domingo, 6 de setembro de 2015

Unspoken: Minha pequena luz, eu vou deixar brilhar

     "Unspoken: A story from the underground railroad" (Sem falas: Uma história da rota clandestina) é uma história do escritor Henry Cole, o qual, sem utilizar a linguagem verbal, conta sobre uma menina que tem a sua coragem testada ao descobrir um intruso escondido na fazenda onde ela vive.

     Numa disciplina da faculdade (Semântica e Discurso da Língua Inglesa), o professor propôs, como atividade, que criássemos uma história escrita para estas imagens. Fiz, então, além da história em língua inglesa, uma versão em língua portuguesa para compartilhar com os leitores do blogue; leiam-na a seguir.




     Durante a Guerra Civil Americana, havia uma família vivendo numa fazenda no interior do estado do Kentucky. A família era constituída por quatro membros: o Velho Macdougal era o proprietário junto à sua esposa, a Sra. Mirth; mas, lá, também viviam a sua sobrinha Dorothy e a sua neta Abigail. A Fazenda do Velho Macdougal era conhecida por todos na região.


     Certo dia, enquanto levava a vaca Mimosa para pastar acompanhada pelo seu bichano Freddy, Abigail avistou alguns homens estranhos montados em seus cavalos entrando na propriedade da fazenda. Eles estavam armados e vestidos com roupas esquisitas; o primeiro da fila segurava uma bandeira com uma espécie de "X" azul desenhado sobre o fundo vermelho.



     Abigail, Mimosa e Freddy ficaram parados assistindo os homens indo embora e percorrendo todo o perímetro da fazenda.
       ― Mas que gente esquisita! ― Abigail comentou com seus amigos animais, que não lhe responderam. ― Pobres cavalos... Não deve ser fácil aguentar aqueles homens com aquelas roupas pesadas.




      Então, a menina deu continuidade às suas tarefas. Todo dia, Abigail ajudava a avó e a tia com os animais da fazenda: pela manhã, a menina levava a vaca Mimosa para pastar; depois, alimentava o galo e as galinhas e, por fim, pegava algumas batatas no armazém para levar à vovó Mirth.
     O que Abigail mais gostava era de alimentar as galinhas. A menina adorava estar rodeada pelos bichinhos. 



      Porém, naquele dia, enquanto alimentava as galinhas, Abigail foi interrompida pela tia Dorothy:
      ― Querida, busque algumas batatas no armazém para mim! ― pediu Dorothy. ― Preciso fazer a sopa do jantar.



      Para a menina, o armazém era um dos lugares favoritos da fazenda: era escuro e carregava um ar misterioso; ela e Freddy brincavam muito ali. A menina largou o saco de milho e correu para o armazém com o seu bichano.



      Enquanto escolhia as melhores batatas para a tia Dorothy, Abigail ouviu algo estranho. O barulho vinha do monte de talos de milho jogado no canto do armazém; as folhas farfalhavam enquanto Freddy cheirava pelas beiradas.
       Preocupada, Abigail se virou para tentar observar melhor o monte de talos.



       Para o horror da menina, havia algo de estranho ali.
     Ela se aproximou mais do monte de talos de milho para tentar enxergar melhor: sim, havia alguém no meio daqueles milhos olhando diretamente para a menina – os olhos eram castanhos e carregavam um misto de curiosidade e pavor.



      A menina, desesperada e assustada, correu para fora do armazém com o bichano Freddy. Ela corria afoita, olhando para trás, com medo de ser seguida.



      Quando chegou à soleira da porta de casa, Abigail largou o cesto com as batatas (que se esparramaram pelo chão!) e parou para recuperar o fôlego. Ela estava totalmente apavorada.



      Mais tarde, quando o jantar já estava servido, Abigail ainda estava preocupada; ela não havia saído mais de casa durante o resto do dia. À mesa, com a sua família, mal se concentrava na oração de agradecimento.



     Então, quando o Velho Macdougal, a vovó Mirth e a tia Dorothy foram dormir, Abigail pegou um lampião e saiu escondida para fora da casa. Na noite fria e escura, a menina carregava um pedaço de pão enrolado num tecido xadrez.



      Com a curiosidade bem maior do que o seu medo, Abigail logo começou a conversar com a pessoa que se escondia ali. Foi quando ela descobriu que era um jovem homem negro:
      ― Por que você está escondido? ― perguntou a menina.
      ― Porque tem gente má querendo me pegar ― respondeu, com o estômago roncando.



      Abigail voltou para casa, ainda escondida, para tentar ajudar aquele homem. Viu a vovó Mirth tricotando (ou dormindo!) e aproveitou o momento.



       Aproveitando que ninguém estava por perto, Abigail conseguiu pegar tudo o que pôde na cozinha: um pedaço de torta, uma batata cozida, um pedaço de bolo de aipim e uma coxinha de frango; embrulhou tudo em pedaços de tecido xadrez e levou para o homem escondido.



      Na manhã seguinte, após passear com a vaca Mimosa, Abigail ouviu um barulho familiar enquanto dava água para o animal; eram barulhos de cascos farfalhando o gramado do pasto.



      Curiosa como sempre, a menina correu para trás do celeiro e bisbilhotou: eram aqueles mesmos homens estranhos do dia anterior, montados em seus cavalos e vestidos com aquelas roupas esquisitas. Os homens aguardavam à frente da casa.



      Abigail se escondeu no porão da casa e aproveitou para espiar através do buraco duma portinhola que dava acesso à cozinha:
      ― Então o senhor não tem nenhum escravo refugiado aqui? ― interrogou um dos homens. ― Sabe que não pode mentir aos Confederados, não sabe?
      ― Olha, realmente, não há ninguém aqui! ― insistiu o Velho Macdougal. ― Tenho uma família.



       ― Então é isso! ― concluiu Abigail, surpresa, falando sozinha em voz baixa. ― Ele é um escravo e está fugindo desses homens maus! Eu vou ajudar ele... Ninguém merece uma vida assim.
      Abigail não sabia muito bem o que era escravidão, mas sabia que não era algo bom; os proprietários das fazendas vizinhas possuíam escravos – e eles eram muito maltratados e mal comiam. Ela não queria essa vida para o seu novo amigo.




      Os Confederados, como haviam-se intitulado, partiram da propriedade insatisfeitos por não terem encontrado o escravo foragido; continuariam as suas buscas pela região.


      Ao anoitecer, Abigail esperou todos irem dormir, pegou novamente um lampião e saiu em direção ao armazém. Ela queria contar ao seu amigo sobre os Confederados que procuravam por ele e dizer que ele estaria seguro ali na fazenda.



      Ao chegar no armazém, contudo, Abigail não encontrou o seu amigo; não havia mais ninguém sob o monte de talos de milho. Havia apenas uma lembrança de que alguém estivera ali: o escravo refugiado havia confeccionado um boneco com as espigas de milho, vestido com uma linda roupa feita com os tecidos xadrez que serviram para embalar as comidas trazidas pela menina.



     Naquela noite, antes de dormir, Abigail olhava para o céu estrelado pela janela do seu quarto; ela desejava que aquele homem pudesse viver uma vida digna, longe de qualquer tortura ou humilhação. A partir dali, ela dormiu com o seu novo amigo (o boneco) todas as noites.


A esperança por um mundo mais humano é como uma chama a qual você jamais pode deixá-la se apagar.





quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O seu gato, por acaso, vai dar o seu diploma?

Quarta-feira, 2 de setembro | 10h07

            Trabalhar com crianças e adolescentes é algo extremamente desafiador. Trabalhar com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social é perturbadoramente desafiador.
            Na função de orientador socioeducativo, atuo com uma turma de crianças e adolescentes entre nove e 14 anos de idade. Por conta disso, muitos já estão naquela fase da pré-adolescência, uma fase conhecida por seus impulsos, desejos, questionamentos e inconformidades.
            Tenho uma relação muito aberta e verdadeira com a minha turma – somos sempre transparentes quanto aos nossos sentimentos (entre nós e entre as pessoas que estão a nossa volta). Na última segunda-feira, ao término da atividade, comentei com um dos meninos que eu faltaria na faculdade para cuidar de um dos meus gatinhos de estimação porque ele está muito doente.
            — Júnior, o seu gato, por acaso, vai fazer as suas lições e dar o seu diploma? — foi a pergunta imediata dele.
            Confesso que, na hora, fiquei um pouco surpreso com a entonação da pergunta. Ele, realmente, estava indignado porque eu faltaria na faculdade “apenas” para cuidar do meu gatinho de estimação que está doente e precisa de cuidados.
            — Não... Ele não vai me dar o meu diploma nem fazer minhas lições — respondi olhando nos olhos dele. — Mas, olha só, eu escolhi ter um animal de estimação, não foi? A partir da minha escolha, vieram todas essas responsabilidades. Eu amo o Freddy (meu gatinho) e não vou deixar de cuidar dele... Ele está muito doente, com cálculos no trato urinário. Preciso ficar com ele hoje.
            A indignação do menino continuou ali, firme e forte.
            Então, após as outras crianças saírem para o café, ele veio até a minha mesa:
            — Júnior... — ele falava com a cabeça baixa, sem olhar nos meus olhos. — Eu já não sei mais o que fazer em casa.
            — Como assim? — questionei.
            — Minha mãe chamou todos os meus irmãos para “sair” com ela no sábado e nem olhou na minha cara — ele contou. — Fiquei lá... E ela nem me olhou.
            — Mas você disse que queria sair com ela? — perguntei, tentando aliviar aquela tensão.
            — Não... Mas os meus irmãos também não disseram. Ela não gosta de mim. Ela nem me deixa jogar o meu videogame. Os meus irmãos pegam o videogame e jogam só eles... Eu nem posso tocar.
            — Mas você já falou isso para a sua mãe?
            — Ela comprou o videogame pra mim... Porque eu fico em casa — ele respondeu. — Mas o meu irmão até esconde o videogame pra eu não pegar. E a minha mãe não fala nada.
            — Já tentou dizer isso para a sua mãe? — questionei-lhe. — Que você queria ter saído com ela... Ou que você quer jogar o seu videogame?
            — Não. Porque não vai adiantar — ele concluiu.
Aqui está algo que, infelizmente, acontece muito: a falta do diálogo no âmbito familiar. Foi só, então, que eu compreendi; o menino não estava indignado por eu faltar na faculdade pra cuidar do meu gatinho de estimação. Aliás, talvez o estivesse. Talvez, ver que eu estava tão preocupado com o meu gato (que é um animal) o tenha feito pensar o motivo daquilo não acontecer com ele (que é uma criança).
            Eu, realmente, fico preocupado quando vejo uma criança fazendo tais questionamentos e dando-se conta de suas vidas (por vezes, tão sofrida!). A sensação que tenho é de que a vulnerabilidade na qual se encontra essa criança está tão avançada que, dificilmente, conseguiremos reverter a situação. A menos, é claro, que comecemos a trabalhar diretamente com essas famílias; as famílias precisam enxergar que também estão vulneráveis e que podem contar conosco, agentes sociais.

            Não vou restringir apenas aos profissionais da área social, mas a todo cidadão dentro da sociedade: é nosso dever garantir o direito de outrem.