Rio Amazonas, Isla de los Monos, Peru.
            Era quase dez horas da noite quando
Marco, Teresa e Joaquim navegavam próximos da Isla de los Monos – a Ilha dos
Macacos. Eles haviam alugado o barco pesqueiro Neruda em Tefé, no Amazonas e,
desde então, foram seis dias até chegar naquele ponto do Rio Amazonas.
            Alfredo, o peruano dono do
pesqueiro, era contra os propósitos daquela viagem, mas só os descobrira há
poucos minutos, ao ouvir uma conversa entre os três expedicionários e a guia
turística, Moema:
            — Vocês têm certeza disso? — questionava Moema, insegura. — Não tenho
certeza do que vamos achar na Ilha. Pode ser tudo balela.
            —
Não! — contestou Joaquim, convicto. — É verdade, eu sei. Todo o mundo aqui da
região fala disso... Os aldeões têm essas superstições.
            — Só não me metam nessa encrenca — pediu Moema, preocupada. — Não quero
estar envolvida com isso e sujar o meu nome. O que vocês vão fazer é exploração
ilegal. Retirar espécimes destas regiões é crime ambiental.
            —
¡Maldito sea! — exclamou Alfredo, saindo detrás da cabine do piloto. O homem
entendia a língua portuguesa muito bem, só não conseguia falar o idioma; por
isso a necessidade de uma guia e tradutora.
            Um
clima tenso se espalhou por todo o convés do Neruda.
            —
¿Estabas escuchando a escondidas? — Moema brigou com o pescador. — Usted há
sido contratado sólo para hacerse cargo de la embarcación.
            —
¡Qué vas a hacer no es correcto! — insistiu Alfredo. O peruano suava de tanta
tensão ao descobrir os reais motivos daquela viagem. — ¡Hijos de puta! ¡La
Boiuna nos va a matar!
            —
La Boiuna? — Moema se deu conta do que se tratava aquilo tudo. — ¡Eso es una
leyenda, hombre! ¡Sólo eso!
            Com
o medo estampado na cara, Alfredo voltou para a cabine do piloto e ficou
encarando os quatro brasileiros.
            Marco,
Teresa e Joaquim não entenderam nada; ficaram calados aguardando por uma
explicação de Moema, que também ficou calada.
            Quase
à meia-noite, Alfredo parou o barco alegando que estava muito cansado e que precisaria
dormir um pouco para repor as energias. O Neruda estava num meandro, entre as
árvores com copas em forma de guarda-chuva. Então, Moema decidiu explicar aos
três expedicionários o que estava acontecendo:
            —
Bom, vocês presenciaram o show do peruano — comentou Moema, lamentando o
ocorrido.
            —
Aquilo foi um barato! — disse Marco, entusiasmado. — O cara é uma figura!
            —
Mas ele parecia muito bravo com alguma coisa — sugeriu Teresa, uma mulher de
sensibilidade extrema.
            —
Exatamente — confirmou Moema, com uma feição não muito feliz. — Vejam bem, o
povo que vive às margens do Amazonas tem uma crença muito forte em algo muito
antigo.
            —
Era aquele tal de Boiúna? — questionou Joaquim. — Ouvi o Alfredo comentando
algo sobre isso.
            —
Isso! Isso mesmo — respondeu Moema, assentindo com a cabeça. — A Boiúna é tida
como O Grande Espírito do Rio Amazonas, capaz de encarnar numa gigantesca
serpente para engolir as embarcações com os seus navegantes que fazem mal à
natureza.
            —
Não tenho medo de sucuri — brincou Marco. — Já matei várias!
            —
¡Eres un idiota! — era Alfredo. O homem havia acordado ao ouvir falarem sobre a
Boiúna. — ¿No se dan cuenta que nos encontramos en el território de la Boiuna?
Ella es la dueña de este río. 
            —
Amigo, venha cá... — Joaquim, o mais jovem de todos, envolveu o peruano com o
braço direito e o levou para a popa do Neruda. — Que história é essa de Boiúna?
Fale com calma para que eu entenda.
            —
La Boiuna es el ser vivo más cruel y poderoso — alertou Alfredo, espreitando o
Rio Amazonas. — Ella puede cambiarse a la gente si quiere engañarnos. Ella
podría incluso convertirse en un recipiente para nosostros para atraer y
ahogamos.
            —
Espera um pouco... Não entendi nada! — Joaquim lamentou com uma expressão
preocupada.
            —
Ele disse que a Boiúna é tão poderosa que poderia se transformar numa
embarcação para nos atrair e nos afogar — traduziu Moema, soltando um leve
sorriso. — Mas é claro que isso é uma lenda!
            — ¡Esto no es una leyenda! — berrou Alfredo; o seu grito ecoou pela mata
e pelo rio, fazendo-os perceber que estavam realmente sós.
            —
Por que não vamos dormir? — propôs Teresa, desejando acalmar os ânimos dos
navegantes.
            Assim,
todos se encaminharam aos seus colchonetes para tentar descansar.
            No meio da noite, após ouvir um
estalido, Marco se levantou e caminhou com uma lanterna até o púlpito de proa
para tentar ver se algo havia batido no barco. O homem procurou no foco de luz
e forçou a visão, mas não conseguiu enxergar nada. O rio corria calmo; não
havia pássaros, não havia peixes; nem mesmo as árvores balançavam.
            Quando desligou a lanterna e
virou-se para voltar ao seu colchonete, Marco foi surpreendido por alguém. Era
uma figura feminina oculta pela sombra noturna; ela estava com os ombros tensos
e os cabelos bagunçados.
            — Oi! Moema? Terê? — perguntou Marco, acendendo a lanterna na direção da
moça.
            Então,
Marco se assustou com o que viu – aqueles olhos completamente negros o
encararam e puderam enxergar a sua alma. Num súbito ataque, a mulher avançou
sobre o homem e o jogou contra o Rio Amazonas.
            No
rio, Marco teve de lutar contra a correnteza e contra a mulher, que parecia ter
uma força anormal. Mas não demorou muito para o expedicionário desistir e
acabar-se afogando nas águas do Rio Amazonas.
            Ao
amanhecer, Teresa e Joaquim procuraram por Marco no barco todo:
            —
É melhor descermos até as margens e procurarmos por ele. Será que ele não quis,
de repente, fazer xixi? — sugeriu Teresa, tentando não demonstrar a sua real
preocupação.
            —
Ele é louco, então, pois temos recipientes adequados para isso aqui no barco —
argumentou Moema, aparentando estar incrédula com o sumiço do homem. — Não é
seguro sair sozinho do barco e andar pela floresta; há animais à solta!
            —
¡Yo he dicho! Fue la Boiuna! — gritou Alfredo, apontando para o rio.
            No
rio, algo despertou o temor dos tripulantes do Neruda – um corpo boiava nas
margens do outro lado do Rio Amazonas; era o corpo de Marco.
            —
Meu Deus! — gritou Teresa, chorando em desespero. — Quem fez isso?
            —
Alfredo, pare de assustar as pessoas! — exigiu Moema, encarando o pescador e
dono do barco. — Já não basta o que houve com o Marco? Leve a gente até a outra
margem.
            —
Si señora — Alfredo obedeceu ao pedido de Moema assim que a olhou nos olhos. —
Como quieras.
            Então, o Neruda navegou até a outra
margem do rio e, com algum esforço, os tripulantes conseguiram trazer o corpo
de Marco de volta para o barco. O corpo estava inchado e cheio de marcas
rochas; os olhos estavam revirados, exibindo apenas a esclera branca.
            — Vamos embora! — gritou Teresa, desesperada.
            —
Teresa? — Joaquim ficou confuso... — Não terminamos...
            —
Não vamos pegar mais nada! — decidiu a mulher, transtornada. — Vamos embora
deste lugar... O Marco não tinha que ter morrido!
            —
Mas foi um acidente! — insistiu Joaquim. — Você acreditou mesmo nessa
historinha pra assustar criança?
            Moema
lançou um olhar assustador a Joaquim, mas o jovem nem se deu conta; mas Alfredo
capturou aquela ameaça e quase se jogou do Neruda naquele instante, mas preferiu
manter a calma.
            —
Será mejor que nos vayamos — Alfredo disse, tentando não encarar Moema. —
Estamos todos muy nerviosos. Si seguimos com el viaje, no vamos a enfocar.
            —
Tudo bem — Joaquim teve de concordar; todos estavam muito abalados.
            Então,
o Neruda voltou a descer o Rio Amazonas rumo a Tefé.
            No
cair da noite, o céu foi encoberto por densas nuvens cor-de-chumbo; não demorou
muito e começou a cair uma tempestade que impedia a visão nítida do rio à
frente:
            —
¡Maldita sea! — vociferou Alfredo ao concluir que precisaria esperar a chuva
forte passar. — Tendremos que esperar.
            Dentro da cabine, Teresa, Joaquim,
Moema e Alfredo assistiam a tempestade cair; o corpo de Marco perecia sobre o
convés próximo à popa do Neruda. As árvores se curvavam sobre o rio com o vento
forte, que assobiava assustadoramente. Raios e trovões clareavam o céu e
estremeciam a terra.
            — Meu Deus! Estamos ferrados — praguejou Teresa. — A gente precisa ir
embora daqui.
            —
Você enlouqueceu? — Moema encarou, com indignação, a expedicionária. — Não está
vendo a tempestade? Se o Alfredo tentar ligar este barco, seremos levados pela
correnteza como uma folha de papel!
            —
No podremos irnos de aqui hoy — lamentou Alfredo, ainda evitando olhar para Moema.
— Tal vez tengamos que dormir aqui esta noche. ¡No quiero perder mi barco
durante la tormenta!
            —
O Alfredo está certo — concordou Moema, apoiando a sua mão esquerda sobre o
ombro direito de Alfredo. — Não vamos fazê-lo perder o seu barco.
            Assim,
os quatro permaneceram ali, na cabine, por cerca de três horas até caírem no
sono.
            Joaquim
acordou assustado ao ouvir um barulho vindo do rio. Levantou-se e caminhou até
o púlpito de proa; foi quando viu outra embarcação se aproximando do Neruda –
era um posto flutuante de combustível da Petrobrás, colorido em verde.
            O
posto flutuante se aproximou o bastante para que fosse possível saltar sem
dificuldades do barco pesqueiro Neruda para a embarcação da Petrobrás. E foi
exatamente isso o que Joaquim fez:
            —
Oi? — dizia Joaquim, enquanto batia nas portas da embarcação. — Tem alguém aí?
            Uma
das portas, então, abriu-se e exibiu ao moço um compartimento cheio de
computadores e rádios. Sem pensar duas vezes, Joaquim correu para dentro do
local a fim de tentar comunicar-se com alguém em busca de ajuda. Contudo, a
porta se fechou com toda a força logo que ele pisou no compartimento.
            —
Ei! Me deixe sair daqui! — gritou Joaquim, enquanto esmurrava a porta de aço. —
Socorro!
            Uma
silhueta feminina surgiu atrás de Joaquim e soltou um sussurro:
            —
¡Tú eres mio, no creyente! — a voz feminina lhe pareceu familiar, mas era
gélida e assombrosa. — Cierra tus ojos y comience a orar.
            Joaquim
começou a tremer dos pés à cabeça e, sem controle algum dos seus impulsos,
urinou nas calças. O jovem cerrou os olhos com toda a força e começou a fazer
preces:
            —
Pelo amor de Deus... — implorava o homem, enquanto tentava, sutilmente, pôr-se
de joelhos sobre o chão do compartimento sombrio. — Eu prometo que nunca mais
volto aqui!
            —
¡Cállate la boca! — a mulher soltou um berro que parecia o granido duma coruja,
o que fez Joaquim silenciar-se.
            Quando
se deu conta, Joaquim viu que havia uma infiltração no compartimento onde
estava; a água já estava ao nível das suas coxas. O jovem ergue-se de supetão,
assustado, e tentou abrir a porta mais uma vez – inutilmente. Foi só aí que
ele, então, concluiu que a embarcação estava afundando no Rio Amazonas.
            —
Não! — ele gritava e chorava desesperado, sem esperanças. — Me deixe ir embora!
Por favor!
            —
Olha só... — a voz feminina mudou o seu tom para algo mais melódico enquanto a
silhueta se aproximava de Joaquim. — Não são só criancinhas que ficam
assustadas!
            O
olhar de Joaquim era perturbador – ele estava transtornado com o que viu. O
medo e o pavor foram tão intensos que isso lhe causou uma série de sensações
incômodas: primeiro, uma forte dor atingiu-lhe o peito e as costas,
causando-lhe uma falta de ar; a sua língua começou a enrolar e ele começou a
sentir enjoo o braço esquerdo formigava como se milhares de insetos caminhassem
por ali; uma vertigem lhe acometeu; e, por fim, Joaquim caiu morto.
            Aos
poucos, o porto flutuante da Petrobrás afundou nas frias águas do Rio Amazonas
até ancorar na talvegue do rio. A mulher lançou um último olhar ao corpo do
jovem e saiu pela porta de aço, que se abriu assim que a silhueta feminina
encostou.
            Enquanto
isso, Teresa e Alfredo procuravam por Joaquim, mas, como não o encontravam,
decidiram acordar Moema, que dormia pesadamente no convés do Neruda:
            —
Moema! Acorde — Teresa cutucou o ombro da guia. — O Joaquim... Ele está
desaparecido!
            —
O quê? — Moema levou as mãos aos olhos, tentando limpar o seu campo de visão. —
Como desapareceu?
            —
Não sei... — respondeu Teresa, com a voz chorosa. — E se tiver acontecido o
mesmo que aconteceu ao Marco?
            Nesse
instante, Teresa olhou para a popa da embarcação, esperando achar o corpo de
Marco, que não estava mais lá.
            —
Marco! — gritou Teresa. — O corpo dele sumiu!
            —
Lárguemonos de aqui — decidiu Alfredo, segurando a roda do leme e começando a
navegar com o Neruda. — Tengo una familia que cuidar.
            —
Largue o timão — Moema proferiu aquelas palavras com um ar de seriedade. —
Agora.
            Sem
hesitar, Alfredo soltou a roda do leme e sentou-se num banquinho, tremendo-se
todo.
            —
Mas o que está fazendo, Moema? — questionou Teresa, sem entender a atitude da
guia. — Vamos embora logo deste Inferno!
            —
Aqui não é o Inferno, mulher — a voz de Moema ficou mais grave e um pouco
sibilante. — Aqui é o Paraíso. São vocês, humanos, que fazem disto o Inferno.
São vocês, humanos, é quem destroem tudo o que veem pela frente. São vocês,
humanos, quem acreditam que são a forma de vida mais inteligente.
            —
Por que está falando assim? — Teresa caminhava, de costas e em passos curtos,
rumo à proa do barco. — Está querendo assustar a gente?
            —
Alfredo já mijou nas calças — zombou Moema. — Mas você... Ah! O seu presente te
aguarda!
            —
...Santificado sea tu Nombre; vena a nosotros tu Reino — orava Alfredo, ajoelhado
na cabine, de olhos fechados. — Hágase tu voluntad en la tierra como en el
cielo.
            —
¡Cállate! — sibilou Moema; os seus olhos estavam inteiramente negros e, da sua
pele, começavam a "brotar" escamas. — Yo soy la diosa aquí.
            —
Moema, pare com isso! — exigiu Teresa, tentando uma postura mais firme.
            Simples
e direta, Moema saltou sobre a mulher e mordeu o seu braço, arrancando um bom
pedaço da pele de Teresa:
            —
Filha duma puta! — gritou Teresa. — Por que fez isso? Socorro, Alfredo, me
ajude!
            —
Chega! Cale-se de uma vez por todas! — ordenou Moema, que agarrou a mulher e
saltou com ela para dentro das águas do rio.
            No
fundo do rio, Teresa lutava com todas as suas forças, o que era inútil já que a
adversária era algo sobrenatural. O abraço de Moema foi tão forte que Teresa
rapidamente desmaiou e afogou-se, engolindo a água do Rio Amazonas até o seu
corpo inflar como um balão.
            Depois
disso, Moema escalou de volta o Neruda e posicionou-se diante de Alfredo, que
tremia – ele parecia ter Parkinson, de tanto que tremia:
            —
Pois bem... — Moema encarou o pescador. — Es tu turno.
            —
¡Por amor de Dios! — Alfredo chorava desesperado. — Nunca hice ningún daño a la
naturaliza. Pesco sólo para mi familia a sobrevivir.
            —
E quanto a esse bando de exploradores que você trás para o rio? — lembrou
Moema, furiosa. — Ya sabes lo que quierem es explorar la naturaleza.
            —
¡Lo juro! — o homem se ajoelhou perante a mulher e suplicou. — Jamás voy a
hacer... ¡Sólo te ruego que me dejes ir a mi familia!
            —
Tudo bem — concordou Moema, com um sorriso perverso. — Você poderá voltar à sua
família. No entanto... A partir de hoje, sempre que algum explorador te
procurar, você deixará muito claro que conheceu a Boiúna de perto.
            —
¡Lo haré, lo prometo! — prometeu Alfredo, atrevendo-se a beijar os pés de
Moema, que não interferiu.
            —
Além disso, na sua volta para o seu vilarejo, você passará em todas as aldeias
e vilarejos às margens do Rio Amazonas e dirá o seguinte: — estabeleceu a
criatura misteriosa — diga a todos que O Grande Espírito do Rio, a Boiúna,
ainda existe e sempre existirá. ¡Ay de quien haga tropezar uno de mi! ¡Ahora, continúe
su viaje!
            Assim,
Moema, a Boiúna, saltou e mergulhou no rio. Segundos depois, enquanto Alfredo retomava
o curso do rio, o homem avistou uma enorme criatura serpenteando na superfície
do Rio Amazonas, uma gigantesca cobra de escamas escuras, que refletiam o
brilho das estrelas.