sábado, 21 de fevereiro de 2015

Conto - Terror na Rodovia

            A noite estava abafada. Não havia uma nuvem no céu; em contrapartida, as estrelas revestiam toda aquela imensidão de cor azul escuro. A rodovia, por sorte, estava livre – quase não se via carros passando pela pista contrária, nem atrás, nem à frente. Eram apenas Rodolfo e Luís, dentro daquele carro.
            — Caramba! — reclamou Luís. — Que calor horrível! Já é quase meia noite e o tempo ainda está assim...
            — Esta região aqui de Araçatuba é assim mesmo — comentou Rodolfo. — Mas estamos quase lá; só mais umas duas horas e chegaremos em Ilha Solteira.
            O casal estava dirigindo rumo à cidade de Ilha Solteira, última cidade do estado de São Paulo antes da divisa com Mato Grosso do Sul. A família de Rodolfo era do interior, e o jovem estava levando o namorado para apresentá-lo aos seus pais.
            — Se à noite é assim, imagine durante o dia! — pensou Luís, incomodado com o clima. — Mais duas horas e estaremos carbonizados...
            — Pare de ser exagerado, Luís! — pediu Rodolfo. — Lá tem um rio enorme pra você se refrescar durante o dia. Relaxa!
            — “Nhandeara” — comentou Luís. — Que nome esquisito, o dessa cidade!
            — É um nome de origem tupi — explicou Rodolfo.
            O carro estava com as janelas da frente abertas, para refrescar um pouco a viagem do casal. Alguns insetos acabavam entrando no carro e perturbando Luís, mas aquilo não era nada comparado àquele calor insuportável que o rapaz sentia.
            De repente, o carro começou a perder a velocidade. As luzes do painel frontal piscaram três vezes e se apagaram; depois, foi a vez dos faróis do carro. Estava um breu.
            — O que aconteceu? — questionou Luís, olhando ao redor. Estava tudo muito escuro, não havia sinal algum de uma cidade próxima. Nenhum carro passava na rodovia.
            — Caramba... Não sei! — respondeu Rodolfo. — A bateria deve ter arriado, ou algo do tipo. Não sei!
            — Como assim? — Luís ficou espantado. — Você não checou o carro antes da gente sair? Não podemos ficar parados aqui no meio do nada!
            — Espera um pouco... — Rodolfo tentou ligar o carro, mas não conseguiu. — Não sei o que houve. Vou precisar sair e procurar ajuda.
            — O quê? — Luís não acreditou no que ouvira. — Ficou louco, Rodolfo? Olha a escuridão que está lá fora! Por que não usa o celular?
            — Celular, neste meio do nada? — interrogou o jovem. — Não tem sinal aqui, Luís. Se eu não sair e procurar ajuda, ficaremos aqui, sabe-se lá até quando!
            — Rodolfo, não tem onde buscar ajuda! — insistiu Luís.
            Rodolfo saiu do carro e caminhou em volta do veículo. O rapaz esticava o pescoço para o lado direito da pista, tentando ver se encontrava alguma moradia no meio daquele campo sem fim.
            — Acho que tem uma casa ali — Rodolfo apontou no meio do nada.
            — Onde? — estranhou Luís. — Não vejo nada!
            — Olhe bem ali... — pediu Rodolfo. — Está vendo um pontinho iluminado? É uma janela! Tem uma casa ali!
            — Então vamos lá! — disse Luís.
            — Não! — respondeu o motorista, prontamente. — Se o carro ficar sozinho, pode ser roubado ou algo do tipo. Você fica; eu volto rápido!
            — Sozinho? — perguntou Luís, soltando um leve gemido de medo.
            — Eu volto logo! Prometo — Rodolfo deu um selinho no namorado, pegou duas lanternas no porta-luvas, uma para ele e outra para Luís. — Espere no carro.
            Assim, Rodolfo se embrenhou no meio do mato e desapareceu na escuridão.
            Enquanto isso, Luís ficou sentado no banco do passageiro, mexendo no celular. A lanterna iluminava o interior do carro, proporcionando um pouco mais de segurança ao rapaz.
            Pouco tempo depois, Luís ouviu um barulho; pelo retrovisor, o rapaz pôde ver os faróis de um carro se aproximando. Ele apagou a lanterna imediatamente e ficou em silêncio, tentando não chamar atenção.


            O carro passou ao lado, na pista, e estacionou no acostamento logo à frente.
            Luís começou a suar frio; achou que seria roubado, sequestrado ou, até mesmo, morto. O jovem começou a rezar em voz baixa e tremia.
            — Oi! — uma voz masculina ecoou dentro do carro. — ‘Tá tudo bem aí?
            — Oi — Luís abriu os olhos e encarou o homem na janela do carro. — Acho que a bateria do carro arriou. Meu nam... Meu amigo foi procurar ajuda.
            Ele preferiu não comentar que tinha um namorado. Se o homem desconhecido fosse homofóbico, mataria ele ali mesmo.
            — Ajuda? — estranhou o homem misterioso. Ele usava uma barba rala e seus olhos carregavam um ar sombrio. — A cidade mais próxima daqui está a uns trinta quilômetros. E se ele voltou, vai ter que andar, pelo menos, cinquenta quilômetros. Quer uma carona?
            — Não! — respondeu de imediato. — O Rodolfo não voltou... Ele acha que viu uma casa no meio do pasto, e foi até lá tentar pedir ajuda. Obrigado.
            — Tem certeza? Não há ninguém morando num raio de vinte quilômetros — comentou o homem. — Meu nome é Fernando. Moro em Pereira Barreto, é perto daqui. Se quiser, posso te dar uma carona até um posto policial.
            — Obrigado, mesmo... — agradeceu Luís, desconfiado. — Mas prefiro esperar pelo Rodolfo.
            — Esse Rodolfo é seu namorado, né? — questionou Fernando, intrometido.
            — Hein? — Luís começou a ficar mais apreensivo e demonstrou sua tensão.
            — Você tem uma aliança... — Fernando apontou para o dedo do rapaz. — Você não deixaria sua namorada para viajar com um amigo em plenas vésperas do Natal.
            — Cara, desculpe... — Luís estava incomodado. — Será que você pode ir?
            — Tudo bem! — disse Fernando, mostrando um belo sorriso. — Vou deixá-lo em paz. Espero que seu namorado não te deixe aqui plantado a noite inteira, pois você não merece. Boa sorte!
            Assim, Fernando volta para o seu carro e some na escuridão da rodovia.
            Luís reacende a lanterna e tenta ligar para o celular de Rodolfo, mas não consegue. O rapaz sai do carro e anda para o campo à sua direita – havia um pequeno morro, onde, talvez, o sinal do celular tivesse uma maior intensidade.
            Sobre o morro, Luís enxerga melhor a luz vista por Rodolfo; mas também se dá conta de que, com certeza, aquela não era a luz da janela de uma casa. O que Luís via era uma espécie de fogueira, bem longe dali, como uma festa. Havia algumas pessoas em volta do fogo, caminhando em círculo. Também havia quatro tochas, formando um quadrado em volta do círculo.
            Preocupado com o que pudesse ter acontecido ao seu namorado, Luís desceu do morro e caminhou rumo ao local. Já próximo da fogueira, o rapaz pôde distinguir nitidamente todo o evento: oito pessoas faziam uma espécie de ciranda em volta das chamas, cantando em um idioma desconhecido para Luís – pareciam estar num transe, numa hipnose.
            No meio do círculo, Luís conseguiu enxergar Rodolfo. Ele estava deitado sobre uma tábua de pedra, com um punhal ensanguentado ao lado de seu corpo. Então, Luís percebeu uma mancha vermelha na mão do namorado – sangue.
            — Rodolfo! — gritou Luís, saindo do meio do matagal em direção ao corpo do namorado.
            Nesse instante, as oito pessoas se calaram. Dois homens seguiram exatamente na direção de Luís e o agarraram pelos braços.
            — Me soltem! — gritou o jovem. — Socorro!
            Mas Luís desmaio enquanto era carregado para a tábua de pedra e via seu namorado se levantar como se nada tivesse acontecido.
            Cinco minutos depois, Luís foi acordado por Rodolfo, que mostrava um sorriso largo. Rodolfo passou a mão sobre o rosto de Luís e removeu o pano que impedia o jovem de gritar.
            — O que você está fazendo? — perguntou Luís, consternado. — Que droga é essa?
            — Fique calmo, não vai demorar — pediu Rodolfo, com calma total. — Colabore com a gente e tudo ficará bem.
            — Rodolfo, o que é isso? — insistiu Luís. — Me solta! Me deixa ir embora daqui... O que você ‘tá fazendo?
            — Silêncio! — o garoto deu um tapa para calar o namorado.
            Em seguida, os dois homens voltaram, junto com as outras seis pessoas. Todos fitavam Luís seriamente.
            — Quem são vocês? — questionou Luís, choramingando.
            — Minha família — respondeu Rodolfo. — Eu não disse que você os conheceria? Pois, então!
            — O Rodolfo é um garoto e tanto — comentou uma mulher, no círculo. Ela tinha feições semelhantes às de Rodolfo. — Como mãe, tenho orgulho de vivenciar a passagem de meu filho à vida adulta.
            — Do que ela está falando? — perguntou Luís, irritado e, ao mesmo tempo, desesperado, tentando se livrar das cordas que o amarravam.
            — Somos de uma linhagem secreta — revelou Rodolfo. — Sempre que um de nós completa os vinte e um anos, participamos do ritual de passagem à vida adulta. E você é meu convidado especial!
            — Não quero participar desta merda! — reclamou o menino, sem mais lágrimas para chorar. — Me tira daqui! Você me enganou o tempo todo... Como fui imbecil!
            — Não te enganei! — respondeu Rodolfo, ofendido. — Eu amo você, de verdade! Mas o ritual exige isso... Sacrificar o primeiro amor em troca das benções dos deuses por toda a sua vida.
            — Que deuses, seu louco? — vociferou Luís, sem paciência. — Eu quero ir embora!
            — Chega de conversa, Rodolfo — disse um senhor no círculo. — É chegada a hora do ritual!
            — Não! — contestou Luís.
            — Certo, pai — concordou Rodolfo.
            O garoto segurou o punhal que estava ao lado de seu corpo e ergueu o instrumento, alinhando-o com o peito de Luís.
            — Eu vos ofereço o sangue do meu primeiro e verdadeiro amor — proferiu Rodolfo, de olhos fechados. Lágrimas escorriam por seu rosto. — Recebam este sacrifício como prova de minha devoção e lealdade. Espero por suas benções em minha vida e, em troca, serei eternamente fiel a vocês.
            A chama da fogueira se intensificou e ficou mais alta. O ar ficava mais seco e caloroso. Luís fechou os olhos para não ver aquilo. Mas, para sua surpresa, Rodolfo baixou o punhal nos pulsos do garoto, libertando-o das cordas.
            — Fuja daqui — ordenou Rodolfo, com os olhos marejados. — Corra o mais rápido que puder!
            — E você? — mas, assim que concluiu a pergunta, a mãe e o pai de Rodolfo o esfaquearam pelas costas. E o jovem caiu morto numa poça de seu próprio sangue.
            — O ritual chegou ao fim — comentou o pai de Rodolfo. —, mas você não vai embora!
            Luís correu o máximo que conseguiu, mas foi encurralado por um dos homens que o aprisionara no início. O brutamonte fez um movimento rápido com um punhal e cortou o pescoço de Luís.
            Quase se afogando em seu sangue, que gorgolejava na garganta, Luís continuou correndo em direção à rodovia. Sua força se esvaía pouco a pouco. Suas esperanças reviveram quando enxergou, ao longe, um foco de luz vindo da rodovia; alguém mexia no carro do seu namorado. À medida que se aproximava, conseguia enxergar com mais nitidez – era Fernando, o homem que oferecera ajuda e que Luís, por medo e desconfiança, não havia aceitado; mas o garoto estava amargamente arrependido por não ter aceitado a ajuda do desconhecido, pois poderia estar bem melhor que naquele instante.
            Sem pestanejar, Luís continuou caminhando, dando passos falsos, rumo à rodovia. Mas sua visão começou a embaçar, seus lábios ficaram secos, um gosto de ferro se apropriou de sua boca, um zumbido agudo começou a irritar seus ouvidos. Aquele era o fim. Ele precisava correr para que Fernando pudesse vê-lo e correr com ele para um hospital.
            Luís estava a cinco metros de distância de Fernando, mas não podia gritar porque estava com a boca cheia de sangue. Inesperadamente, uma escuridão tomou conta de toda sua visão.

            O garoto, infelizmente, havia caído num buraco escondido no meio do mato. A última coisa que conseguiu ver, ainda de dentro do buraco, foram os dois brutamontes da família de Rodolfo, jogando terra dentro do buraco. Luís foi enterrado vivo, sem esperanças, e sem uma segunda chance.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Quando nasce a intolerância?

            Pra quem ainda não sabe, estou trabalhando como Orientador Socioeducativo num Centro para Crianças e Adolescentes aqui da zona norte de São Paulo. Minha turma conta com cerca de vinte e cinco crianças na faixa etária dos nove aos quinze anos de idade.
            Antes mesmo de entrar lá, eu já havia elaborado um projeto de fomento à leitura e à escrita; mas, quando soube que faria parte da equipe de Orientadores, expandi o projeto e dividi-o em três eixos. Hoje, o projeto consiste no Palavreando, no Fazendo Arte e no Socializando – os três, trabalhados simultaneamente, propiciaram a criação de um quarto: a Mostra Cultural.
            Cada projeto foi nomeado de forma que seu nome o defina.
            O Palavreando objetiva estimular a leitura e o desenvolvimento da escrita; nele, trabalharemos a produção de diversos gêneros: mapas, manchetes, poemas, notícias, narrativas, quadrinhos, rótulos, receitas, gráficos, placas etc. Isso fará com que as crianças e os adolescentes conheçam as possibilidades tanto no mundo da leitura como no da escrita – na escrita, por exemplo, elas aprenderão que não precisam só copiar, mas que elas podem criar.
            O Fazendo Arte será focado na apreciação de obras de arte, filmes, músicas e fotografias. Contextualizarei cada gênero de acordo com as necessidades encontradas na turma; discutiremos sobre os possíveis significados de cada obra; conheceremos os autores e o contexto sociocultural de cada obra. Após todo esse trabalho, no caso das obras de arte, realizaremos releituras e versões – isso permitirá que eles se apropriem dos detalhes passados despercebidos, bem como desenvolvam sua criatividade e sua criação.
            O Socializando foi criado, especialmente, para fazer com que a opinião das crianças e dos adolescentes seja ouvida – afinal, eles também fazem parte da Sociedade e têm o direito de opinar em todo e qualquer debate. Para isso, levarei discussões sobre temas contemporâneos, mas também discutirei temas os quais são evitados: morte, medos, futuro etc. Ainda no Socializando, criaremos um blogue destinado à postagens das atividades realizadas durante o ano, além das mensagens e bilhetes que eles escreverão sobre cada tema discutido.
            A Mostra Cultural, que tem previsão para acontecer ao fim do semestre, será um evento idealizado por eles desde o início: decoração do espaço, produção dos convites, organização das atividades a serem exibidas etc. Isso fará com que eles conheçam o processo de produção de um evento, onde cada um é responsável por uma parte para que todo o grupo consiga exercer o trabalho final.
            E de uma semana e meia pra cá tem sido assim: produções, discussões, ideias... Desde ontem, por conta do Carnaval que está por vir, estamos trabalhando sobre o tema: ontem, fizemos uma pintura do quadro Carnaval em Madureira, de Tarsila do Amaral – falamos um pouco das características carnavalescas que o quadro traz; hoje, pedi que eles retratassem no papel (em desenho ou em texto), aquilo que eles imaginam ao ouvir a palavra Carnaval.
Um Sábado Qualquer
            Nesse momento, ouvi um comentário: “Carnaval não é de Deus!”. No mesmo instante, uma das crianças veio me questionar isso. Perguntei à criança que disse a frase se ela sabia o que estava dizendo; então, outra criança repetiu: “Mas Carnaval não é, mesmo, de Deus, Júnior!”. Então, decidi explicar um pouco sobre a festa conhecida mundialmente.
            Contei às crianças que, possivelmente, a palavra carnaval tem dois significados: carne vale – que significa “adeus, carne!”; e carne levamen – que significa “supressão da carne”. Ambos os significados remetem ao que conhecemos hoje na festa – o período que antecede a Quaresma, uma “pausa” de quarenta dias nos excessos cometidos durante o ano; um período em que a religião católica acredita que se deve existir a privação da carne.
            Pedi às duas crianças que insistiram que a festa “não é de Deus”, que não tentassem impor isso às demais crianças, pois cada um é livre para acreditar ou não acreditar no que quiser. Com isso, uma outra criança comentou: “Júnior, eu acredito em outros deuses, como Buda, os deuses gregos, os deuses africanos...”. Isso gerou uma polêmica ainda maior. Do outro lado, alguém disse: “Deuses africanos? Credo! Eu não gosto de africanos...”.
            Aquilo me deixou surpreso e triste, ao mesmo tempo. Eu fiquei sem saber como agir. Pedi à criança que não disse mais aquilo, pois era um desrespeito muito grande, um preconceito. Expliquei que, no mundo, existem milhares de culturas, e cada cultura acredita em algo. Comecei a citar alguns dos deuses cultuados ao redor do mundo, hoje e antigamente: Zeus, Poseidon, Hades, Afrodite, Atena, Deus, Tupã, Guaraci, Jaci, Jurupari, Hórus, Ísis, Tot, Set, Lilith, Brama, e disse que há centenas de outros. Isso gerou um alvoroço.
            “Só existe um Deus!”, disse uma criança. Ali, eu percebi que não adiantaria continuar com aquela conversa; não naquele momento, sem um preparo maior. Pedi, mais uma vez, que ninguém tentasse impor seu Deus aos demais, que cada um acreditasse no que quisesse, mas guardasse essa crença para si. Mas planejo voltar com esse assunto em breve, pois acredito que deva ser discutido.
            O que eu quero dizer, é que esse episódio, nada mais, é fruto da intolerância religiosa praticada mundialmente. É o exemplo que deixamos para as nossas crianças: imponham suas crenças às demais, pois somente a sua crença é a correta. Mas, agindo assim, nenhuma nunca vai ser a correta, e as mortes e discriminações por intolerância vão continuar acontecendo.
            Nós, adultos, temos o dever de rever os nossos conceitos. É isso mesmo que queremos deixar para as crianças? Queremos, mesmo, mostrar a elas que, no mundo, apenas um deus é o verdadeiro? Chega dessa luta idiota e ignorante! Vamos mostrar às crianças que o mundo é feito de diferenças, é feito de peculiaridades, é feito de culturas distintas.

            Vamos mostrar às crianças que o mundo precisa ser feito de respeito.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Diabo: a criação de um implica na inexistência de outros.

            Muitas culturas acreditam em demônios, mas o Demônio (com letra maiúscula) é muito bem conhecido como o inimigo de Deus: ele é, a princípio, uma criação do Cristianismo.
            Geralmente, o Diabo é descrito como um anjo que perdeu sua luz, ou está associado com a serpente do Gênesis. Mas em Revelações, João viu o Diabo não como uma serpente, mas como um grande dragão de várias cabeças. Desde então, nestes quinze séculos, o Diabo se transformou na figura conhecida de hoje.
Estátua de Pã
            Algumas representações do deus grego da fertilidade, Pã, auxiliaram na construção do personagem conhecido atualmente: o Diabo adquiriu chifres, cascos, orelhas pontudas e um rabo – foi descrito como metade bode e metade homem. Essa descrição, contudo, bate com a descrição dos sátiros – criaturas da mitologia grega que são metade homens e metade bodes.
            O tridente de três pontas atribuído ao Diabo é o mesmo tridente de Poseidon, o
Estátua de Poseidon
deus grego dos mares. O tridente era utilizado como uma poderosa arma capaz de agitar as águas furiosamente – no épico A Odisseia, Poseidon era inimigo do herói Odisseu, e quebrava os seus navios frequentemente, fazendo com que o herói tivesse de voltar para casa.
            A cor de pele avermelhada que costumamos ver veio de Set, a entidade “maligna” egípcia. Set era o deus das tempestades, da escuridão e do caos – os gregos associavam Set com Tifão, a serpente monstro e deus da destruição.

Pintura de Set

            Até mesmo o nome do Diabo mudou no decorrer das eras: Mamon, Belzebu, Baal, Amon, Leviatã; todos, nomes que foram associados a Satã em algum momento da história. Embora esteja associado a várias entidades Pagãs e conhecido por diversos nomes, o nome mais conhecido do Diabo ficou conhecido no século cinco, após uma tradução equivocada de Isaias 14, feita por Jerônimo: Lúcifer.
            No fim do século treze, Lúcifer foi associado ao pecado do orgulho, sendo parte dos Sete Pecados Capitais. Acreditava-se que ele era um dos poderosos sete príncipes demônios que controlavam suas próprias legiões na guerra entre Céu e Inferno. A maior parte das obras literárias ajudou a estabelecer Lúcifer como o nome mais famoso do Diabo.
            A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita no início do século catorze, esboçou a visão particular do autor sobre o Inferno, dividido por níveis – baseados nos Sete Pecados Capitais; cada nível era propriedade de um demônio, embora Lúcifer não fosse apenas um príncipe demoníaco, mas o imperador do Inferno. Dante imaginou o Diabo tremendamente feio e alto (passando, até mesmo, dos gigantes), com grandes asas batendo, três rostos com cores diferentes (vermelho, amarelo e preto), com cada uma de suas três bocas mastigando as almas das pessoas más.
Yama
            O épico de Dante se tornou uma das obras mais influentes entre os Cristãos, influenciando e moldando amplamente a forma como eles enxergavam o Inferno e o Purgatório. E as descrições de Lúcifer continuaram mudando; ele já não era retratado como um monstro preto ou vermelho, mas um monstro azul; a vítima da vez era Yama, o deus hindu da morte. A cor azul representava a perda da luz divina de Deus.
            Em 1677, Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado, publicações de John Milton, fortaleceram a ideia de Lúcifer como o líder dos anjos caídos e atribui-lhe o nome oficial de Satanás, o arqui-inimigo de Deus. Milton transformou Lúcifer em um guerreiro poderosíssimo e carismático, preocupado em destruir o homem (como vingança por seu exílio); Milton fez de Lúcifer um tipo de herói romântico – sua queda é extremamente humana e compreensível por qualquer um; ele é rebelde e orgulhoso, e, em troca, perde tudo o que ele valoriza.
Diabo, retratado
como um judeu
            À medida que o tempo passava, a imagem do Diabo foi invocada repetidamente, como forma de menosprezar ou demonizar os inimigos – ainda mais se tratando de religiões concorrentes. Durante o século dezenove, o Diabo foi retratado como um judeu com um grande nariz curvo; tanto as sinagogas judaicas como as muçulmanas eram tidas como templos de Satanás.
            Hoje, para alguns, Lúcifer não representa a rebeldia e a maldade, mas a sabedoria, o conhecimento e a iluminação, livre das algemas das superstições e dos dogmas religiosos. Lúcifer se tornou um tipo de Prometeu, que trouxe conhecimento à humanidade, permitindo que os homens se tornassem semelhantes aos deuses. Ele é uma figura de liberdade e de avanço pessoal. Ele é o Portador da Luz, que traz a luz do conhecimento científico para o mundo mergulhado nas trevas das superstições que asfixiam dia-a-dia.

            Mas, para a maioria das pessoas, o Diabo ainda é a fonte de todo o mal existente, e elas esperam, temerosas e ansiosas, pelo dia em que Deus retornará à Terra para acabar de uma vez por todas com o seu inimigo mortal.
Estátua de Lúcifer