O
conto a seguir é inspirado no massacre ocorrido numa boate em Orlando, cidade
dos Estados Unidos, no dia 12 de junho de 2016. A ideia é provocar a reflexão
sobre o tipo de sociedade que somos e o tipo de sociedade que desejamos ser.
* * *
Às
sete da manhã de domingo, o noticiário informou que um atirador, conhecido como
Almir Khouri, de 30 anos, causou a morte de mais de 50 pessoas e deixou outras
60 feridas. Após um tiroteio, a polícia conseguiu interceptar o atirador, que
acabou morrendo no local. O atentado foi iniciado por volta das duas horas da
manhã e, de acordo com testemunhas, Almir atirou por vários minutos sem parar;
alguns rapazes disseram que o tiroteio chegou a durar uma música inteira. Os
familiares e amigos das vítimas fazem vigília em protesto à violência e à
intolerância em frente à boate; diversos grupos, ao redor do mundo, também
demonstraram solidariedade à causa e indignação com o massacre.
* * *
Horas antes.
Numa
cidade pequena, um dos programas mais prediletos da população jovem é sair para
as boates e para os bares no fim de semana. Com Felipe não era diferente; se havia
algo que agradava a ele, era sair para a balada com os amigos e com o namorado.
Naquela noite de sábado, o jovem de 27 anos preparava-se para uma festa com DJs
convidados numa boate da região central da cidade.
— Boa diversão, filho — desejou Luana, mãe de Felipe. — Leve a sua chave
porque você vai chegar tarde, né?
—
Vou chegar cedo, mãe... Amanhã de manhã — brincou Felipe, dando um beijo no
rosto da mãe e saindo.
Ao lado de fora da casa, havia um Sportage vermelho estacionado em frente
ao jardim:
— E aí, gatão! — era Pedro, o namorado de Felipe. — Até que você foi
rápido desta vez...
—
Engraçadinho — Felipe entrou no carro e beijou o namorado.
Assim
que chegaram à boate, o casal comprou os ingressos e desceu para a pista de
dança. A casa estava lotada – os dançarinos e as dançarinas estavam fazendo uma
apresentação no palco enquanto a multidão delirava. Felipe e Pedro logo
começaram a dançar com alguns amigos que encontraram.
Por volta de uma e meia da manhã,
Pedro demonstrou estar um pouco cansado:
— O que você tem? — perguntou Felipe, enquanto puxava o namorado de
volta para a pista de dança. — Está cansado?
—
Eu trabalhei hoje, lembra? — comentou Pedro, sorrindo e olhando nos olhos de
Felipe. — Mas fica tranquilo; se você ainda quiser ficar, não tem problema.
—
Só mais um pouco? — Felipe deslizou o seu corpo para "embalar" o
namorado na sua dança.
—
Quanto tempo você quiser! — respondeu Pedro, beijando o namorado.
A
música preferida do casal começou a tocar: "I lived", da banda OneRepublic.
* * *
Do
outro lado da cidade, um rapaz de 30 anos havia acabado de sair de casa. Ele
caminhou em passos pesados até o ponto de ônibus, onde embarcou num coletivo
rumo ao centro da cidade.
Hope when you take that jump
You don't fear the fall
Seu
nome era Almir, descendente de afegãos e morador da cidade desde o seu
nascimento. Há alguns meses, Almir vinha demonstrando um comportamento estranho
sempre que via ou ouvia pessoas do mesmo sexo tendo um relacionamento
homoafetivo. Os seus pais até tentaram evitar que ele tivesse qualquer tipo de
contato com tais situações a fim de não deixar o filho estressado.
Hope when the crowd screams out
They're screaming your name
O
ônibus em que Almir estava estacionou em seu ponto final e o rapaz desembarcou.
Ele viu um letreiro néon piscando na escuridão e seguiu para o seu destino.
Enquanto caminhava, Almir mexia na mochila em suas costas tentando arrumar
alguma coisa.
Hope if everybody runs
You'll choose to stay
O rapaz puxou um rifle de dentro da bolsa e mirou nos seguranças da
boate. Mentalmente, levaram apenas cinco segundos para o tiroteio iniciar.
* * *
Felipe ouviu um breve e agudo bipe
do seu relógio de pulso e verificou que já eram duas da manhã.
Hope that
you fall in love
And it hurts so bad
Enquanto se juntava a Pedro no bar
da boate, Felipe ouviu barulhos fortes que pareciam vir do piso superior; eram
como estalidos.
— O que foi isso? — Pedro tentou concentrar-se no estalido. — Você
consegue ouvir?
The only way you can know
You gave it all you had
— É — concordou Felipe. — Eu ouvi.
No
segundo seguinte, o que deu para ouvir foram gritos sobrepostos aos estalidos,
que ficaram mais fortes. De repente, as pessoas que estavam no piso superior da
boate desceram correndo, derrubando quem estava na frente, e gritando:
—
É tiro! Corre! — berravam em coro.
And I hope
that you don't suffer
But take the pain
Felipe e Pedro se olharam e só
pensaram em se agachar. Cada um olhava para um lado enquanto todos corriam pela
pista de dança, parecendo formigas quando têm o seu formigueiro destruído.
I owned
every second that this world could give
O
casal correu para trás do bar e ficou escondido atrás do balcão junto a duas
meninas e outro rapaz. Os cinco tremiam de tanto pavor, mas estavam tão
chocados que não conseguiam emitir nem um grito.
I saw so
many places, the things that I did
Então,
embora estivesse escuro, Felipe conseguiu ver o que acontecia: havia um homem
segurando um rifle e atirando contra todos na boate. Ele mirava e atirava sem
parar, repondo a munição com maestria.
Hope that
you spend your days
And they all add up
— Eu não quero morrer! — Felipe chorou segurando a mão de Pedro com toda
a força.
Enquanto
isso, uma das meninas ao seu lado caiu para trás quando foi atingida por uma
bala no meio da cabeça.
And when that sun goes down
Hope you raise your cup
— Puta que o pariu! — Felipe e Pedro se levantaram imediatamente,
tropeçando nos corpos mortos e feridos que estavam jogados e esbarrando na
multidão que corria pela pista.
A
polícia, enfim, havia chegado. Mas aquilo não fez do pesadelo um sonho – o
tiroteio só aumentou; enquanto Almir vitimava uma multidão no interior da
boate, a polícia atirava contra as paredes do local tentando parar o ataque.
I wish that I could witness
All your joy and all your pain
Pedro deu um sinal para Felipe, mostrando que havia uma possível saída.
Contudo, Felipe não prestou atenção ao sinal; o jovem só conseguiu ver Pedro
subir pelas escadas junto a algumas outras pessoas com toda a pressa.
Felipe
tentou seguir o namorado, mas foi encurralado pelo atirador, que segurava o
rifle e sorria.
But until my moment comes
I'll say I did it all
O jovem se virou e correu para os banheiros da boate, enfiou-se dentro
de uma das cabines e sentou-se em posição fetal, rezando e pedindo para sair
dali com vida. A única coisa que lhe ocorreu foi despedir-se de quem amava,
pois não sabia o que aconteceria.
I owned every second that this world could give
"Fica bem. Eu amo vc!",
foi o que enviou para o celular do namorado.
I saw so many places, the things that I did
"Mãe... Estou preso na boate!",
começou a escrever para a mãe. "Tem
um cara atirando". Em seguida, ele viu a resposta da mãe: "Na boate? Você está bem? Fique aí!".
Então,
um estrondo derrubou a porta do banheiro. Almir havia entrado ali para acabar
com quem ainda estivesse vivo.
"Ele está vindo, mãe!", respondeu
Felipe; "Eu te amo, mãe, te amo!".
Yeah, with every broken bone
I swear I lived
Uma bala cruzou o olho direito de Felipe enquanto outra bala penetrou o
seu peito e atingiu o coração. A última coisa que o jovem conseguiu enxergar
foi o líquido vermelho e viscoso tomar conta do seu corpo até tudo escurecer.