A noite estava
abafada. Não havia uma nuvem no céu; em contrapartida, as estrelas revestiam
toda aquela imensidão de cor azul escuro. A rodovia, por sorte, estava livre –
quase não se via carros passando pela pista contrária, nem atrás, nem à frente.
Eram apenas Rodolfo e Luís, dentro daquele carro.
— Caramba! — reclamou
Luís. — Que calor horrível! Já é quase meia noite e o tempo ainda está assim...
— Esta região aqui de
Araçatuba é assim mesmo — comentou Rodolfo. — Mas estamos quase lá; só mais
umas duas horas e chegaremos em Ilha Solteira.
O casal estava
dirigindo rumo à cidade de Ilha Solteira, última cidade do estado de São Paulo
antes da divisa com Mato Grosso do Sul. A família de Rodolfo era do interior, e
o jovem estava levando o namorado para apresentá-lo aos seus pais.
— Se à noite é assim,
imagine durante o dia! — pensou Luís, incomodado com o clima. — Mais duas horas
e estaremos carbonizados...
— Pare de ser
exagerado, Luís! — pediu Rodolfo. — Lá tem um rio enorme pra você se refrescar
durante o dia. Relaxa!
— “Nhandeara” —
comentou Luís. — Que nome esquisito, o dessa cidade!
— É um nome de origem
tupi — explicou Rodolfo.
O carro estava com as
janelas da frente abertas, para refrescar um pouco a viagem do casal. Alguns
insetos acabavam entrando no carro e perturbando Luís, mas aquilo não era nada
comparado àquele calor insuportável que o rapaz sentia.
De repente, o carro
começou a perder a velocidade. As luzes do painel frontal piscaram três vezes e
se apagaram; depois, foi a vez dos faróis do carro. Estava um breu.
— O que aconteceu? —
questionou Luís, olhando ao redor. Estava tudo muito escuro, não havia sinal
algum de uma cidade próxima. Nenhum carro passava na rodovia.
— Caramba... Não sei!
— respondeu Rodolfo. — A bateria deve ter arriado, ou algo do tipo. Não sei!
— Como assim? — Luís
ficou espantado. — Você não checou o carro antes da gente sair? Não podemos
ficar parados aqui no meio do nada!
— Espera um pouco...
— Rodolfo tentou ligar o carro, mas não conseguiu. — Não sei o que houve. Vou
precisar sair e procurar ajuda.
— O quê? — Luís não
acreditou no que ouvira. — Ficou louco, Rodolfo? Olha a escuridão que está lá
fora! Por que não usa o celular?
— Celular, neste meio
do nada? — interrogou o jovem. — Não tem sinal aqui, Luís. Se eu não sair e
procurar ajuda, ficaremos aqui, sabe-se lá até quando!
— Rodolfo, não tem
onde buscar ajuda! — insistiu Luís.
Rodolfo saiu do carro
e caminhou em volta do veículo. O rapaz esticava o pescoço para o lado direito
da pista, tentando ver se encontrava alguma moradia no meio daquele campo sem
fim.
— Acho que tem uma
casa ali — Rodolfo apontou no meio do nada.
— Onde? — estranhou
Luís. — Não vejo nada!
— Olhe bem ali... —
pediu Rodolfo. — Está vendo um pontinho iluminado? É uma janela! Tem uma casa
ali!
— Então vamos lá! —
disse Luís.
— Não! — respondeu o
motorista, prontamente. — Se o carro ficar sozinho, pode ser roubado ou algo do
tipo. Você fica; eu volto rápido!
— Sozinho? — perguntou
Luís, soltando um leve gemido de medo.
— Eu volto logo!
Prometo — Rodolfo deu um selinho no namorado, pegou duas lanternas no
porta-luvas, uma para ele e outra para Luís. — Espere no carro.
Assim, Rodolfo se
embrenhou no meio do mato e desapareceu na escuridão.
Enquanto isso, Luís
ficou sentado no banco do passageiro, mexendo no celular. A lanterna iluminava
o interior do carro, proporcionando um pouco mais de segurança ao rapaz.
Pouco tempo depois,
Luís ouviu um barulho; pelo retrovisor, o rapaz pôde ver os faróis de um carro
se aproximando. Ele apagou a lanterna imediatamente e ficou em silêncio,
tentando não chamar atenção.
O carro passou ao
lado, na pista, e estacionou no acostamento logo à frente.
Luís começou a suar
frio; achou que seria roubado, sequestrado ou, até mesmo, morto. O jovem
começou a rezar em voz baixa e tremia.
— Oi! — uma voz
masculina ecoou dentro do carro. — ‘Tá tudo bem aí?
— Oi — Luís abriu os
olhos e encarou o homem na janela do carro. — Acho que a bateria do carro
arriou. Meu nam... Meu amigo foi procurar ajuda.
Ele preferiu não
comentar que tinha um namorado. Se o homem desconhecido fosse homofóbico,
mataria ele ali mesmo.
— Ajuda? — estranhou
o homem misterioso. Ele usava uma barba rala e seus olhos carregavam um ar
sombrio. — A cidade mais próxima daqui está a uns trinta quilômetros. E se ele
voltou, vai ter que andar, pelo menos, cinquenta quilômetros. Quer uma carona?
— Não! — respondeu de
imediato. — O Rodolfo não voltou... Ele acha que viu uma casa no meio do pasto,
e foi até lá tentar pedir ajuda. Obrigado.
— Tem certeza? Não há
ninguém morando num raio de vinte quilômetros — comentou o homem. — Meu nome é
Fernando. Moro em Pereira Barreto, é perto daqui. Se quiser, posso te dar uma
carona até um posto policial.
— Obrigado, mesmo... —
agradeceu Luís, desconfiado. — Mas prefiro esperar pelo Rodolfo.
— Esse Rodolfo é seu
namorado, né? — questionou Fernando, intrometido.
— Hein? — Luís
começou a ficar mais apreensivo e demonstrou sua tensão.
— Você tem uma
aliança... — Fernando apontou para o dedo do rapaz. — Você não deixaria sua
namorada para viajar com um amigo em plenas vésperas do Natal.
— Cara, desculpe... —
Luís estava incomodado. — Será que você pode ir?
— Tudo bem! — disse
Fernando, mostrando um belo sorriso. — Vou deixá-lo em paz. Espero que seu
namorado não te deixe aqui plantado a noite inteira, pois você não merece. Boa
sorte!
Assim, Fernando volta
para o seu carro e some na escuridão da rodovia.
Luís reacende a
lanterna e tenta ligar para o celular de Rodolfo, mas não consegue. O rapaz sai
do carro e anda para o campo à sua direita – havia um pequeno morro, onde,
talvez, o sinal do celular tivesse uma maior intensidade.
Sobre o morro, Luís
enxerga melhor a luz vista por Rodolfo; mas também se dá conta de que, com
certeza, aquela não era a luz da janela de uma casa. O que Luís via era uma
espécie de fogueira, bem longe dali, como uma festa. Havia algumas pessoas em
volta do fogo, caminhando em círculo. Também havia quatro tochas, formando um
quadrado em volta do círculo.
Preocupado com o que
pudesse ter acontecido ao seu namorado, Luís desceu do morro e caminhou rumo ao
local. Já próximo da fogueira, o rapaz pôde distinguir nitidamente todo o
evento: oito pessoas faziam uma espécie de ciranda em volta das chamas,
cantando em um idioma desconhecido para Luís – pareciam estar num transe, numa
hipnose.
No meio do círculo,
Luís conseguiu enxergar Rodolfo. Ele estava deitado sobre uma tábua de pedra,
com um punhal ensanguentado ao lado de seu corpo. Então, Luís percebeu uma mancha
vermelha na mão do namorado – sangue.
— Rodolfo! — gritou
Luís, saindo do meio do matagal em direção ao corpo do namorado.
Nesse instante, as
oito pessoas se calaram. Dois homens seguiram exatamente na direção de Luís e o
agarraram pelos braços.
— Me soltem! — gritou
o jovem. — Socorro!
Mas Luís desmaio
enquanto era carregado para a tábua de pedra e via seu namorado se levantar
como se nada tivesse acontecido.
Cinco minutos depois,
Luís foi acordado por Rodolfo, que mostrava um sorriso largo. Rodolfo passou a
mão sobre o rosto de Luís e removeu o pano que impedia o jovem de gritar.
— O que você está
fazendo? — perguntou Luís, consternado. — Que droga é essa?
— Fique calmo, não
vai demorar — pediu Rodolfo, com calma total. — Colabore com a gente e tudo
ficará bem.
— Rodolfo, o que é
isso? — insistiu Luís. — Me solta! Me deixa ir embora daqui... O que você ‘tá
fazendo?
— Silêncio! — o
garoto deu um tapa para calar o namorado.
Em seguida, os dois
homens voltaram, junto com as outras seis pessoas. Todos fitavam Luís
seriamente.
— Quem são vocês? —
questionou Luís, choramingando.
— Minha família —
respondeu Rodolfo. — Eu não disse que você os conheceria? Pois, então!
— O Rodolfo é um
garoto e tanto — comentou uma mulher, no círculo. Ela tinha feições semelhantes
às de Rodolfo. — Como mãe, tenho orgulho de vivenciar a passagem de meu filho à
vida adulta.
— Do que ela está falando?
— perguntou Luís, irritado e, ao mesmo tempo, desesperado, tentando se livrar
das cordas que o amarravam.
— Somos de uma
linhagem secreta — revelou Rodolfo. — Sempre que um de nós completa os vinte e
um anos, participamos do ritual de passagem à vida adulta. E você é meu
convidado especial!
— Não quero
participar desta merda! — reclamou o menino, sem mais lágrimas para chorar. —
Me tira daqui! Você me enganou o tempo todo... Como fui imbecil!
— Não te enganei! —
respondeu Rodolfo, ofendido. — Eu amo você, de verdade! Mas o ritual exige
isso... Sacrificar o primeiro amor em troca das benções dos deuses por toda a
sua vida.
— Que deuses, seu
louco? — vociferou Luís, sem paciência. — Eu quero ir embora!
— Chega de conversa,
Rodolfo — disse um senhor no círculo. — É chegada a hora do ritual!
— Não! — contestou
Luís.
— Certo, pai —
concordou Rodolfo.
O garoto segurou o
punhal que estava ao lado de seu corpo e ergueu o instrumento, alinhando-o com
o peito de Luís.
— Eu vos ofereço o
sangue do meu primeiro e verdadeiro amor — proferiu Rodolfo, de olhos fechados.
Lágrimas escorriam por seu rosto. — Recebam este sacrifício como prova de minha
devoção e lealdade. Espero por suas benções em minha vida e, em troca, serei
eternamente fiel a vocês.
A chama da fogueira
se intensificou e ficou mais alta. O ar ficava mais seco e caloroso. Luís
fechou os olhos para não ver aquilo. Mas, para sua surpresa, Rodolfo baixou o
punhal nos pulsos do garoto, libertando-o das cordas.
— Fuja daqui —
ordenou Rodolfo, com os olhos marejados. — Corra o mais rápido que puder!
— E você? — mas,
assim que concluiu a pergunta, a mãe e o pai de Rodolfo o esfaquearam pelas
costas. E o jovem caiu morto numa poça de seu próprio sangue.
— O ritual chegou ao
fim — comentou o pai de Rodolfo. —, mas você não vai embora!
Luís correu o máximo
que conseguiu, mas foi encurralado por um dos homens que o aprisionara no
início. O brutamonte fez um movimento rápido com um punhal e cortou o pescoço
de Luís.
Quase se afogando em
seu sangue, que gorgolejava na garganta, Luís continuou correndo em direção à
rodovia. Sua força se esvaía pouco a pouco. Suas esperanças reviveram quando
enxergou, ao longe, um foco de luz vindo da rodovia; alguém mexia no carro do
seu namorado. À medida que se aproximava, conseguia enxergar com mais nitidez –
era Fernando, o homem que oferecera ajuda e que Luís, por medo e desconfiança,
não havia aceitado; mas o garoto estava amargamente arrependido por não ter
aceitado a ajuda do desconhecido, pois poderia estar bem melhor que naquele
instante.
Sem pestanejar, Luís
continuou caminhando, dando passos falsos, rumo à rodovia. Mas sua visão
começou a embaçar, seus lábios ficaram secos, um gosto de ferro se apropriou de
sua boca, um zumbido agudo começou a irritar seus ouvidos. Aquele era o fim.
Ele precisava correr para que Fernando pudesse vê-lo e correr com ele para um
hospital.
Luís estava a cinco
metros de distância de Fernando, mas não podia gritar porque estava com a boca
cheia de sangue. Inesperadamente, uma escuridão tomou conta de toda sua visão.
O garoto,
infelizmente, havia caído num buraco escondido no meio do mato. A última coisa que
conseguiu ver, ainda de dentro do buraco, foram os dois brutamontes da família
de Rodolfo, jogando terra dentro do buraco. Luís foi enterrado vivo, sem
esperanças, e sem uma segunda chance.