pista.
            A polícia, enfim, havia chegado. Mas aquilo não fez do pesadelo um sonho – o tiroteio só aumentou; enquanto Almir vitimava uma multidão no interior da boate, a polícia atirava contra as paredes do local tentando parar o ataque.

I wish that I could witness
All your joy and all your pain

            Pedro deu um sinal para Felipe, mostrando que havia uma possível saída. Contudo, Felipe não prestou atenção ao sinal; o jovem só conseguiu ver Pedro subir pelas escadas junto a algumas outras pessoas com toda a pressa.
            Felipe tentou seguir o namorado, mas foi encurralado pelo atirador, que segurava o rifle e sorria.

But until my moment comes
I'll say I did it all

            O jovem se virou e correu para os banheiros da boate, enfiou-se dentro de uma das cabines e sentou-se em posição fetal, rezando e pedindo para sair dali com vida. A única coisa que lhe ocorreu foi despedir-se de quem amava, pois não sabia o que aconteceria.

I owned every second that this world could give

            "Fica bem. Eu amo vc!", foi o que enviou para o celular do namorado.

I saw so many places, the things that I did

            "Mãe... Estou preso na boate!", começou a escrever para a mãe. "Tem um cara atirando". Em seguida, ele viu a resposta da mãe: "Na boate? Você está bem? Fique aí!".
            Então, um estrondo derrubou a porta do banheiro. Almir havia entrado ali para acabar com quem ainda estivesse vivo.
            "Ele está vindo, mãe!", respondeu Felipe; "Eu te amo, mãe, te amo!".

Yeah, with every broken bone
I swear I lived


            Uma bala cruzou o olho direito de Felipe enquanto outra bala penetrou o seu peito e atingiu o coração. A última coisa que o jovem conseguiu enxergar foi o líquido vermelho e viscoso tomar conta do seu corpo até tudo escurecer.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Série - O Mundo dos Sonhos: Cap.1


1. Enquanto ele ronronava


           Olhe, talvez, quando for ler esta história, você ache que seja uma tremenda bobagem ou que eu esteja muito louco. Mas eu garanto: é sério, aconteceu, e eu não usei drogas para ver essas coisas. O mundo em que eu vivo rompe várias regras e leis universais, então, acredite se quiser!
            O que eu vou contar agora foi algo meio assustador; aconteceu na semana passada, no sábado. Todo sábado eu vou ao shopping comprar alguma coisa e, no último sábado, não foi diferente.
            Quando cheguei ao shopping, peguei o carrinho de compras no estacionamento e corri para a melhor parte: uma rampa bem inclinada que levava ao andar inferior, onde ficava o acesso às lojas. Enquanto eu descia empurrando o carrinho e dando risada, as pessoas me olhavam – ou muito sérias ou fazendo caretas –, mas não liguei muito pra isso.
            Nos corredores iniciais do shopping, há algumas agências bancárias, todas com paredes de vidro medindo cinco metros de altura – a segurança por aqui é muito boa (para quem tem dinheiro!). Cruzei o corredor e o mezanino enquanto diversas pessoas também seguiam na mesma direção ou voltavam de suas compras.
            Quando saí do mezanino, que tinha o piso de vidro também, entrei no corredor das lojas. A primeira loja era a loja de chocolates, uma loja bem famosa, que leva o nome da fruta que é a matéria-prima do chocolate. Para a minha sorte, havia algumas coisas em promoção – os cartazes amarelos quase saltavam nos olhos dos clientes.
            Um homem alto, de cabelo claro, roupas em tons escuros e um pouco sisudo. A mulher, pelo contrário, mostrava-se supergentil e sorridente, com o seu cabelo afro e a sua roupa multicolorida:
            — Bom dia! Em que posso ajuda-lo? — perguntou-me o homem, fingindo um sorriso.
            — Oi — eu respondi, sem graça. — Vou querer aqueles chocolates ali.
            Quando apontei para as barras de chocolate no alto da prateleira, vi duas coisas que me chamaram a atenção, sendo uma delas algo que me arrependo de ter comprado (eu devia ter pegado a outra coisa!): um boneco de pano que tinha a cara de um gato, com uma mancha no olho; e um ovo de páscoa de dois quilos.
            — E aquilo ali — apontei para o boneco felino, curioso. — Quanto fica?
            — Ótima escolha! — a atendente, que havia acabado de dispensar um cliente, veio falar comigo e intrometer-se na venda do parceiro. — É peça única.
            — Ah! — sorri, fingindo gratidão. — Quanto fica?
            — Tudo por R$ 48 — respondeu o homem, ao mesmo tempo em que eu vi o valor digitado no computador.
            Nesse instante, ouvi uma bagunça vinda do corredor do shopping; havia uma gritaria intensa e repleta de xingamentos. Os atendentes da loja em que eu estava ficaram visivelmente perturbados com a situação – eles se olhavam como se quisessem dizer algo um ao outro.
            — Vá! — o homem gritou para mim. Ele apontou a direção, mostrando o fundo da loja, e ordenou que a mulher me seguisse. — Vá com ele. Rápido!
            Não tive tempo de perguntar o que estava acontecendo: a mulher me empurrou para o fundo da loja e saímos por uma portinha que dava acesso a uma rua deserta. Logo atrás, o homem sisudo saiu pela porta e passou a chave no trinco:
            — O que foi isso? — questionei, preocupado.
            — Caramba — reclamou a mulher, chocada com o que via.
            O lugar onde estávamos parecia outro de onde eu havia saído. Quando cheguei ao shopping, o céu estava limpo e ensolarado; mas, agora, o céu estava carregado de nuvens cinzentas e uma névoa gelada pairava sobre tudo. Aliás, não havia um shopping atrás da gente, muito menos a porta pela qual havíamos saído.
            — O que está acontecendo? — insisti, inutilmente.
            — Vamos! — o homem pegou na mão da mulher e desceu a rua, mostrando-me o caminho.
            Enquanto descíamos o quarteirão pela calçada, passamos por uma grande catedral ao nosso lado direito; estava abandonada, pois as portas caíam aos pedaços e os vidros das janelas haviam sido todos quebrados. As paredes do templo religioso estavam pretas, chamuscadas de cinzas – provavelmente, por um incêndio.
            — Filho da puta! — um homem gritava no meio da rua, um pouco mais abaixo. — Eu ando onde eu quiser...
            Ele estava bêbado.
            Como eu percebi isso? Ele cambaleava enquanto andava no meio dos carros; e segurava uma garrafa de cachaça na mão direita. Devia ser algum morador de rua, pois suas roupas estavam sujas e rasgadas.
            Então, deixando-me mais surpreso e assustado, o gato de pano que eu carregava no colo ronronou. Isso mesmo, o gato de pano ronronou.
            Em seguida, o bêbado atacou um dos carros com a sua garrafa e, depois, começou a se jogar em cima dos carros.
            O casal de atendentes me puxou e viramos à direita, cruzando a rua e passando ao lado do bêbado troglodita:
            — Seus putos! — gritou o bêbado enquanto passávamos por ele.
            Apertarmos o passo e continuamos a subir a rua. Neste ponto, a voz do bêbado parecia um murmúrio.
            O homem e a mulher pararam em frente a uma casa de arquitetura antiga, com arcos na varanda. Entramos no pequeno quintal e a porta de madeira se abriu sozinha num ranger amedrontador.
            — O que vão fazer? — perguntei aos dois enquanto observávamos o interior da casa. Logo em frente à porta, uma escadaria levava ao piso superior, onde tudo era muito escuro e impossível de enxergar.
            — Precisamos entrar — disse a mulher. — Não estamos seguros aqui fora.
            Subimos as escadas e a porta se fechou logo atrás. Quando chegamos no piso superior, encontramos um longo corredor – era possível enxergar a sua extensão por conta de uma luz azulada que vinha do fundo.
            Então, uma silhueta surgiu três metros à nossa frente. Forçando a visão, percebi que era uma senhora vestindo uma camisola.
            — Há! — a mulher idosa soltou um grito agoniante e infantil, de tão agudo.
            Quando percebi que eu tinha que correr, o chão desapareceu e caí, junto aos atendentes, num cômodo muito escuro. O cômodo era quadrado, mas não tinha nenhuma saída. Lá em cima, a senhora nos encarava:
            — Que o Terceiro Dilúvio comece! — berrou a velha.
            Por algumas frestas entre os tijolos de pedra nas paredes, começou a cair água e inundar o cômodo.
            — Nós vamos morrer! — eu gritei, muito assustado.
            — Lá! — a mulher apontou para o teto, onde havia um pequeno buraco.
            A água, rapidamente, inundou o quarto e fomos expulsos para o corredor forrado de pedras. Enquanto éramos levados pela correnteza no estreito corredor, enxergamos, sob a água, alguns bichos estranhos refletidos contra a luz azulada e turva.
            Graças àquela luz, pude enxergar uma alavanca que estava no chão do corredor e puxei-a no sentido contrário – eu nem imaginava qual seria o resultado daquilo. Em seguida, a água começou a perder a vazão e foi sugada pelas paredes e pelo chão.
            — Vamos correr antes que ela volte! — eu sugeri. Só aí é que eu percebi que ainda tinha o gato de pano comigo.
            Corremos pelo corredor o mais rápido que pudemos assim que percebemos a mulher atrás de nós.
            Mais um grito ecoou pelas paredes de pedra, tornando o som muito mais estridente.
            Continuamos a correr quando vimos uma porta aberta, exibindo a rua.
            — Jogue isso fora! — o homem apontava para o gato de pano que eu segurava. — Se não, não conseguiremos fugir!
            Olhei mais uma vez para o boneco de pano felino, que ainda ronronava nas minhas mãos como se estivesse vivo. Joguei o bichano no chão e aumentei a minha velocidade enquanto corria.
            O homem e a mulher já haviam conseguido passar pela porta. Olhei mais uma vez para trás e vi que a velha louca corria na minha direção (ou na direção do boneco) e isso me motivou a correr ainda mais. Quando passei pela porta, caí no chão e eu respirava ofegante enquanto os dois tentavam me ajudar.
            Enquanto eu recuperava o meu fôlego, vi a mulher idosa ainda correndo dentro do túnel de pedras rumo à porta que, por sorte, fechou-se de súbito. Logo depois, uma substância branca e leitosa começou a ser jorrada da parede e cobrir toda a porta até formar uma grossa e rígida camada intransponível.
            — Vamos embora — disse o homem, olhando para a mulher e abraçando-a. — Boa sorte, garoto.
            Eles subiram a rua até sumir no horizonte.
            Quando me virei para o sentido contrário, notei que o homem bêbado ainda estava ali no cruzamento das ruas. Porém, ele não estava mais gritando, xingando e batendo nos carros; ele estava caído no asfalto, morto, enquanto os carros passavam sobre ele sem se importarem.
            Eu só consegui respirar aliviado.
            Assim, desci a rua para tentar encontrar o caminho de volta para casa.

domingo, 6 de março de 2016

Pequeninas Aventuras


            Viver numa cidade grande parece ser algo fácil para qualquer um, ainda mais quando se tem uma casa própria para viver sem se preocupar com aluguel. Mas isso não funciona com gente pequena.
            Na verdade, isso não funciona com gente bem pequena – pequena mesmo: gente menor que uma escova de dente.
            — Pai! Olhe só isso — Caio apontava para um alfinete. Nas suas mãos, o objeto parecia mais uma espada. — Encontrei lá no quintal.
            Caio era um "menino" muito curioso. Ele era o filho mais velho de César e Joana. Com os seus 16 anos de idade, Caio já media dez centímetros de altura, o normal para um adolescente Pequenino.
            — Eu não acredito! — César franziu o cenho e tomou o alfinete do garoto. — Você subiu de novo? Já conversamos sobre isso, Caio.
            — Eu sei, pai — o menino pendeu a cabeça, desanimado, mas logo tratou de explicar-se. — Eu estava meio entediado aqui... Daí, enquanto eu limpava a entrada para o esgoto, vi algo brilhando lá no quintal. Achei que fosse algo útil. E não deixa de ser!
            — Quintal? — Joana logo apareceu atrás da porta da sala. A família vivia numa "toca" dentro de um ralo do quintal de uma casa. Com objetos achados e "emprestados", eles construíram uma espécie de casa com cômodos todos mobiliados com objetos comuns: folhas que serviam de cortinas, pedaços de madeira que serviam de porta, papelões que serviam de paredes, restos de flanelas que serviam de cobertores, pequenos tubos que serviam de encanamento para a rede de água e esgoto própria, pequenas caixas revestidas com espumas que serviam de camas etc. — O que você foi fazer no quintal, Caio?
            Joana, dos quatro, era a mais medrosa. Se ela visse um humano na sua frente, provavelmente, desmaiaria.
            — Mãe! — Caio se cansou de explicar e sentou-se no sofá da sala. — Eu cansei de ficar só aqui dentro. Vocês podiam me deixar sair para uma viagem em busca de amigos, né?
            — Não fale uma besteira dessas, filho — pediu César, rangendo os grandes dentes incisivos, que lhe davam a aparência de um roedor humanoide. — Você tem eu, sua mãe e sua irmã como amigos. Não tem porque sair por aí em busca de mais e correr perigo.
            — Vocês não entendem... — Caio deu as costas para os pais e entrou para o seu quarto.
            O jovem Pequenino entrou em seu quarto, deitou-se na sua cama e ficou observando o teto do quarto – ele havia colado uma série de figurinhas com imagens de vários lugares do mundo: templos chineses, florestas tropicais, montanhas congeladas, desertos escaldantes e vilarejos à beira-mar.
            Toque-toque.
            Caio sonhava em conhecer cada um daqueles lugares. Mas era um sonho idiota; ele estava destinado a jamais sair daquela "boca" de esgoto.
            Toque-toque!
            — Quem é? — questionou Caio, enquanto alguém batia à porta.
            — Eu! — uma voz feminina e aguda soava do outro lado.
            — Ah! — o jovem fez uma careta. — Entra.
            Era Janete, a irmã caçula de Caio. A menina tinha sete anos de idade e cinco centímetros e meio de altura. Seu rabo, semelhante ao rabo de uma girafa (só que mais comprido), balançava freneticamente ao poder entrar no quarto do seu irmão mais velho.
            — Por que você está triste? — perguntou Janete, curiosa.
            — Nada — respondeu Caio, sem desviar o olhar do teto.
            — Por que você está olhando para o teto? — interrogou.
            — Janete! — Caio virou o rosto e encarou a Pequenina. — O que você quer, afinal?
            — Eu ouvi você dizer que vai viajar em busca de amigos — explicou a menina, sorridente. — Posso ficar com o seu quarto? Diz que sim? Deixa?
            — Janete... — Mentalmente, Caio contou até dez e respirou fundo. — Eu não vou para uma viagem. O papai e a mamãe não deixam. Pode esquecer! Quem sabe, um dia, quando eu for embora?
            — Embora? — Janete arregalou os olhos, assustada. — Não, por favor! Não precisa me dar o seu quarto... Fica!
            Caiu soltou uma gargalhada e fez cócegas na irmã.
            Mais tarde, todos estavam reunidos na mesa para o jantar. Então, um estrondo abafado soou pela toca dos Pequeninos, fazendo tudo tremer, e, em seguida, uma enxurrada começou a cair ao lado de fora.
            — Vou verificar as barreiras de contenção — disse César, levantando-se e saindo da toca.
            Contudo, a toca começou a ser inundada por uma correnteza causada pela forte chuva.
            — Caio, pegue a sua irmã! — gritou César, enquanto corria para socorrer a família. — Joana, venha!
            Janete se agarrou no pescoço do irmão que, inesperadamente, correu para dentro do seu quarto em vez de seguir rumo à saída da toca. Enquanto isso, César e Joana tentavam atravessar a correnteza que se havia formado no interior do ralo; o único jeito de sair dali seria seguindo a correnteza – era impossível nadar contra.
            — Cadê o Caio e a Janete? — perguntou Joana, desesperada. — Cadê os meus filhos, César?
            — Fique calma! — pediu César, inquieto. — Caio! Janete!
            — Estamos aqui — respondeu Caio, saindo da toca com a irmã pendurada nos seus ombros. — Eu precisava buscar isto.
            Nas mãos do menino, o alfinete que ele havia conseguido mais cedo e uma mochila pendurada nas costas.
            A família toda pulou sobre uma tampa de plástico e utilizaram-na como um bote, descendo a correnteza em direção ao esgoto. O encanamento era espaçoso o suficiente para o bote e a família, mas a enxurrada estava muito forte e ameaçava afoga-los a qualquer instante.
            — Segurem firme! — gritou César.
            Logo à frente, a água parecia não seguir mais. Mas era uma ilusão de ótica, havia uma queda ali; era o acesso para a via de esgoto, encanamentos com 60 centímetros de diâmetro.
            Em uníssono, a família gritava enquanto caía no esgoto. Por sorte, todos conseguiram nadar de volta para o bote e manterem-se seguros.
            — Eu não acredito! — reclamou César. — Perdemos tudo! Tudo!
            — Não fique assim, meu amor — suplicou Joana, ainda abalada. — Ao menos estamos todos vivos. Podemos achar outro lugar mais seguro para construir.
            — O quarto do Caio nunca mais será meu! — Janete estava profundamente chateada com isso. Caio a abraçou forte, tentando conter o seu choro.
            — Aquela casa foi do meu pai... E do meu avô! — justificou César, passando a mão sobre a testa. — Eu fui um burro! Eu devia ter verificado as barreiras mais cedo... Eu me esqueci completamente.
            Com a sua irmã em seus ombros, Caio estava sentado na borda da tampa de plástico e com os olhos fixos no chão, como se estivesse em outro lugar. Joana cutucou o companheiro para que ele visse a situação do filho.
            — Filho? — César se aproximou de Caio e apoiou a sua mão no ombro do jovem. — Está tudo bem
            — Foi minha culpa — respondeu Caio, ainda olhando para baixo.
            — Como? — César não compreendeu a fala do menino. — O que você quer dizer com isso?
            — Foi tudo culpa minha. Eu destruí a nossa casa — revelou Caio, envergonhando, sem encarar o pai. — Mais cedo, quando fui ao quintal, as barreiras estavam fechadas. Eu abri para poder passar e ir até o quintal. Eu esqueci de arrumar quando voltei!
            — Caio, não pode ser... — César ficou visivelmente transtornado com a revelação.
            Janete percebeu a inquietação do pai e começou a chorar. Joana pegou a filha no colo e abraçou Caio.
            — César, deixe isso pra lá! — pediu Joana, preocupada.
            — Não! — César soltou um berro agoniado. — Ele destruiu a nossa família!
            — Não! — Joana abraçou o filho fortemente. — Não fale isso, César.
            — Preste atenção! — César puxou o queixo do filho para cima, obrigando o menino a encara-lo. — Assim que avistarmos terra firme, você desce do bote.
            — César! — Joana ficou boquiaberta.
            — Mãe, não! — Caio abraçou a mãe, segurando o choro e tentando demonstrar força. — Ele está certo. Eu vou seguir a minha vida. Está mais do que na hora. Prometo que vou recompensar vocês pelo meu erro. Eu realmente sinto muito.
            Duas horas depois, o bote aportou na beira de uma malha de ferro que impedia qualquer resíduo sólido, com mais de dez centímetros de altura e de largura, seguir em frente pelo esgoto.
            — Pronto — César se levantou do bote e amarrou-o em uma das barras de ferro da malha. — Subiremos para a superfície e montaremos acampamento.
            A família escalou o lixo que estava empilhado ali e conseguiu alcançar uma saída – eles estavam à beira de um córrego. César pegou alguns gravetos e montou duas barracas e uma fogueira.
            — Você pode ficar durante esta noite — o líder da família apontou para o seu filho mais velho. — Depois, você pega as suas coisas e vai embora pela manhã.
            — Ok — Caio entrou na sua barraca e ficou lá durante o fim da tarde e o jantar.
            No meio da noite, Caio saiu da barraca e viu que seus pais e sua irmã dormiam na outra barraca. Então, o jovem pegou uma mochila, um cobertor e o seu alfinete, e seguiu mata adentro.
            Quatro horas depois, o sol já raiava e Caio havia chegado perto de uma casa para humanos. Uma cerca gigantesca dava volta em toda a casa, impossibilitando a entrada – a "muralha" devia medir de um metro e trinta a um metro e setenta.
            Caio ficou estudando o ambiente tentando achar outro meio de ultrapassar a barreira e, de repente, percebeu uma grande árvore da qual pendia um tronco para dentro do quintal. O Pequenino não esperou: correu velozmente até o pé da árvore.
            — Ufa! — Caio transpirava. — Preciso treinar mais!
            Quando o jovem começou a escalar o espesso tronco da árvore, ele foi surpreendentemente interrompido:
            — Caio! — era uma doce e familiar voz feminina. — Espere por mim!
            — Janete! — O Pequenino se assustou quando olhou para baixo e viu a sua irmã com uma mochila rosa de boneca nas costas e estendendo os braços enquanto saltitava. — Mas o que você está fazendo aqui? Cadê o papai e a mamãe? O que houve com eles?
            — Eles foram embora — respondeu a menina.
            — E te deixaram? — Caio estranhou o fato. — Como assim?
            — Não foi bem assim. Eu saí escondida quando te vi indo embora — revelou Janete. — Eu escutei o papai e a mamãe me chamando, mas não voltei porque queria falar com você. Mas ouvi um barulho vindo do acampamento, então acho que eles foram embora.
            — Suba aqui — Caio fincou a sua "espada" na casca da árvore, pendurou a sua mochila, e desceu para ajudar a irmã a escalar.
            Quando chegaram no galho mais alto, tentaram localizar o acampamento dos pais.
            — Ali! — o Pequenino apontou para o local próximo à saída de esgoto. — O acampamento estava ali. Mas não está mais... Eles foram embora!
            — Olha lá! — Janete apontou para o córrego, um pouco mais à frente do acampamento. — O papai e a mamãe estão no bote, descendo o rio.
            — Ai, não! — o garoto bateu a mão na cabeça, desconsolado. — E agora, Janete? Nunca vamos conseguir alcança-los. Pelo menos não agora. Vamos entrar na casa e pegar algumas coisas emprestadas para conseguirmos chegar até o papai e a mamãe. Depois, eu vou embora.
            — Não! — gritou Janete. — Você não pode ir embora...
            — Lucas, vem tomar o seu café! — uma voz feminina soou pelo quintal, vinha de dentro da casa.
            Caio se agachou no galho da árvore e puxou Janete para perto de si. Havia um humano no quintal, uma criança.
            — Faça silêncio — murmurou Caio, fazendo um gesto com o dedo indicador e mostrando o menino no quintal.
            Janete fez uma careta; ela estava assustada e com medo, pois nunca havia ficado tão perto de um humano.
            — Vamos! — Caio caminhou com precaução sobre o galho e guiou Janete logo atrás. — Temos que entrar na casa. Assim que ele entrar, nós descemos pela muralha.
            Quando Lucas, o menino, levantou-se da grama e virou as costas para a árvore, Caio e Janete se seguraram na madeira da cerca e deslizaram até o chão. Sorrateiramente, os dois correram no meio da grama, mas pararam ao ver o menino humano virar a cabeça para trás e olhar bem na direção deles.
            — Ele viu a gente? — Janete ficou parada como uma estátua; o seu coração batia aceleradamente.
            — Acho que não — supôs Caio. — Abaixe-se bem devagarinho... Sem fazer barulho.
            — Ei! — Lucas, o menino, deu um sorriso ao ver as duas criaturinhas no meio do quintal. O menino correu até as criaturas.
            — Lucas! — novamente, a mãe do menino lhe chamava para tomar o café. Dessa vez, ela estava na soleira da porta, com um chinelo na mão. — Você vai vir ou não?
            Lucas olhou para a mãe, abaixou a cabeça e olhou para os Pequeninos. O menino humano estava sem saber o que fazer, mas achou que seria mais fácil procurar aqueles ratos depois do que se recuperar das palmadas da mãe.
            — Ah, droga! — assim, Lucas correu para dentro da casa.
            No mesmo segundo, Caio puxou Janete por todo jardim até chegar à parede da casa. Por sorte, havia um buraco, onde os irmãos entraram e alojaram-se.
            — Deita aqui no meu colo — Caio se sentou no chão de madeira e apoiou as costas na parede. Era um corredor bem estreito. — Vamos descansar um pouco e, depois, procuramos algo para comer.
            Assim que Janete apoiou a cabeça no colo do irmão, ela adormeceu. Caio soltou um breve sorriso e acabou dormindo também. Ainda bem que um tinha ao outro ali, pois nenhum deles fazia ideia de como seria dali pra frente.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

MESSOREM: O Aprendiz da Morte (C. 6)

            Um mês se passou desde que Felipe cumpriu a sua missão e libertou a alma de Luciana, sua prima. Agora, sem ver o seu guia misterioso há alguns dias, o garoto precisa lidar com o seu desafio final: ceifar as vidas dos seus pais; ao mesmo tempo, Felipe precisa pensar numa forma de limpar toda a sujeira para, então, tornar-se o Mestre da Morte.

Acesse os capítulos anteriores para relembrar a história:



Capítulo 6 – As últimas entradas

            O ultrabook de Felipe estava ligado e a sua tela exibia o seguinte:
            Eduardo Presto
            Luciana Pêra do Vale
            Gabriele Fontana
            Otávio Macedo
            Edivânia Costa da Silva
            José Fernandes de Abreu
            Marta Vicentini Ferraz
            Julio Vicentini Ferraz
            Os olhos de Felipe estavam vermelhos e arregalados diante da tela. Passaram-se quatro semanas desde que havia cumprido a sua missão com Luciana.
            Desde então, uma coisa puxou a outra: Gabriele, a melhor amiga de Luciana, estava no lugar errado na hora errada (embora o seu nome já estivesse no Messorem desde o início, indicando que a sua presença naquele instante não era por acaso); Otávio, o namorado de Luciana, foi morto pouco depois, quando chamou Felipe para uma conversa a sós, pois exigia saber o paradeiro de Luciana, que havia saído para encontrar o primo; Edivânia e José foram os próximos: eram os pais de Luciana que, ao encontrar o telefone da filha, descobriram que o sobrinho havia sido o último a conversar com ela antes de encontrarem ela e Gabriele mortas num terreno baldio na zona norte da cidade (Felipe não ficou contente quando foi chamado pelos tios para uma visita urgente e cheia de questionamentos).
            O homem que guiava os seus passos havia desaparecido desde a morte dos seus tios. Felipe estava por sua própria conta agora.
            Com a mudança de comportamento após tantas mortes, Marta e Julio, os pais de Felipe, começaram a acompanhar mais cada passo do menino. Por isso, os últimos dias estavam tão difíceis – Felipe sabia que teria de cumprir a sua última e, talvez, mais importante missão: ceifar as vidas dos seus progenitores.
            — Filho? Posso entrar? — era Julio, com a cabeça no vão da porta entreaberta.
            — Ué! Você já 'tá aqui dentro mesmo — respondeu Felipe, com um ar seco, enquanto fechava imediatamente o programa. — O que foi?
            — Eu e sua mãe queremos muito conversar com você, filho — respondeu Julio. — Estamos muito preocupados com você... Muita coisa aconteceu e você se fechou.
            — Eu não quero falar sobre o que aconteceu — o menino não fez rodeios. — Eu só quero ficar em paz!
            — Felipe Vicentini Ferraz — quando Julio "proclamava" o nome inteiro, Felipe já sabia que vinha bronca —, hoje à noite, às 7h, você vai sair com a sua mãe e me encontrar no restaurante onde jantaremos juntos, ouviu?
            — Mas... Pai! — Felipe tentou contestar.
            — Sem mais conversas... Às 7h da noite, estarei esperando por você e por sua mãe — Julio fechou a porta e saiu para o trabalho.

            Após sair do banho, Felipe procurou por sua mãe – então, viu que ela estava na sala assistindo à novela:
            — Mãe! — o menino gritou do alto da escada. — Pode vir aqui no meu quarto?
            Felipe estava cansado daquilo tudo; queria acabar com tudo; não queria mais ser o Aprendiz da Morte – ele queria ser o Mestre.
            — Estou indo, filho, só um segundo! — respondeu Marta.
            Enquanto isso, Felipe rapidamente vestiu a sua túnica preta e preparou a sua lâmina. Ele apagou a luz do quarto e deixou apenas um abajur aceso na penumbra.
            — Fê? — Marta bateu à porta do quarto. — Posso entrar?
            Felipe permaneceu calado no outro canto do quarto, em pé, segurando a gadanha.
            — Fê? — Marta abriu a porta e assustou-se com o que viu. — Felipe, que brincadeira estranha é essa?
            Mirando-a do outro canto da parede, Felipe soltou um sorriso malicioso e perverso e deu alguns passos à frente:
            — Não é brincadeira, mãe — explicou o menino; o seu coração, incrivelmente, não batia acelerado; a sua voz estava serena. — É tudo de verdade!
            Marta arregalou os olhos para o tamanho da lâmina afiada e manchada de sangue. Ela, disfarçadamente, deu alguns passos para trás a fim de sair do quarto e buscar ajuda.
            — Mãe? — chamou Felipe.
            — Sim, filho? — gaguejou a mulher.
            — Você não está com medo de mim, está? — Felipe sorriu mais uma vez. Ele sentiu uma espécie de prazer ao vivenciar toda aquela situação. — Afinal, sou o seu filho.
            — Não, meu bem... — respondeu Marta, aflita ao perceber maldade nas palavras do próprio filho. — É que estamos atrasados. O seu pai está esperando, lembra?
            — Ele não se importará com isso, não é? — supôs o garoto, aproximando-se mais de Marta. — Vai ter para ele também!
            Nesse instante, Marta saltou para trás e puxou a porta, mas sentiu um baque na sua cabeça e caiu desfalecida no chão enquanto o sangue escorria pelo seu rosto.

            Quase uma hora depois, Julio chegou em casa após inúmeras tentativas de falar com Marta ou com Felipe. Ele viu que o carro da esposa ainda estava na garagem, mas que as luzes da casa estavam todas apagadas, exceto pela pouca luz que vinha do quarto de Felipe.
            Julio correu para dentro de casa desesperado – já fazia alguns dias que estava desconfiando do envolvimento de Felipe com as mortes que haviam acontecido na vizinhança, afinal, o menino conhecia cada uma daquelas pessoas e havia ficado diferente após a morte de cada uma.
            Precavido, Julio discou o número da polícia e alegou um pedido de emergência.
            — Marta! — Julio gritava enquanto subia as escadas. — Marta!
            O pai de Felipe não hesitou em entrar no quarto do menino, mas caiu de joelhos no chão quando se deparou com a cena lastimável: Marta estava deitada no chão do quarto, numa poça de sangue que se esvaía da sua cabeça; na parede, com o sangue da mulher, estava escrito "MESSOREM".
            — O que você fez? — Julio pegou a cabeça de Marta e colocou sobre o seu colo enquanto afagava os seus cabelos.
            Felipe estava sentado na cama, observando os pais; o seu semblante permanecia calmo.
            — Ela ainda está viva — respondeu Felipe.
            — Mas que inferno! O que você pensa que está fazendo, Felipe? — gritou Julio, aos prantos. — Você pirou? Ela é a sua mãe!
            — E você é o meu pai — completou Felipe. — Olha, tente não se exaltar... Isso pode impedir que a sua alma parta com exatidão. Você pode ficar preso entre os dois mundos eternamente.
            — Cala a boca, moleque! — Julio se levantou e avançou na direção de Felipe. — Foi você, né? Você matou toda aquela gente... O menino da escola, a sua prima, os seus tios... Por quê, Felipe? Por quê?
            — Porque eu era o Aprendiz da Morte, pai — respondeu Felipe, melancólico. — Eu precisava exercer o meu ofício como um ceifador e enviar almas para a Morte. Agora estou prestes a me tornar o Mestre da Morte!
            — Você precisa de ajuda, meu filho! — sugeriu Julio. — Vamos! Antes que aconteça o pior... Deixe a gente te ajudar.
            — E quem disse que eu quero ajuda? — Felipe se aproximou dos pais. — Olha, vamos acabar logo com isso tudo. A alma de vocês anseia pela libertação!
            Marta acordou e gritou de dor. Julio tentou ajuda-la, mas não havia muito o que fazer ali.
            — Pronto. Vocês partirão juntos, como um casal — alegou Felipe. — Adeus!
            Então, o menino ergueu a lâmina e, num movimento rápido, passou a gadanha pelos pescoços de Julio e de Marta; as suas cabeças caíram e rolaram por alguns centímetros até pararem como se encarassem Felipe pela última vez.
            Em seguida, a tela do ultrabook piscou. Felipe se encurvou sobre a cama e ficou boquiaberto com o que viu: o programa Messorem não estava mais na tela do aparelho; fazendo uma busca rápida pelo sistema, era como se o programa nunca tivesse existido na máquina.
            Alguns minutos depois, antes que pudesse se recompor, limpar toda aquela bagunça e pensar numa saída para aquela situação, o quarto se iluminou com as luzes e se encheu com o barulho de sirenes policiais. Não demorou muito para que o seu quarto estivesse cheio de policiais:
            — Mãos ao alto! — berrou um agente. — Eu repito: mãos ao alto!