terça-feira, 18 de junho de 2019

Por trás de todo o caos.


É... Parece que as coisas chegaram a um ponto sem retorno.
Eu não consigo mais enxergar perspectivas futuras. Eu tento, fecho os olhos, forço as minhas pálpebras, mas tudo o que vejo é o breu.



Eu tento me apegar às minhas memórias, aos bons momentos, a tudo de bom que eu já vivi, a todas as experiências que marcaram a minha trajetória até aqui. E, ainda assim, esse peso, esse bolo que sufoca a minha garganta e me deixa sem ar ainda se faz presente.

Tem tanta gente que eu amo, tanta coisa que eu amo tanto! Me dói pensar em tudo e não ver nada disso à minha volta. Dói ver que estou sozinho nesse breu – por mais que as pessoas digam que estão comigo e que posso contar com elas, eu continuo me enxergando sozinho aqui.

Eu não sei o que fazer... Eu não sei mais como organizar tudo o que eu sinto e que está formando essa tormenta aqui dentro. Eu durmo sempre desejando não acordar e poder não sentir mais nada. Eu acordo sempre desejando não dormir com medo de nunca mais acordar. E eu não posso contar isso pra ninguém porque é pesado demais, ninguém merece essa carga!

Eu não quero voltar pra casa porque, lá, eu me lembro de todas as coisas boas que eu já vivi e não quero ser aquele que se vitimiza para conseguir o mínimo de atenção. Eu não quero vir trabalhar porque, aqui, eu percebo o quanto eu sou um inútil em ter dito que faria tanta coisa e não ter conseguido fazer nada do que eu queria. Eu não quero ir ver os meus pais porque, com eles, eu tenho vontade de chorar igual criança e pedir colo, mas são eles quem precisam de colo agora. Eu não quero ir ver os meus irmãos porque cada um deles tem a sua vida formada e já lidam com os seus problemas para conseguirem manter tudo girando.

Tá tudo tão difícil. E não há mágica que faça toda essa sensação sumir... Não há magia que faça as pessoas entenderem que eu não estou assim porque eu quero, mas porque eu não consigo sair disso.

Espero conseguir segurar tudo isso o quanto puder antes que tudo vire caos e destruição.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Falar sobre suicídio: O medo de ganhar responsabilidade sobre aquilo que eu não controlo




Eu estava pensando... Não falar sobre um problema não faz com que esse problema deixe de existir. Na verdade, não falar sobre ele só me cria a noção de que ele não existe mais ou que não é mais uma responsabilidade minha.

Medo. Eu tenho medo de falar sobre aquilo que eu acredito que seja minha responsabilidade porque isso envolve o julgamento dos outros, envolve a culpa que eu posso me dar caso eu não consiga resolvê-lo.

Mas, agora, vamos nomear esse problema: suicídio. Aposto que, só em ler essa palavra, você já experimentou uma sensação esquisita, um incômodo. Então! O suicídio é real. Ele existe. A ideação suicida é real. Ela também existe. É algo que está acontecendo em volta do mundo – queira você falar ou não. Em algum lugar do mundo, a cada 40 segundos, uma pessoa acaba com a própria vida. Aqui, no Brasil, uma média de 32 pessoas acaba com a própria vida diariamente. 56% das pessoas que tentam, morrem na primeira tentativa de suicídio. 40% das pessoas que tentaram uma vez voltam a tentar suicídio ao longo da vida. Mais de 1/3 das pessoas com ideação suicida mantém essa ideação por uma década. A estimativa é de que, no ano de 2020, o número de suicídios chegue a 1,5 milhão.

Um estudo do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental) dos Estados Unidos, dirigido por Thomas Insel, mostrou que a redução da mortalidade por algumas causas médicas. De 1965 a 2012, as mortes por acidentes de trânsito reduziram em 20 milhões (porque houve investimento em campanhas de conscientização e atenção no trânsito); as mortes por AIDS reduziram em 30 milhões (porque os governos investiram nas campanhas de prevenção e ofereceram métodos preventivos); mas as mortes por suicídio não sofreram uma queda porque não houve investimentos na área. No Brasil, o Ministério da Saúde criou um plano de prevenção ao suicídio em 2006, porém, o plano não saiu do papel.

A morte é um tabu muito grande em nossa sociedade ainda. E é um tabu ainda maior quando a morte é provocada pela própria pessoa. Afinal, uma coisa é ter uma vítima para sentir pena e um algoz a quem culpar... Mas o que eu faço quando a vítima e o algoz são a mesma pessoa? O que eu faço quando a pessoa que mata é a mesma pessoa que morre?

Eu não faço nada. Eu não tenho de fazer nada. Isso não cabe a mim. Eu não fui preparado para lidar com a minha dor, quanto mais para lidar com a dor do outro. Nós não damos conta de tudo – eu não dou conta de tudo. Quando um suicídio acontece, ele acontece por uma série de fatores e não apenas porque alguém “descuidou” e não percebeu o que estava acontecendo com a pessoa.

O medo em torno da discussão sobre o suicídio se prova um medo pela responsabilidade de ter provocado um suicídio quando eu ouço uma fala do tipo “É melhor não falar sobre isso (suicídio) porque pode acabar sugestionando coisas...”. E não é assim, não quando a gente fala com a intenção de prevenir, de desmitificar. Ter informações adequadas sobre o tema é uma forma importante de preveni-lo. E, aí, a gente precisa ter algo em mente: podemos prevenir um suicídio, mas não podemos evitá-lo. Eu não tenho controle sobre as decisões do outro, sobre a vida do outro.

Portanto, a única coisa que posso fazer para ajudar é perceber a dor do outro, tornar-me sensível a isso e oferecer a minha escuta. Apenas isso. Tudo o que vem depois disso, não está em minhas mãos.

E quando eu digo que ouvir o outro e reconhecer a dor do outro faz diferença, é com conhecimento de causa – dos dois lados da causa. Muita gente que estava sofrendo e, depois de poder desabafar e me contar tudo o que estava sentindo, relatou melhora e alívio. Mas eu (sim, eu!) também já senti esse alívio ao desabafar para alguém.

E como é difícil eu confiar em alguém para contar as minhas dores mais profundas. Como é difícil eu acreditar que não vão me julgar se eu contar que já me cortei para tentar sentir algo além daquela angústia. Como é difícil e pesado eu falar sobre o desejo de não acordar todos os dias e passar mais um dia aguentando todo esse sofrimento – e muita gente acaba nem se dando conta. E nem precisa se dar conta, afinal, é o meu sofrimento. Mas é difícil. Eu choro quase todos os dias quando sou tomado por pensamentos confusos, pelas sugestões que a minha própria mente me dá para me livrar de tudo isso que eu sinto.

Todo dia, quando acordo, penso: “Eu espero que eu sinta menos hoje.”. Durante o dia, um turbilhão de emoções – e eu nunca consigo organizá-las.

É assustador pensar na morte como alternativa a essa angústia... Porque eu amo o meu marido, eu amo os meus irmãos, os meus pais, a minha família. Eu amo os meus animais de estimação. Eu amo muitas pessoas que conheci nesses 27 anos – algumas, inclusive, que já nem fazem parte da minha vida diária. Mas eu fico desesperado quando eu penso em como cada uma delas ficaria se soubessem como eu me sinto todos os dias. E essa angústia, essa culpa, acaba me afundando ainda mais.

Na verdade, eu estou com o coração acelerado escrevendo aqui porque isso é algo que pouca gente – quase ninguém – sabe. O medo dos olhares é muito grande. O medo dos conselhos... Eu não quero conselhos, eu quero que a dor pare, eu quero que o sofrimento acabe.

Por isso, eu peço:

“Sejam mais gentis, por favor. Amem mais, ajudem mais, vejam mais, peguem nas mãos das pessoas que estão se afogando. Dê a sua mão. Dê um sorriso. Eu quero pedir que sejam mais tolerantes.”

Deixem que as pessoas chorem porque, talvez, com o choro, elas possam sentir o alívio de que precisam – não vejam o choro como uma fraqueza nem fiquem desesperados ao verem alguém chorando. Deixem as pessoas falarem sobre a sua dor. Ouçam.

O pacto de silêncio nunca é favorável.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Cartas para a Vida

CARTA N°. 01 – Eu achava que tudo seria diferente




            Eu achava que tudo seria diferente.
            Eu achava que eu chegaria do trabalho e teria para quem contar sobre o meu dia. Eu achava que isso aconteceria todos os dias. Em vez disso, eu chego em casa e me encontro sozinho até o início da noite, quando o sono bate e já é hora de dormir. A correria do dia-a-dia me impede de passar mais tempo com quem eu amo.
            Eu achava que, aos finais de semana, eu sairia para passear, curtir, ver filmes, exposições, nadar ou ficar de bobeira num parque assistindo o pôr-do-Sol. Em vez disso, eu trabalho a semana inteira e, aos finais de semana, eu fico cansado e na companhia dos filmes e seriados na minha cama – na companhia de filmes e seriados, isso, e não de pessoas.
            Eu achava que eu viveria diariamente os mais diversos prazeres: o amor, o sexo, a comida, a diversão. Em vez disso, a cada dia que passa, esses prazeres parecem escorrer como areia pelos meus dedos.
            Eu achava que eu viajaria o mundo e, aos 30 anos de idade, estaria vivendo em algum outro país. Em vez disso, não consigo gastar o meu dinheiro com nada além das contas e viajo, no máximo, para outra cidade dentro do meu estado.
            Eu achava que eu teria alguém que sentisse prazer somente pelo fato de estar ao meu lado. Eu achava que eu teria alguém que sentisse alegria somente pelo fato de estar quase chegando em casa. Eu achava que eu seria sempre a pessoa com mais vontade de viver e que sempre estaria sorrindo.
            Hoje, eu me vejo em meio aos meus “achados” e não sei o que fazer com cada um deles. Cara Vida, hoje, eu estou perdido dentro de mim e não consigo encontrar exatamente onde foi que eu me perdi e, assim, eu não consigo me resgatar.
            Eu olho no espelho e vejo pedaços do que eu fui e reflexos de algo que eu não entendo mais. Eu me sufoco debaixo da água que cai do chuveiro tamanha é a minha angústia diante disso tudo. Eu já cheguei ao ponto de querer sentir a dor física para tentar amenizar essa dor daqui de dentro, que me empurra contra uma parede gigantesca que desaba sobre a minha cabeça.
            Cara Vida, você parece estar lutando contra mim e eu ainda não entendo o porquê dessa sua revolta. O que foi que eu fiz? Em que momento eu errei com você?
            Eu só preciso dessa resposta... Cara Vida.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Conto: In(tolerância)

            O conto a seguir é inspirado no massacre ocorrido numa boate em Orlando, cidade dos Estados Unidos, no dia 12 de junho de 2016. A ideia é provocar a reflexão sobre o tipo de sociedade que somos e o tipo de sociedade que desejamos ser.
* * *
            Às sete da manhã de domingo, o noticiário informou que um atirador, conhecido como Almir Khouri, de 30 anos, causou a morte de mais de 50 pessoas e deixou outras 60 feridas. Após um tiroteio, a polícia conseguiu interceptar o atirador, que acabou morrendo no local. O atentado foi iniciado por volta das duas horas da manhã e, de acordo com testemunhas, Almir atirou por vários minutos sem parar; alguns rapazes disseram que o tiroteio chegou a durar uma música inteira. Os familiares e amigos das vítimas fazem vigília em protesto à violência e à intolerância em frente à boate; diversos grupos, ao redor do mundo, também demonstraram solidariedade à causa e indignação com o massacre.
* * *
Horas antes.
            Numa cidade pequena, um dos programas mais prediletos da população jovem é sair para as boates e para os bares no fim de semana. Com Felipe não era diferente; se havia algo que agradava a ele, era sair para a balada com os amigos e com o namorado. Naquela noite de sábado, o jovem de 27 anos preparava-se para uma festa com DJs convidados numa boate da região central da cidade.
            — Boa diversão, filho — desejou Luana, mãe de Felipe. — Leve a sua chave porque você vai chegar tarde, né?
            — Vou chegar cedo, mãe... Amanhã de manhã — brincou Felipe, dando um beijo no rosto da mãe e saindo.
            Ao lado de fora da casa, havia um Sportage vermelho estacionado em frente ao jardim:
            — E aí, gatão! — era Pedro, o namorado de Felipe. — Até que você foi rápido desta vez...
            — Engraçadinho — Felipe entrou no carro e beijou o namorado.
            Assim que chegaram à boate, o casal comprou os ingressos e desceu para a pista de dança. A casa estava lotada – os dançarinos e as dançarinas estavam fazendo uma apresentação no palco enquanto a multidão delirava. Felipe e Pedro logo começaram a dançar com alguns amigos que encontraram.
            Por volta de uma e meia da manhã, Pedro demonstrou estar um pouco cansado:
            — O que você tem? — perguntou Felipe, enquanto puxava o namorado de volta para a pista de dança. — Está cansado?
            — Eu trabalhei hoje, lembra? — comentou Pedro, sorrindo e olhando nos olhos de Felipe. — Mas fica tranquilo; se você ainda quiser ficar, não tem problema.
            — Só mais um pouco? — Felipe deslizou o seu corpo para "embalar" o namorado na sua dança.
            — Quanto tempo você quiser! — respondeu Pedro, beijando o namorado.
            A música preferida do casal começou a tocar: "I lived", da banda OneRepublic.
* * *
            Do outro lado da cidade, um rapaz de 30 anos havia acabado de sair de casa. Ele caminhou em passos pesados até o ponto de ônibus, onde embarcou num coletivo rumo ao centro da cidade.

Hope when you take that jump
You don't fear the fall

            Seu nome era Almir, descendente de afegãos e morador da cidade desde o seu nascimento. Há alguns meses, Almir vinha demonstrando um comportamento estranho sempre que via ou ouvia pessoas do mesmo sexo tendo um relacionamento homoafetivo. Os seus pais até tentaram evitar que ele tivesse qualquer tipo de contato com tais situações a fim de não deixar o filho estressado.

Hope when the crowd screams out
They're screaming your name

            O ônibus em que Almir estava estacionou em seu ponto final e o rapaz desembarcou. Ele viu um letreiro néon piscando na escuridão e seguiu para o seu destino. Enquanto caminhava, Almir mexia na mochila em suas costas tentando arrumar alguma coisa.

Hope if everybody runs
You'll choose to stay

            O rapaz puxou um rifle de dentro da bolsa e mirou nos seguranças da boate. Mentalmente, levaram apenas cinco segundos para o tiroteio iniciar.
* * *
            Felipe ouviu um breve e agudo bipe do seu relógio de pulso e verificou que já eram duas da manhã.

Hope that you fall in love
And it hurts so bad

            Enquanto se juntava a Pedro no bar da boate, Felipe ouviu barulhos fortes que pareciam vir do piso superior; eram como estalidos.
            — O que foi isso? — Pedro tentou concentrar-se no estalido. — Você consegue ouvir?

The only way you can know
You gave it all you had

            — É — concordou Felipe. — Eu ouvi.
            No segundo seguinte, o que deu para ouvir foram gritos sobrepostos aos estalidos, que ficaram mais fortes. De repente, as pessoas que estavam no piso superior da boate desceram correndo, derrubando quem estava na frente, e gritando:
            — É tiro! Corre! — berravam em coro.

And I hope that you don't suffer
But take the pain

            Felipe e Pedro se olharam e só pensaram em se agachar. Cada um olhava para um lado enquanto todos corriam pela pista de dança, parecendo formigas quando têm o seu formigueiro destruído.

I owned every second that this world could give

            O casal correu para trás do bar e ficou escondido atrás do balcão junto a duas meninas e outro rapaz. Os cinco tremiam de tanto pavor, mas estavam tão chocados que não conseguiam emitir nem um grito.

I saw so many places, the things that I did

            Então, embora estivesse escuro, Felipe conseguiu ver o que acontecia: havia um homem segurando um rifle e atirando contra todos na boate. Ele mirava e atirava sem parar, repondo a munição com maestria.

Hope that you spend your days
And they all add up

            — Eu não quero morrer! — Felipe chorou segurando a mão de Pedro com toda a força.
            Enquanto isso, uma das meninas ao seu lado caiu para trás quando foi atingida por uma bala no meio da cabeça.

And when that sun goes down
Hope you raise your cup

            — Puta que o pariu! — Felipe e Pedro se levantaram imediatamente, tropeçando nos corpos mortos e feridos que estavam jogados e esbarrando na multidão que corria pela pista.
            A polícia, enfim, havia chegado. Mas aquilo não fez do pesadelo um sonho – o tiroteio só aumentou; enquanto Almir vitimava uma multidão no interior da boate, a polícia atirava contra as paredes do local tentando parar o ataque.

I wish that I could witness
All your joy and all your pain

            Pedro deu um sinal para Felipe, mostrando que havia uma possível saída. Contudo, Felipe não prestou atenção ao sinal; o jovem só conseguiu ver Pedro subir pelas escadas junto a algumas outras pessoas com toda a pressa.
            Felipe tentou seguir o namorado, mas foi encurralado pelo atirador, que segurava o rifle e sorria.

But until my moment comes
I'll say I did it all

            O jovem se virou e correu para os banheiros da boate, enfiou-se dentro de uma das cabines e sentou-se em posição fetal, rezando e pedindo para sair dali com vida. A única coisa que lhe ocorreu foi despedir-se de quem amava, pois não sabia o que aconteceria.

I owned every second that this world could give

            "Fica bem. Eu amo vc!", foi o que enviou para o celular do namorado.

I saw so many places, the things that I did

            "Mãe... Estou preso na boate!", começou a escrever para a mãe. "Tem um cara atirando". Em seguida, ele viu a resposta da mãe: "Na boate? Você está bem? Fique aí!".
            Então, um estrondo derrubou a porta do banheiro. Almir havia entrado ali para acabar com quem ainda estivesse vivo.
            "Ele está vindo, mãe!", respondeu Felipe; "Eu te amo, mãe, te amo!".

Yeah, with every broken bone
I swear I lived


            Uma bala cruzou o olho direito de Felipe enquanto outra bala penetrou o seu peito e atingiu o coração. A última coisa que o jovem conseguiu enxergar foi o líquido vermelho e viscoso tomar conta do seu corpo até tudo escurecer.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Série - O Mundo dos Sonhos: Cap.1


1. Enquanto ele ronronava


           Olhe, talvez, quando for ler esta história, você ache que seja uma tremenda bobagem ou que eu esteja muito louco. Mas eu garanto: é sério, aconteceu, e eu não usei drogas para ver essas coisas. O mundo em que eu vivo rompe várias regras e leis universais, então, acredite se quiser!
            O que eu vou contar agora foi algo meio assustador; aconteceu na semana passada, no sábado. Todo sábado eu vou ao shopping comprar alguma coisa e, no último sábado, não foi diferente.
            Quando cheguei ao shopping, peguei o carrinho de compras no estacionamento e corri para a melhor parte: uma rampa bem inclinada que levava ao andar inferior, onde ficava o acesso às lojas. Enquanto eu descia empurrando o carrinho e dando risada, as pessoas me olhavam – ou muito sérias ou fazendo caretas –, mas não liguei muito pra isso.
            Nos corredores iniciais do shopping, há algumas agências bancárias, todas com paredes de vidro medindo cinco metros de altura – a segurança por aqui é muito boa (para quem tem dinheiro!). Cruzei o corredor e o mezanino enquanto diversas pessoas também seguiam na mesma direção ou voltavam de suas compras.
            Quando saí do mezanino, que tinha o piso de vidro também, entrei no corredor das lojas. A primeira loja era a loja de chocolates, uma loja bem famosa, que leva o nome da fruta que é a matéria-prima do chocolate. Para a minha sorte, havia algumas coisas em promoção – os cartazes amarelos quase saltavam nos olhos dos clientes.
            Um homem alto, de cabelo claro, roupas em tons escuros e um pouco sisudo. A mulher, pelo contrário, mostrava-se supergentil e sorridente, com o seu cabelo afro e a sua roupa multicolorida:
            — Bom dia! Em que posso ajuda-lo? — perguntou-me o homem, fingindo um sorriso.
            — Oi — eu respondi, sem graça. — Vou querer aqueles chocolates ali.
            Quando apontei para as barras de chocolate no alto da prateleira, vi duas coisas que me chamaram a atenção, sendo uma delas algo que me arrependo de ter comprado (eu devia ter pegado a outra coisa!): um boneco de pano que tinha a cara de um gato, com uma mancha no olho; e um ovo de páscoa de dois quilos.
            — E aquilo ali — apontei para o boneco felino, curioso. — Quanto fica?
            — Ótima escolha! — a atendente, que havia acabado de dispensar um cliente, veio falar comigo e intrometer-se na venda do parceiro. — É peça única.
            — Ah! — sorri, fingindo gratidão. — Quanto fica?
            — Tudo por R$ 48 — respondeu o homem, ao mesmo tempo em que eu vi o valor digitado no computador.
            Nesse instante, ouvi uma bagunça vinda do corredor do shopping; havia uma gritaria intensa e repleta de xingamentos. Os atendentes da loja em que eu estava ficaram visivelmente perturbados com a situação – eles se olhavam como se quisessem dizer algo um ao outro.
            — Vá! — o homem gritou para mim. Ele apontou a direção, mostrando o fundo da loja, e ordenou que a mulher me seguisse. — Vá com ele. Rápido!
            Não tive tempo de perguntar o que estava acontecendo: a mulher me empurrou para o fundo da loja e saímos por uma portinha que dava acesso a uma rua deserta. Logo atrás, o homem sisudo saiu pela porta e passou a chave no trinco:
            — O que foi isso? — questionei, preocupado.
            — Caramba — reclamou a mulher, chocada com o que via.
            O lugar onde estávamos parecia outro de onde eu havia saído. Quando cheguei ao shopping, o céu estava limpo e ensolarado; mas, agora, o céu estava carregado de nuvens cinzentas e uma névoa gelada pairava sobre tudo. Aliás, não havia um shopping atrás da gente, muito menos a porta pela qual havíamos saído.
            — O que está acontecendo? — insisti, inutilmente.
            — Vamos! — o homem pegou na mão da mulher e desceu a rua, mostrando-me o caminho.
            Enquanto descíamos o quarteirão pela calçada, passamos por uma grande catedral ao nosso lado direito; estava abandonada, pois as portas caíam aos pedaços e os vidros das janelas haviam sido todos quebrados. As paredes do templo religioso estavam pretas, chamuscadas de cinzas – provavelmente, por um incêndio.
            — Filho da puta! — um homem gritava no meio da rua, um pouco mais abaixo. — Eu ando onde eu quiser...
            Ele estava bêbado.
            Como eu percebi isso? Ele cambaleava enquanto andava no meio dos carros; e segurava uma garrafa de cachaça na mão direita. Devia ser algum morador de rua, pois suas roupas estavam sujas e rasgadas.
            Então, deixando-me mais surpreso e assustado, o gato de pano que eu carregava no colo ronronou. Isso mesmo, o gato de pano ronronou.
            Em seguida, o bêbado atacou um dos carros com a sua garrafa e, depois, começou a se jogar em cima dos carros.
            O casal de atendentes me puxou e viramos à direita, cruzando a rua e passando ao lado do bêbado troglodita:
            — Seus putos! — gritou o bêbado enquanto passávamos por ele.
            Apertarmos o passo e continuamos a subir a rua. Neste ponto, a voz do bêbado parecia um murmúrio.
            O homem e a mulher pararam em frente a uma casa de arquitetura antiga, com arcos na varanda. Entramos no pequeno quintal e a porta de madeira se abriu sozinha num ranger amedrontador.
            — O que vão fazer? — perguntei aos dois enquanto observávamos o interior da casa. Logo em frente à porta, uma escadaria levava ao piso superior, onde tudo era muito escuro e impossível de enxergar.
            — Precisamos entrar — disse a mulher. — Não estamos seguros aqui fora.
            Subimos as escadas e a porta se fechou logo atrás. Quando chegamos no piso superior, encontramos um longo corredor – era possível enxergar a sua extensão por conta de uma luz azulada que vinha do fundo.
            Então, uma silhueta surgiu três metros à nossa frente. Forçando a visão, percebi que era uma senhora vestindo uma camisola.
            — Há! — a mulher idosa soltou um grito agoniante e infantil, de tão agudo.
            Quando percebi que eu tinha que correr, o chão desapareceu e caí, junto aos atendentes, num cômodo muito escuro. O cômodo era quadrado, mas não tinha nenhuma saída. Lá em cima, a senhora nos encarava:
            — Que o Terceiro Dilúvio comece! — berrou a velha.
            Por algumas frestas entre os tijolos de pedra nas paredes, começou a cair água e inundar o cômodo.
            — Nós vamos morrer! — eu gritei, muito assustado.
            — Lá! — a mulher apontou para o teto, onde havia um pequeno buraco.
            A água, rapidamente, inundou o quarto e fomos expulsos para o corredor forrado de pedras. Enquanto éramos levados pela correnteza no estreito corredor, enxergamos, sob a água, alguns bichos estranhos refletidos contra a luz azulada e turva.
            Graças àquela luz, pude enxergar uma alavanca que estava no chão do corredor e puxei-a no sentido contrário – eu nem imaginava qual seria o resultado daquilo. Em seguida, a água começou a perder a vazão e foi sugada pelas paredes e pelo chão.
            — Vamos correr antes que ela volte! — eu sugeri. Só aí é que eu percebi que ainda tinha o gato de pano comigo.
            Corremos pelo corredor o mais rápido que pudemos assim que percebemos a mulher atrás de nós.
            Mais um grito ecoou pelas paredes de pedra, tornando o som muito mais estridente.
            Continuamos a correr quando vimos uma porta aberta, exibindo a rua.
            — Jogue isso fora! — o homem apontava para o gato de pano que eu segurava. — Se não, não conseguiremos fugir!
            Olhei mais uma vez para o boneco de pano felino, que ainda ronronava nas minhas mãos como se estivesse vivo. Joguei o bichano no chão e aumentei a minha velocidade enquanto corria.
            O homem e a mulher já haviam conseguido passar pela porta. Olhei mais uma vez para trás e vi que a velha louca corria na minha direção (ou na direção do boneco) e isso me motivou a correr ainda mais. Quando passei pela porta, caí no chão e eu respirava ofegante enquanto os dois tentavam me ajudar.
            Enquanto eu recuperava o meu fôlego, vi a mulher idosa ainda correndo dentro do túnel de pedras rumo à porta que, por sorte, fechou-se de súbito. Logo depois, uma substância branca e leitosa começou a ser jorrada da parede e cobrir toda a porta até formar uma grossa e rígida camada intransponível.
            — Vamos embora — disse o homem, olhando para a mulher e abraçando-a. — Boa sorte, garoto.
            Eles subiram a rua até sumir no horizonte.
            Quando me virei para o sentido contrário, notei que o homem bêbado ainda estava ali no cruzamento das ruas. Porém, ele não estava mais gritando, xingando e batendo nos carros; ele estava caído no asfalto, morto, enquanto os carros passavam sobre ele sem se importarem.
            Eu só consegui respirar aliviado.
            Assim, desci a rua para tentar encontrar o caminho de volta para casa.