sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Amazônia: Por um mundo melhor


            Há algum tempo, escrevi um conto que explorava um pouco da mitologia tupi-guarani, "O Mistério da Fênix", no qual um garoto paulistano de dezessete anos se descobre como parte do panteão tupi-guarani.
            Depois disso, vieram algumas ideias que compartilhei com algumas pessoas mais próximas. Por sorte, foram boas ideias que provaram dar bons frutos: Anderson do Nascimento, o meu marido, decidiu utilizar, como pano de fundo, o contexto mitológico tupi-guarani para uma de suas produções no seu trabalho nas Fábricas de Cultura.

As Fábricas de Cultura
            As Fábricas de Cultura são um projeto do Governo do Estado de São Paulo em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O projeto visa a educação e a formação nas diversas formas de expressão artística.
            O Anderson é educador do ateliê de Canto Coral na Fábrica de Cultura de Cidade Tiradentes e, neste semestre, desenvolveu um espetáculo musical com os seus aprendizes na trilha semestral.

A ideia de trabalhar com a mitologia tupi-guarani
            Inicialmente, a ideia do Anderson era trabalhar, com os aprendizes de Canto Coral, as lendas brasileiras: o Saci, a Caipora, o Boi Bumbá, a Iara etc. Contudo, durante o processo de desenvolvimento do espetáculo, o Anderson apresentou o meu conto "O Mistério da Fênix" aos aprendizes, que demonstraram grande interesse pela abordagem com as divindades nativamente brasileiras.

Ilustração de Júnior Gonçalves.
            Assim, a trilha tomou um novo rumo e os aprendizes entraram num ambiente de pesquisa amplo sobre a cultura nativa do país, buscando informações sobre o folclore popular brasileiro e sobre as lendas dos povos tupis-guaranis.

A montagem do espetáculo
            O espetáculo musical começou a ser produzido a partir do momento em que os aprendizes iniciaram as buscas pelas informações, pelas lendas e pelo levantamento musical – as músicas do espetáculo são músicas que, de alguma forma, influenciaram a música brasileira.
            Após longas discussões e trocas de informações, os aprendizes puderam escolher os seus personagens – isso demonstra a liberdade oferecida pelo educador, visando que cada aprendiz se apropriasse do seu personagem sem levar o processo como algo penoso. Em seguida, foi criado um grupo no Facebook, dedicado às discussões e ideias para as caracterizações dos personagens.
            Foi, então, que eu recebi o convite para escrever o enredo e adaptá-lo para o roteiro do musical. A proposta era inserir os personagens na resolução dum conflito – a degradação ambiental e a destruição da Amazônia, o pulmão do mundo. Eu já conhecia alguns dos aprendizes pessoalmente, o que me ajudou muito na construção do enredo, e sempre conversava com o Anderson sobre cada aprendiz para tentar adequar, ao máximo, cada personagem.
            Após a construção do enredo e algumas alterações, segui para a adaptação da história em um roteiro teatral. Juntos, eu e o educador selecionamos algumas trilhas sonoras que serviriam de entradas e interlúdios – isso aconteceu após a edição completa do roteiro e dos cortes de algumas cenas (devido ao tempo disponibilizado para a apresentação). Ainda, tive a chance de adaptar a canção "O que eu quero mais é ser rei", do filme "O Rei Leão", para o personagem Curupira, que contracenou com a personagem Caipora.

A apresentação
            O evento foi parte da formação semestral dos aprendizes da Fábrica de Cultura de Cidade Tiradentes, que aconteceu no dia 6 de dezembro de 2015, às 16h40, no teatro da unidade.
            O enredo foi centralizado na reunião de várias entidades folclóricas, como Caipora, Curupira, Jaci, Guaraci, Rudá, Boitatá, Boto Cor-De-Rosa, Cuca, Jurupari, Anhangá, duendes, fadas e índios, todos preocupados após descobrirem que Tupã perdeu os seus poderes e não consegue mais fazer chover e que Iara está fraca e morrendo. Durante o espetáculo, os personagens descobrem que isso está acontecendo por conta da destruição da natureza pelo homem e tentam buscar soluções para isso.

Primeira parte do espetáculo musical.

            As músicas foram envolventes e fizeram o público interagir com os personagens, conseguindo sentir a angústia e questionar a existência duma possível solução para tudo isso. "Amazônia", "Não vamos parar" e "Planeta Água" foram algumas das músicas do espetáculo.
            Os aprendizes surpreenderam tanto ao educador – que se emocionou ao final do espetáculo – quanto ao público e aos funcionários da Fábrica de Cultura de Cidade Tiradentes. O talento de cada um pôde ser percebido; a veia artística de cada um pulsou intensamente.

Segunda parte do espetáculo musical.

            Sinto orgulho por ter participado desse processo – um grandioso processo. Parabenizo, mais uma vez, a todos os envolvidos mas, principalmente, aos aprendizes que, de fato, fizeram um verdadeiro espetáculo!

domingo, 8 de novembro de 2015

Crônica - O que o Horácio quer?

O QUE O HORÁCIO QUER?
Júnior Gonçalves | 6 de nov. 2015 – às 16h15


            Horácio, um pré-adolescente de 12 anos e morador da periferia de São Paulo, tem vontades e mil sonhos. A sua mãe, Maria, trabalha como doméstica nos grandes lares e nos apartamentos luxuosos da zona sul e, à noite, faz a graduação em Gastronomia, graças a uma bolsa que conseguiu. José, o pai de Horácio, trabalha como vigia noturno num condomínio localizado na área central da cidade.
            Quando chega da escola ao meio-dia, o Horácio toma um copo de suco e já sai de casa outra vez – é que, como a sua mãe trabalha durante o dia e o seu pai dorme durante esse período, o menino não pode ficar sozinho na rua. Por isso, foi matriculado num Centro para Crianças e Adolescentes.
            Durante o período da tarde, Horácio tem acesso a muitas coisas no C.C.A.: almoço, café da tarde, atividades esportivas, artísticas e socioeducativas, cultura, lazer, conhecimento, festas de aniversário, excursões... É atividade que não acaba mais!
            Ainda assim, parece que falta algo para o Horácio. Mesmo com todo o apoio e incentivo fornecido pelos educadores e demais funcionários da instituição, o Horácio não se sente satisfeito. Mesmo com todas as oportunidades que lhe são oferecidas em todas as tardes, o Horácio não se sente satisfeito. Na maior parte do tempo, o Horácio está fazendo alguma coisa para chamar a atenção para si. Por vezes, isso acaba em discussões ou brigas, obrigando a presença dos pais para uma conversa em busca de soluções.
            É nesse momento que o Horácio começa a sentir-se satisfeito: no momento em que enxerga os seus pais, Maria e José, tentando resolver o problema do filho, dando atenção para a sua vida.
            Não é que Maria e José não deem atenção ou não se importem com o Horácio. Mas lhes falta tempo. Maria só chega em casa à meia-noite e, aos finais de semana, preocupa-se com os trabalhos da faculdade e com as tarefas domésticas. José trabalha durante a noite e dorme para descansar durante o dia – então, nada de barulho para não o acordar. Quando o Horácio chega em casa ao fim da tarde, ele só consegue ficar com o pai por uma hora (que é o tempo que José tem para se trocar e alimentar o filho); depois disso, o menino fica sob os cuidados da avó até que a mãe chegue da faculdade.
            Então, sim, o Horácio se satisfaz quando os pais são chamados à escola ou ao C.C.A., pois esses são os momentos em que a família dele se une por ele e com ele. Justamente por isso, infelizmente, as broncas e os castigos já não funcionam mais com o menino, já que ele pode fazer de tudo para ter mais tempo ao lado do pai e da mãe.

            Horácio, um pré-adolescente de 12 anos e morados da periferia de São Paulo, é um entre muitos que têm vontades e mil sonhos. A maior vontade e o maior sonho do Horácio e desses outros tantos é que as suas famílias lhes reservem, ao menos, meia-hora por dia.

sábado, 7 de novembro de 2015

O que as nossas crianças sabem sobre o racismo?


            Trabalhar como educador me permite algo que poucos têm a chance: de alcançar os sentimentos das crianças e levar-lhes novos conhecimentos e novos valores.
            Como um escritor, costumo utilizar a leitura e a escrita como ferramentas no meu trabalho; ferramentas que potencializam essas ações.
            No mês da Consciência Negra, decidi abordar com a turma a questão do racismo, das conquistas e das desigualdades dos negros na sociedade. É claro que já tínhamos discutido o assunto algumas vezes durante o ano, mas aproveitei o mês para focar no tema.
            Então, distribui pedaços de folha de papel pautada, lápis e borrachas. Pedi que cada um escrevesse tudo o que soubesse sobre o racismo, sem preocupar-se com o que poderia estar certo ou errado, justamente porque a atividade não se tratava de julgar o certo e o errado. A atividade tinha como propósito avaliar e "diagnosticar" o conhecimento prévio das crianças sobre o tema, de modo que eu possa elaborar o material das discussões de forma que eu consiga desvendar alguns mitos e desconstruir alguns valores construídos pelo preconceito embutido pela sociedade.
            O resultado da atividade foi incrível – não no sentido positivo da palavra. Mas não pude crer em como as crianças ainda recebem valores e aprendem conceitos equivocados sobre um assunto tão abordado nos últimos anos. Há uma grande confusão entre o racismo e a consciência negra, entre referir-se a um negro como "negro" e ofender um negro com os xingamentos mais absurdos.
            A seguir, compartilho com vocês um pouco do que foi escrito. Acredito que este material possa provocar-nos e levar-nos à reflexão sobre como transmitimos os valores e conceitos na sociedade. Acredito que possamos refletir sobre como queremos o nosso futuro, um futuro livre de preconceitos.
* * *
Por que o racismo existe?
            Eu não sei o porquê, mas, só porque somos negros, os brancos são racistas com a gente. Às vezes, tenho vontade de me pintar todo de branquinho para não ouvir mais essas coisas.
            Quando me chamam de "pretinho" ou de "cerâmica de chão", eu me sinto muito ofendido.
            No mundo, tem mais branco do que negro, e os branco acham que podem maltratar os negros por isso, por causa da cor.
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            Eu acho o racismo muito ruim. Já vi muito racismo, como uma pessoa chamando a outra de "escravo", um menino chamando o outro de "café". Eu mesmo já fui preconceituoso com um menino; eu o chamei de "asfalto". eu me arrependi por que, noutro dia, esse menino me defendeu de dois meninos; nunca mais fui preconceituoso com ninguém.
            Tenho muito orgulho de ter amigos negros.
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            O racismo é uma coisa que é feia; não pode ser usado contra as pessoas e contra os amigos nem na escola. Eu já fui zoado de "macaquinho branco" – não podem fazer isso!
            Chega de ser racista! Parem agora!
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            A consciência negra é uma coisa horrível para uma pessoa. Quando se fala que a pessoa é "macaco", "negro" e "preto", a pessoa fica triste. Também, todo o mundo é igual. A pessoa que faz essas coisas é preconceituosa.
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            O racismo faz muito mal às pessoas. Ele muda o sentimento das pessoas de bem para mal. O combate ao racismo é bem impossível.
            Eu já li que o racismo é uma discriminação baseada na suposta inferioridade de certas raças. O racista é relativo ao racismo.
            Negro, branco, moreno, são todos seres humanos; não têm diferença nenhuma. Não usem o racismo nunca!
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            Eu já sofri racismo; é muito ruim, mas, depois, eu não ligo mais. É muito ruim para as pessoas que sofrem.
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            Faz bem combater o racismo.
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            O racismo é quando uma pessoa branca se acha mais só porque ela é branca e a outra é morena.
            Eu sou contra o racismo. É muito feio!
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            A consciência negra é uma coisa boba porque nós somos todos iguais. Tipo, se você me chama de negro, você está xingando você mesmo porque você é igual a todos.
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            Eu não tenho preconceito com negros, mas isso é muito antigo. Eles apanhavam, mas isso mudou.
            Eu não tenho preconceito porque todos são iguais; eu só não sou da mesma cor. Só isso! Eu tenho o mesmo corpo humano e as mesmas partes do corpo.
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Por que o racismo é ilegal?
            O racismo é ilegal porque só traz coisas ruins, além de trazer mágoas para as pessoas, como por exemplo: você xinga uma pessoa por causa da cor diferente da sua; maltrata uma pessoa porque ela é especial ou sei lá...
            Vamos falar do preconceito. Ele também é muito ruim: é quando você não gosta da pessoa por causa das condições e da classe social dela. Fico muito sentida com o episódio de Carrossel (com a Maria Joaquina e o Cirilo): ela maltrata ele, despreza ele porque ele é o único negro da turma e não tem a mesma condição que os demais da turma.
            Uma coisa que todos nós devemos aprender na vida: SOMOS TODOS IGUAIS. Quantas vezes eu já chorei por causa de problemas assim? PRECONCEITO e RACISMO! Já cometi muitos erros na vida por causa de bullying, mas, aos poucos, fui aprendendo que somos todos iguais.
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            Eu acho que o racismo atinge muito os sentimentos, tanto das pessoas negras quanto das pessoas brancas, porque, mesmo que o branco xingue o negro e perceba que ele fez algo de errado, se fosse eu, ficaria com remorso.
            Eu penso assim: todo o mundo tem de pensar duas vezes antes de praticar o racismo porque, se a pessoa for branca ou negra, tenho certeza de que ela é feliz com a cor que tem. Não precisa ter vergonha da cor que tem, ame a si e se valorize.
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            Eu também sofri racismo na minha escola: me chamaram de "branquela azeda". Isso é muito ruim e magoa bastante.
            Bom, tem muita gente que gosta de fazer os outros sofrerem e muita gente que quer ajudar quem está magoado. O preconceito é assim: magoa, sofre, chateia e as pessoas ficam num canto, depressivas, podendo até se matar.
            Quem planta, colhe o que plantou. Então, não façam isso. Seja cuidadosa(o).
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            O racismo é coisa ilegal. A maioria das pessoas comete o racismo. As pessoas que cometem sabem que estão machucando os outros e, a maioria, são pessoas brancas cometendo o racismo com pessoas negras.
            Os brancos acabam falando que é muito vergonhoso ser negro. Vergonhoso não é ser negro; vergonhoso é cometer o racismo.
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            O negro sofre pelo racismo. Tem criança que também sofre racismo.
            (Raça+ismo) s.m.: segregação; prática de preconceito racial; antipatia ou aversão a outras raças.
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            O racismo é violência com palavras quando a sua cor é negra ou branca. Para mim, não existe isso. Todos nós somos iguais.
            O que mede uma pessoa é o caráter da pessoa – se a pessoa é uma pessoa boa.
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            Eu sei o que é o racismo porque eu já sofri racismo. A menina me chamou de "neguinha da Barra Funda" e, por isso, eu quis fazer progressiva. Mas, quando eu me olhei no espelho, eu percebi que eu estava errada. No dia que ela me chamou, eu não tinha falado para a minha vó e, quando eu percebi, eu tinha que ter falado desde o começo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Conto: O Grande Espírito do Rio

Rio Amazonas, Isla de los Monos, Peru.

            Era quase dez horas da noite quando Marco, Teresa e Joaquim navegavam próximos da Isla de los Monos – a Ilha dos Macacos. Eles haviam alugado o barco pesqueiro Neruda em Tefé, no Amazonas e, desde então, foram seis dias até chegar naquele ponto do Rio Amazonas.
            Alfredo, o peruano dono do pesqueiro, era contra os propósitos daquela viagem, mas só os descobrira há poucos minutos, ao ouvir uma conversa entre os três expedicionários e a guia turística, Moema:
            — Vocês têm certeza disso? — questionava Moema, insegura. — Não tenho certeza do que vamos achar na Ilha. Pode ser tudo balela.
            — Não! — contestou Joaquim, convicto. — É verdade, eu sei. Todo o mundo aqui da região fala disso... Os aldeões têm essas superstições.
            — Só não me metam nessa encrenca — pediu Moema, preocupada. — Não quero estar envolvida com isso e sujar o meu nome. O que vocês vão fazer é exploração ilegal. Retirar espécimes destas regiões é crime ambiental.
            — ¡Maldito sea! — exclamou Alfredo, saindo detrás da cabine do piloto. O homem entendia a língua portuguesa muito bem, só não conseguia falar o idioma; por isso a necessidade de uma guia e tradutora.
            Um clima tenso se espalhou por todo o convés do Neruda.
            — ¿Estabas escuchando a escondidas? — Moema brigou com o pescador. — Usted há sido contratado sólo para hacerse cargo de la embarcación.
            — ¡Qué vas a hacer no es correcto! — insistiu Alfredo. O peruano suava de tanta tensão ao descobrir os reais motivos daquela viagem. — ¡Hijos de puta! ¡La Boiuna nos va a matar!
            — La Boiuna? — Moema se deu conta do que se tratava aquilo tudo. — ¡Eso es una leyenda, hombre! ¡Sólo eso!
            Com o medo estampado na cara, Alfredo voltou para a cabine do piloto e ficou encarando os quatro brasileiros.
            Marco, Teresa e Joaquim não entenderam nada; ficaram calados aguardando por uma explicação de Moema, que também ficou calada.
            Quase à meia-noite, Alfredo parou o barco alegando que estava muito cansado e que precisaria dormir um pouco para repor as energias. O Neruda estava num meandro, entre as árvores com copas em forma de guarda-chuva. Então, Moema decidiu explicar aos três expedicionários o que estava acontecendo:
            — Bom, vocês presenciaram o show do peruano — comentou Moema, lamentando o ocorrido.
            — Aquilo foi um barato! — disse Marco, entusiasmado. — O cara é uma figura!
            — Mas ele parecia muito bravo com alguma coisa — sugeriu Teresa, uma mulher de sensibilidade extrema.
            — Exatamente — confirmou Moema, com uma feição não muito feliz. — Vejam bem, o povo que vive às margens do Amazonas tem uma crença muito forte em algo muito antigo.
            — Era aquele tal de Boiúna? — questionou Joaquim. — Ouvi o Alfredo comentando algo sobre isso.
            — Isso! Isso mesmo — respondeu Moema, assentindo com a cabeça. — A Boiúna é tida como O Grande Espírito do Rio Amazonas, capaz de encarnar numa gigantesca serpente para engolir as embarcações com os seus navegantes que fazem mal à natureza.
            — Não tenho medo de sucuri — brincou Marco. — Já matei várias!
            — ¡Eres un idiota! — era Alfredo. O homem havia acordado ao ouvir falarem sobre a Boiúna. — ¿No se dan cuenta que nos encontramos en el território de la Boiuna? Ella es la dueña de este río.
            — Amigo, venha cá... — Joaquim, o mais jovem de todos, envolveu o peruano com o braço direito e o levou para a popa do Neruda. — Que história é essa de Boiúna? Fale com calma para que eu entenda.
            — La Boiuna es el ser vivo más cruel y poderoso — alertou Alfredo, espreitando o Rio Amazonas. — Ella puede cambiarse a la gente si quiere engañarnos. Ella podría incluso convertirse en un recipiente para nosostros para atraer y ahogamos.
            — Espera um pouco... Não entendi nada! — Joaquim lamentou com uma expressão preocupada.
            — Ele disse que a Boiúna é tão poderosa que poderia se transformar numa embarcação para nos atrair e nos afogar — traduziu Moema, soltando um leve sorriso. — Mas é claro que isso é uma lenda!
            — ¡Esto no es una leyenda! — berrou Alfredo; o seu grito ecoou pela mata e pelo rio, fazendo-os perceber que estavam realmente sós.
            — Por que não vamos dormir? — propôs Teresa, desejando acalmar os ânimos dos navegantes.
            Assim, todos se encaminharam aos seus colchonetes para tentar descansar.
            No meio da noite, após ouvir um estalido, Marco se levantou e caminhou com uma lanterna até o púlpito de proa para tentar ver se algo havia batido no barco. O homem procurou no foco de luz e forçou a visão, mas não conseguiu enxergar nada. O rio corria calmo; não havia pássaros, não havia peixes; nem mesmo as árvores balançavam.
            Quando desligou a lanterna e virou-se para voltar ao seu colchonete, Marco foi surpreendido por alguém. Era uma figura feminina oculta pela sombra noturna; ela estava com os ombros tensos e os cabelos bagunçados.
            — Oi! Moema? Terê? — perguntou Marco, acendendo a lanterna na direção da moça.
            Então, Marco se assustou com o que viu – aqueles olhos completamente negros o encararam e puderam enxergar a sua alma. Num súbito ataque, a mulher avançou sobre o homem e o jogou contra o Rio Amazonas.
            No rio, Marco teve de lutar contra a correnteza e contra a mulher, que parecia ter uma força anormal. Mas não demorou muito para o expedicionário desistir e acabar-se afogando nas águas do Rio Amazonas.
            Ao amanhecer, Teresa e Joaquim procuraram por Marco no barco todo:
            — É melhor descermos até as margens e procurarmos por ele. Será que ele não quis, de repente, fazer xixi? — sugeriu Teresa, tentando não demonstrar a sua real preocupação.
            — Ele é louco, então, pois temos recipientes adequados para isso aqui no barco — argumentou Moema, aparentando estar incrédula com o sumiço do homem. — Não é seguro sair sozinho do barco e andar pela floresta; há animais à solta!
            — ¡Yo he dicho! Fue la Boiuna! — gritou Alfredo, apontando para o rio.
            No rio, algo despertou o temor dos tripulantes do Neruda – um corpo boiava nas margens do outro lado do Rio Amazonas; era o corpo de Marco.
            — Meu Deus! — gritou Teresa, chorando em desespero. — Quem fez isso?
            — Alfredo, pare de assustar as pessoas! — exigiu Moema, encarando o pescador e dono do barco. — Já não basta o que houve com o Marco? Leve a gente até a outra margem.
            — Si señora — Alfredo obedeceu ao pedido de Moema assim que a olhou nos olhos. — Como quieras.
            Então, o Neruda navegou até a outra margem do rio e, com algum esforço, os tripulantes conseguiram trazer o corpo de Marco de volta para o barco. O corpo estava inchado e cheio de marcas rochas; os olhos estavam revirados, exibindo apenas a esclera branca.
            — Vamos embora! — gritou Teresa, desesperada.
            — Teresa? — Joaquim ficou confuso... — Não terminamos...
            — Não vamos pegar mais nada! — decidiu a mulher, transtornada. — Vamos embora deste lugar... O Marco não tinha que ter morrido!
            — Mas foi um acidente! — insistiu Joaquim. — Você acreditou mesmo nessa historinha pra assustar criança?
            Moema lançou um olhar assustador a Joaquim, mas o jovem nem se deu conta; mas Alfredo capturou aquela ameaça e quase se jogou do Neruda naquele instante, mas preferiu manter a calma.
            — Será mejor que nos vayamos — Alfredo disse, tentando não encarar Moema. — Estamos todos muy nerviosos. Si seguimos com el viaje, no vamos a enfocar.
            — Tudo bem — Joaquim teve de concordar; todos estavam muito abalados.
            Então, o Neruda voltou a descer o Rio Amazonas rumo a Tefé.
            No cair da noite, o céu foi encoberto por densas nuvens cor-de-chumbo; não demorou muito e começou a cair uma tempestade que impedia a visão nítida do rio à frente:
            — ¡Maldita sea! — vociferou Alfredo ao concluir que precisaria esperar a chuva forte passar. — Tendremos que esperar.
            Dentro da cabine, Teresa, Joaquim, Moema e Alfredo assistiam a tempestade cair; o corpo de Marco perecia sobre o convés próximo à popa do Neruda. As árvores se curvavam sobre o rio com o vento forte, que assobiava assustadoramente. Raios e trovões clareavam o céu e estremeciam a terra.
            — Meu Deus! Estamos ferrados — praguejou Teresa. — A gente precisa ir embora daqui.
            — Você enlouqueceu? — Moema encarou, com indignação, a expedicionária. — Não está vendo a tempestade? Se o Alfredo tentar ligar este barco, seremos levados pela correnteza como uma folha de papel!
            — No podremos irnos de aqui hoy — lamentou Alfredo, ainda evitando olhar para Moema. — Tal vez tengamos que dormir aqui esta noche. ¡No quiero perder mi barco durante la tormenta!
            — O Alfredo está certo — concordou Moema, apoiando a sua mão esquerda sobre o ombro direito de Alfredo. — Não vamos fazê-lo perder o seu barco.
            Assim, os quatro permaneceram ali, na cabine, por cerca de três horas até caírem no sono.
            Joaquim acordou assustado ao ouvir um barulho vindo do rio. Levantou-se e caminhou até o púlpito de proa; foi quando viu outra embarcação se aproximando do Neruda – era um posto flutuante de combustível da Petrobrás, colorido em verde.
            O posto flutuante se aproximou o bastante para que fosse possível saltar sem dificuldades do barco pesqueiro Neruda para a embarcação da Petrobrás. E foi exatamente isso o que Joaquim fez:
            — Oi? — dizia Joaquim, enquanto batia nas portas da embarcação. — Tem alguém aí?
            Uma das portas, então, abriu-se e exibiu ao moço um compartimento cheio de computadores e rádios. Sem pensar duas vezes, Joaquim correu para dentro do local a fim de tentar comunicar-se com alguém em busca de ajuda. Contudo, a porta se fechou com toda a força logo que ele pisou no compartimento.
            — Ei! Me deixe sair daqui! — gritou Joaquim, enquanto esmurrava a porta de aço. — Socorro!
            Uma silhueta feminina surgiu atrás de Joaquim e soltou um sussurro:
            — ¡Tú eres mio, no creyente! — a voz feminina lhe pareceu familiar, mas era gélida e assombrosa. — Cierra tus ojos y comience a orar.
            Joaquim começou a tremer dos pés à cabeça e, sem controle algum dos seus impulsos, urinou nas calças. O jovem cerrou os olhos com toda a força e começou a fazer preces:
            — Pelo amor de Deus... — implorava o homem, enquanto tentava, sutilmente, pôr-se de joelhos sobre o chão do compartimento sombrio. — Eu prometo que nunca mais volto aqui!
            — ¡Cállate la boca! — a mulher soltou um berro que parecia o granido duma coruja, o que fez Joaquim silenciar-se.
            Quando se deu conta, Joaquim viu que havia uma infiltração no compartimento onde estava; a água já estava ao nível das suas coxas. O jovem ergue-se de supetão, assustado, e tentou abrir a porta mais uma vez – inutilmente. Foi só aí que ele, então, concluiu que a embarcação estava afundando no Rio Amazonas.
            — Não! — ele gritava e chorava desesperado, sem esperanças. — Me deixe ir embora! Por favor!
            — Olha só... — a voz feminina mudou o seu tom para algo mais melódico enquanto a silhueta se aproximava de Joaquim. — Não são só criancinhas que ficam assustadas!
            O olhar de Joaquim era perturbador – ele estava transtornado com o que viu. O medo e o pavor foram tão intensos que isso lhe causou uma série de sensações incômodas: primeiro, uma forte dor atingiu-lhe o peito e as costas, causando-lhe uma falta de ar; a sua língua começou a enrolar e ele começou a sentir enjoo o braço esquerdo formigava como se milhares de insetos caminhassem por ali; uma vertigem lhe acometeu; e, por fim, Joaquim caiu morto.
            Aos poucos, o porto flutuante da Petrobrás afundou nas frias águas do Rio Amazonas até ancorar na talvegue do rio. A mulher lançou um último olhar ao corpo do jovem e saiu pela porta de aço, que se abriu assim que a silhueta feminina encostou.
            Enquanto isso, Teresa e Alfredo procuravam por Joaquim, mas, como não o encontravam, decidiram acordar Moema, que dormia pesadamente no convés do Neruda:
            — Moema! Acorde — Teresa cutucou o ombro da guia. — O Joaquim... Ele está desaparecido!
            — O quê? — Moema levou as mãos aos olhos, tentando limpar o seu campo de visão. — Como desapareceu?
            — Não sei... — respondeu Teresa, com a voz chorosa. — E se tiver acontecido o mesmo que aconteceu ao Marco?
            Nesse instante, Teresa olhou para a popa da embarcação, esperando achar o corpo de Marco, que não estava mais lá.
            — Marco! — gritou Teresa. — O corpo dele sumiu!
            — Lárguemonos de aqui — decidiu Alfredo, segurando a roda do leme e começando a navegar com o Neruda. — Tengo una familia que cuidar.
            — Largue o timão — Moema proferiu aquelas palavras com um ar de seriedade. — Agora.
            Sem hesitar, Alfredo soltou a roda do leme e sentou-se num banquinho, tremendo-se todo.
            — Mas o que está fazendo, Moema? — questionou Teresa, sem entender a atitude da guia. — Vamos embora logo deste Inferno!
            — Aqui não é o Inferno, mulher — a voz de Moema ficou mais grave e um pouco sibilante. — Aqui é o Paraíso. São vocês, humanos, que fazem disto o Inferno. São vocês, humanos, é quem destroem tudo o que veem pela frente. São vocês, humanos, quem acreditam que são a forma de vida mais inteligente.
            — Por que está falando assim? — Teresa caminhava, de costas e em passos curtos, rumo à proa do barco. — Está querendo assustar a gente?
            — Alfredo já mijou nas calças — zombou Moema. — Mas você... Ah! O seu presente te aguarda!
            — ...Santificado sea tu Nombre; vena a nosotros tu Reino — orava Alfredo, ajoelhado na cabine, de olhos fechados. — Hágase tu voluntad en la tierra como en el cielo.
            — ¡Cállate! — sibilou Moema; os seus olhos estavam inteiramente negros e, da sua pele, começavam a "brotar" escamas. — Yo soy la diosa aquí.
            — Moema, pare com isso! — exigiu Teresa, tentando uma postura mais firme.
            Simples e direta, Moema saltou sobre a mulher e mordeu o seu braço, arrancando um bom pedaço da pele de Teresa:
            — Filha duma puta! — gritou Teresa. — Por que fez isso? Socorro, Alfredo, me ajude!
            — Chega! Cale-se de uma vez por todas! — ordenou Moema, que agarrou a mulher e saltou com ela para dentro das águas do rio.
            No fundo do rio, Teresa lutava com todas as suas forças, o que era inútil já que a adversária era algo sobrenatural. O abraço de Moema foi tão forte que Teresa rapidamente desmaiou e afogou-se, engolindo a água do Rio Amazonas até o seu corpo inflar como um balão.
            Depois disso, Moema escalou de volta o Neruda e posicionou-se diante de Alfredo, que tremia – ele parecia ter Parkinson, de tanto que tremia:
            — Pois bem... — Moema encarou o pescador. — Es tu turno.
            — ¡Por amor de Dios! — Alfredo chorava desesperado. — Nunca hice ningún daño a la naturaliza. Pesco sólo para mi familia a sobrevivir.
            — E quanto a esse bando de exploradores que você trás para o rio? — lembrou Moema, furiosa. — Ya sabes lo que quierem es explorar la naturaleza.
            — ¡Lo juro! — o homem se ajoelhou perante a mulher e suplicou. — Jamás voy a hacer... ¡Sólo te ruego que me dejes ir a mi familia!
            — Tudo bem — concordou Moema, com um sorriso perverso. — Você poderá voltar à sua família. No entanto... A partir de hoje, sempre que algum explorador te procurar, você deixará muito claro que conheceu a Boiúna de perto.
            — ¡Lo haré, lo prometo! — prometeu Alfredo, atrevendo-se a beijar os pés de Moema, que não interferiu.
            — Além disso, na sua volta para o seu vilarejo, você passará em todas as aldeias e vilarejos às margens do Rio Amazonas e dirá o seguinte: — estabeleceu a criatura misteriosa — diga a todos que O Grande Espírito do Rio, a Boiúna, ainda existe e sempre existirá. ¡Ay de quien haga tropezar uno de mi! ¡Ahora, continúe su viaje!
            Assim, Moema, a Boiúna, saltou e mergulhou no rio. Segundos depois, enquanto Alfredo retomava o curso do rio, o homem avistou uma enorme criatura serpenteando na superfície do Rio Amazonas, uma gigantesca cobra de escamas escuras, que refletiam o brilho das estrelas.


domingo, 6 de setembro de 2015

Unspoken: Minha pequena luz, eu vou deixar brilhar

     "Unspoken: A story from the underground railroad" (Sem falas: Uma história da rota clandestina) é uma história do escritor Henry Cole, o qual, sem utilizar a linguagem verbal, conta sobre uma menina que tem a sua coragem testada ao descobrir um intruso escondido na fazenda onde ela vive.

     Numa disciplina da faculdade (Semântica e Discurso da Língua Inglesa), o professor propôs, como atividade, que criássemos uma história escrita para estas imagens. Fiz, então, além da história em língua inglesa, uma versão em língua portuguesa para compartilhar com os leitores do blogue; leiam-na a seguir.




     Durante a Guerra Civil Americana, havia uma família vivendo numa fazenda no interior do estado do Kentucky. A família era constituída por quatro membros: o Velho Macdougal era o proprietário junto à sua esposa, a Sra. Mirth; mas, lá, também viviam a sua sobrinha Dorothy e a sua neta Abigail. A Fazenda do Velho Macdougal era conhecida por todos na região.


     Certo dia, enquanto levava a vaca Mimosa para pastar acompanhada pelo seu bichano Freddy, Abigail avistou alguns homens estranhos montados em seus cavalos entrando na propriedade da fazenda. Eles estavam armados e vestidos com roupas esquisitas; o primeiro da fila segurava uma bandeira com uma espécie de "X" azul desenhado sobre o fundo vermelho.



     Abigail, Mimosa e Freddy ficaram parados assistindo os homens indo embora e percorrendo todo o perímetro da fazenda.
       ― Mas que gente esquisita! ― Abigail comentou com seus amigos animais, que não lhe responderam. ― Pobres cavalos... Não deve ser fácil aguentar aqueles homens com aquelas roupas pesadas.




      Então, a menina deu continuidade às suas tarefas. Todo dia, Abigail ajudava a avó e a tia com os animais da fazenda: pela manhã, a menina levava a vaca Mimosa para pastar; depois, alimentava o galo e as galinhas e, por fim, pegava algumas batatas no armazém para levar à vovó Mirth.
     O que Abigail mais gostava era de alimentar as galinhas. A menina adorava estar rodeada pelos bichinhos. 



      Porém, naquele dia, enquanto alimentava as galinhas, Abigail foi interrompida pela tia Dorothy:
      ― Querida, busque algumas batatas no armazém para mim! ― pediu Dorothy. ― Preciso fazer a sopa do jantar.



      Para a menina, o armazém era um dos lugares favoritos da fazenda: era escuro e carregava um ar misterioso; ela e Freddy brincavam muito ali. A menina largou o saco de milho e correu para o armazém com o seu bichano.



      Enquanto escolhia as melhores batatas para a tia Dorothy, Abigail ouviu algo estranho. O barulho vinha do monte de talos de milho jogado no canto do armazém; as folhas farfalhavam enquanto Freddy cheirava pelas beiradas.
       Preocupada, Abigail se virou para tentar observar melhor o monte de talos.



       Para o horror da menina, havia algo de estranho ali.
     Ela se aproximou mais do monte de talos de milho para tentar enxergar melhor: sim, havia alguém no meio daqueles milhos olhando diretamente para a menina – os olhos eram castanhos e carregavam um misto de curiosidade e pavor.



      A menina, desesperada e assustada, correu para fora do armazém com o bichano Freddy. Ela corria afoita, olhando para trás, com medo de ser seguida.



      Quando chegou à soleira da porta de casa, Abigail largou o cesto com as batatas (que se esparramaram pelo chão!) e parou para recuperar o fôlego. Ela estava totalmente apavorada.



      Mais tarde, quando o jantar já estava servido, Abigail ainda estava preocupada; ela não havia saído mais de casa durante o resto do dia. À mesa, com a sua família, mal se concentrava na oração de agradecimento.



     Então, quando o Velho Macdougal, a vovó Mirth e a tia Dorothy foram dormir, Abigail pegou um lampião e saiu escondida para fora da casa. Na noite fria e escura, a menina carregava um pedaço de pão enrolado num tecido xadrez.



      Com a curiosidade bem maior do que o seu medo, Abigail logo começou a conversar com a pessoa que se escondia ali. Foi quando ela descobriu que era um jovem homem negro:
      ― Por que você está escondido? ― perguntou a menina.
      ― Porque tem gente má querendo me pegar ― respondeu, com o estômago roncando.



      Abigail voltou para casa, ainda escondida, para tentar ajudar aquele homem. Viu a vovó Mirth tricotando (ou dormindo!) e aproveitou o momento.



       Aproveitando que ninguém estava por perto, Abigail conseguiu pegar tudo o que pôde na cozinha: um pedaço de torta, uma batata cozida, um pedaço de bolo de aipim e uma coxinha de frango; embrulhou tudo em pedaços de tecido xadrez e levou para o homem escondido.



      Na manhã seguinte, após passear com a vaca Mimosa, Abigail ouviu um barulho familiar enquanto dava água para o animal; eram barulhos de cascos farfalhando o gramado do pasto.



      Curiosa como sempre, a menina correu para trás do celeiro e bisbilhotou: eram aqueles mesmos homens estranhos do dia anterior, montados em seus cavalos e vestidos com aquelas roupas esquisitas. Os homens aguardavam à frente da casa.



      Abigail se escondeu no porão da casa e aproveitou para espiar através do buraco duma portinhola que dava acesso à cozinha:
      ― Então o senhor não tem nenhum escravo refugiado aqui? ― interrogou um dos homens. ― Sabe que não pode mentir aos Confederados, não sabe?
      ― Olha, realmente, não há ninguém aqui! ― insistiu o Velho Macdougal. ― Tenho uma família.



       ― Então é isso! ― concluiu Abigail, surpresa, falando sozinha em voz baixa. ― Ele é um escravo e está fugindo desses homens maus! Eu vou ajudar ele... Ninguém merece uma vida assim.
      Abigail não sabia muito bem o que era escravidão, mas sabia que não era algo bom; os proprietários das fazendas vizinhas possuíam escravos – e eles eram muito maltratados e mal comiam. Ela não queria essa vida para o seu novo amigo.




      Os Confederados, como haviam-se intitulado, partiram da propriedade insatisfeitos por não terem encontrado o escravo foragido; continuariam as suas buscas pela região.


      Ao anoitecer, Abigail esperou todos irem dormir, pegou novamente um lampião e saiu em direção ao armazém. Ela queria contar ao seu amigo sobre os Confederados que procuravam por ele e dizer que ele estaria seguro ali na fazenda.



      Ao chegar no armazém, contudo, Abigail não encontrou o seu amigo; não havia mais ninguém sob o monte de talos de milho. Havia apenas uma lembrança de que alguém estivera ali: o escravo refugiado havia confeccionado um boneco com as espigas de milho, vestido com uma linda roupa feita com os tecidos xadrez que serviram para embalar as comidas trazidas pela menina.



     Naquela noite, antes de dormir, Abigail olhava para o céu estrelado pela janela do seu quarto; ela desejava que aquele homem pudesse viver uma vida digna, longe de qualquer tortura ou humilhação. A partir dali, ela dormiu com o seu novo amigo (o boneco) todas as noites.


A esperança por um mundo mais humano é como uma chama a qual você jamais pode deixá-la se apagar.