quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Conto: 31 de dezembro de 2070

Um conto distópico sobre o futuro da água; sobre o futuro do ser humano.


27 de outubro de 2070. São Paulo, Brasil.

            Após passar por sérias crises de falta de água e desertificação de boa parte do seu território, o Brasil chegou a um estado de calamidade: os doze por cento de água doce mundial, a qual o país um dia possuiu, acabou; o pouco que sobrou é motivo para guerra.
            A população da cidade de São Paulo chegou a um milhão de habitantes, somando, inclusive, os habitantes da região metropolitana do estado. Isso fez com que as autoridades públicas criassem projetos de Concentrações, onde os habitantes se dividiram de modo a compartilhar os recursos naturais ainda restantes – apenas na região metropolitana de São Paulo foram criadas dez Concentrações.
            Lúcio é morador da megalópole brasileira, e trabalha como ajudante geral numa indústria dessalinizadora na Concentração SP, uma espécie de refúgio, criado para a população remanescente da cidade, que abriga cem mil habitantes. O rapaz vive com seu tio e sua prima, sua única família:
            — Bom dia, tio! — diz Lúcio, assim que chega ao refeitório para o café da manhã.
            — Filho, eu peguei o seu café — diz Pedro, o tio do garoto. — As coisas deste turno estavam acabando, então peguei o seu e da Alice.
            — Obrigado, tio — agradece Lúcio.
            O café da manhã é o mesmo de sempre: uma lata de refrigerante e uma massa assada que lembrava o sabor de pão, embora fosse muito seca. No almoço, sempre é servida uma lata de refrigerante e uma fatia de bife com raspas da casca de árvores. Na janta, o prato é um copo de leite – de vaca ou de ovelha, de acordo com a disponibilidade – e mais um pouco da massa do café da manhã. Durante o dia, cada pessoa tem direito a 500ml de água, os quais são dosados para não passar sede.
            — Meu estômago está queimando... — comenta Lúcio. — Acho que não vou querer o refrigerante.
            Por conta do excesso de refrigerantes, muitas pessoas têm, frequentemente, problemas gastrointestinais.
            — E vai engolir a massa a seco? — questiona Alice.
            A garota, de doze anos de idade, aparenta ter vinte anos ou mais. Sua pele, assim como a pele de toda a população, é cheia de pequenas manchas e enrugada pela exposição ao forte sol. Todos, homens e mulheres, têm os seus cabelos raspados para evitar o acúmulo de sujeira, já que banho com água é permitido apenas uma vez ao ano – exceto pelas autoridades públicas; estes tomam banho toda semana.
            — Tio, o seu aniversário está chegando... — comenta Lúcio. — O que vai querer?
            — Nada, meu filho — responde o homem, sorridente. — Não temos condições nenhuma de comprar presentes. Estou satisfeito com o que tenho. E o meu aniversário é dia 31 de dezembro, o dia em que podemos tomar o nosso banho anual. Tem presente melhor?
            — É, não tem — o jovem dá risada e termina de comer sua refeição.
           
            Os três se levantam e seguem para a praça comunitária. Toda a Concentração é rodeada por uma fortaleza de trinta metros de altura; a razão de tanta proteção é a frequência com que disputas acontecem em busca de recursos naturais – as Concentrações “guerreiam” entre si para tentar conquistar mais recursos.
            Na praça, um grupo de pessoas despejam peças de roupas em um grande container – as roupas são descartadas toda semana, já que não há água para lavá-las. Cinco crianças brincam de pega-pega num banco de areia; todas carecas, com a pele enrugada e o corpo magricela. Do outro lado da rua, um caminhão de areia jogava um pouco de seu conteúdo nas fossas – os esgotos, todos, entupiram, já que a água não circula mais; então, foram cavadas fossas para as necessidades fisiológicas da população. Um pouco longe dali, cinco jovens são arrastados por homens do exército – provavelmente estão sendo retirados da zona de ventilação por não terem condições de pagar pelo ar que respiram.
            — Lúcio! — Sandro, namorado do jovem, chama-lhe. — Está indo para a fábrica?
            — Oi, Sandro! — o jovem beija o namorado enquanto segura suas mãos. — Sim... Vou só deixar o meu tio e a Alice no dormitório.
            — Oi, Sr. Pedro... Oi, Alice! — Sandro acena para os dois.
            — Oi! Filho, não precisa... — diz Pedro. — A Alice me acompanha. Não é?
            — Sim, pai! — responde a garota.
            — ‘Tá bom, então, tio — Lúcio abraça o tio e a prima, e sai com o namorado rumo ao trabalho.
            Assim que os dois chegam à filial da Salíquido, indústria responsável pela dessalinização das águas litorâneas do país, percebem uma grande movimentação na entrada do local.
            Lúcio segue na frente e encontra o seu patrão em uma espécie de palanque:
            — E então? Quem vai querer? — pergunta o homem, carrancudo. — Precisamos de alguém jovem para tal feito.
            — O que será que é isso? — questiona Lúcio.
            — Acho que eu sei... — comenta Sandro esticando o pescoço. — Os líderes mundiais estão selecionando pessoas de cada nação para um projeto meio secreto.
            — “Meio secreto”? — Lúcio fica confuso.
            — É — confirma Sandro. — Sabe aquele Buraco de Minhoca que eles construíram há alguns anos no espaço? Então... Eles enviaram um objeto para esse Buraco e, incrivelmente, o objeto foi encontrado num sítio arqueológico nos Estados Unidos.
            — Tipo uma viagem no tempo? — pergunta Lúcio, surpreso.
            — Isso! — concorda Sandro. — E eles querem fazer isso, agora, com cartas! Querem enviar cartas para o passado, para tentarmos reverter a nossa situação.
            — E por que não enviar uma pessoa? — interroga o jovem, curioso.
            — A pessoa seria estraçalhada, provavelmente — supõe Sandro. — Eles preferem não arriscar. Caso as cartas não cheguem, ao menos não haverá vidas perdidas.
            — Mas, isso não criaria um desastre, caso alguém encontre essas cartas e “mude” o futuro? — pergunta Lúcio.
            — É um risco que teremos de correr — diz Sandro. — Antes consertarem o futuro e a vida na Terra ter um futuro do que continuar assim e sermos extinguidos em mais algumas décadas ou séculos.
            — Vocês! — o patrão dos dois chama a atenção. — Vão se candidatar?
            — Sr., meu tio não pode se inscrever? — pergunta o jovem. — Ele viu tanto... Ele é o mais velho e lúcido da nossa Concentração. Ele nasceu quando as coisas ainda tinham salvação.
            — Jovens, Lúcio — enfatiza o homem. — Jovens. Quantos anos tem o seu tio?
            — Ele faz cinquenta anos em dezembro — responde Lúcio.
            — Não podemos — diz o patrão. — Vai ou não se candidatar? As cartas serão enviadas aos Estados Unidos no último dia do ano.
            — Até lá, eu decido — diz Lúcio, entrando na fábrica com seu namorado.


24 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            — O que você tem, Lúcio? — pergunta Pedro, enquanto vê o sobrinho com a feição tristonha.
            — Tio, ainda não decidi sobre aquela carta — responde o jovem. — Eu não conheço nada, tenho só vinte anos... Você devia escrevê-la... É o mais velho aqui da Concentração.
            — O papai deve ser o mais velho do Brasil — brinca Alice.
            Os quatro riem; Sandro está almoçando com a família.
            — O Lúcio tem toda a razão — concorda Sandro. — O senhor sabe como as coisas eram antes de chegar a este ponto; algo que nem os líderes atuais viram.
            — Não sei por que esse negócio de escolher pessoas mais novas para cargos de liderança — comenta Lúcio, insatisfeito.
            — Sangue novo é bom, filho — rebate Pedro.
            — Já sei o que podemos fazer! — sugere Sandro.
            — Então diga! Temos só uma semana para fazer isso — apressa o jovem.
            — Sr. Pedro, pense no que escreverá — pede Sandro. — Vou planejar tudo e trarei a carta na semana que vem. Sua carta vai para aquele Buraco de Minhoca.


31 de dezembro de 2070. São Paulo, Brasil.

            O dia 31 de dezembro não é mais comemorado como a véspera do Ano Novo no Brasil; é comemorado apenas como o Dia Anual do Banho, um dia em que toda a população teria direito a dez minutos de banho com água.
            Os preparativos para a data na Concentração SP estão a todo vapor: as autoridades já disponibilizaram os chuveiros em local estratégico, próximo à Praça Central; o exército já está a posto, a fim de evitar problemas com os cidadãos que ultrapassassem o tempo limite no chuveiro.
            Lúcio, Pedro e Alice ainda estão em seu dormitório quando Sandro chega com uma surpresa:
            — Conseguiu? — pergunta Lúcio, ansioso.
            — Meus pais me deixaram isto aqui — Sandro mostra um envelope branco.
            — Um envelope de carta? — questiona Pedro. — Mas o que tem nele?
            — Dentro dele — corrige Sandro, abrindo o envelope.
            De dentro do envelope, Sandro retira um aparelho tecnológico que já não é utilizado há quase três décadas por determinação dos líderes mundiais; um tablet.
            — Um tablet! — conclui Pedro.
            — Para quê serve isso? — questiona Alice, achando o objeto esquisito.
            — É uma espécie de computador — responde Pedro.
            — Já vi o meu chefe com algo parecido, mas bem menor — diz Lúcio.
            — Era muito utilizado até trinta anos atrás — revela o tio do jovem. — Mas as autoridades decidiram nos isolar de tal tecnologia, talvez por medo, não sei. Mas isso pode se conectar com outros computadores ao redor do mundo.
            — Sim — confirma Sandro. — E eu já sei como e em qual computador iremos nos conectar.
            — Como assim? — questiona Lúcio.
            — Quando meus pais me deram isto, eles pediram para que eu usasse apenas numa situação de extrema importância, e deixaram instruções de como usar — explica o namorado de Lúcio. — Como há poucos destes por aí, é fácil conectar-se a outros.
            — E você vai conectar a quem? — pergunta Pedro.
            — À presidente — revela Sandro. — À presidente do Brasil. Tenho certeza de que, ao ver sua carta, ela vai elegê-la como a carta do Brasil.
            — Ótimo! — diz Lúcio. — Tio, você sabe escrever nisso aí? Precisamos achar um lápis...
            — Não! — Pedro solta um riso. — Não preciso de um lápis.
            Ao ligar o objeto e começar a escrever numa tela digital, os jovens ficam pasmos com a habilidade de Pedro; mais pasmos ainda com a funcionalidade do objeto.
            — Pronto — diz Pedro, devolvendo o tablet ao namorado do sobrinho.
            — Vou enviar — Sandro digita alguns botões e envia o documento criado por Pedro à presidente do Brasil, uma mulher que havia assumido o posto há pouco mais de dois anos, e estava tentando mudar o país e dar melhores condições à população remanescente. — Pronto. Agora é só torcer!
            Os quatro seguem para a Praça Central, onde tomarão o seu banho anual.
            Lúcio tem esperanças de que tudo aquilo mudaria; ele sabe que poderá esquecer toda a vida que teve ou, até mesmo, simplesmente deixar de existir. Mas ele quer dar um futuro à vida na Terra.
            Ao término do dia, os quatro se reúnem no dormitório e comemoram o dia. Comemoram, também, pois em um pronunciamento público – assistido pelas telas na Praça Central – a presidente acabou escolhendo a carta de Pedro para enviar ao Buraco de Minhoca.


Abril de 2002. São Paulo, Brasil.

            O telejornal de alcance nacional anuncia na televisão sobre uma carta encontrada numa expedição ao Mar Morto. A carta data o ano de 2070, e relata a vida no futuro, com a possível falta de água e outros recursos naturais:
            “Olá a todos. Meu nome é Pedro, mas falo por toda a população de meu país, Brasil. Estamos no ano de 2070, no mês de dezembro, no dia 31. Hoje, completei os meus cinquenta anos de cidade – e jamais pensei que chegaria a tal. Sou, provavelmente, o homem mais velho do país e, mesmo com essa idade, aparento ter mais de oitenta anos.
            Lembro dos meus cinco anos de idade, quando as coisas ainda não haviam chegado a tal ponto. Havia muitas árvores nos parques e nas praças, o fundo do orfanato em que eu vivia tinha um lindo jardim florido e, lá, eu gastava quase uma hora no banho. Agora, não temos mais água. Podemos tomar banho com água apenas uma vez ao ano, e um banho de dez minutos; nos outros dias, nos limpamos com toalhas umedecidas em azeite mineral. Por conta disso, todos precisamos raspar nossos cabelos para evitar o acúmulo de sujeira.
            Meu pai adotivo lavava o carro com a água da mangueira; hoje, as crianças nem acreditam que utilizávamos a água para isso. Também me lembro de muitos cartazes e outdoors dizendo ‘Cuide da água’, mas ninguém nunca ligou pra isso – mesmo com os reservatórios baixos, achávamos que a água jamais acabaria. Agora, os rios, barragens, lagos e mananciais que não estão esgotados, estão contaminados.
            Antigamente, todo mundo dizia que a quantidade ideal de ingestão de água era de oito copos por dia, isso para um adulto. Hoje, na minha idade, bebo apenas meio litro por dia, quando é possível. Por conta disso, a aparência das pessoas é horrível: todos muito magros, enrugados por causa da desidratação, manchas na pele causadas pelos raios ultravioletas – a camada de ozônio está destruída. As principais causas de morte são as infecções gastrointestinais (bebemos uma grande quantidade de refrigerante em nossas refeições diárias, já que é uma bebida sintética, tal qual nossos alimentos), dermatológicas e urinárias.
            Aqui no Brasil, houve uma grande desertificação.
            Nossas roupas são descartáveis, pois não há como lavá-las, então produzimos muito lixo. E tivemos de voltar a utilizar as fossas porque as redes de esgoto estão entupidas já que a água não circula mais.
            O mercado de trabalho teve uma mudança tremenda: muitos estão desempregados e, quem trabalha, trabalha apenas nas indústrias de dessalinização, que pagam com água potável em vez de dinheiro. Como se isso já não bastasse, muitos trabalhadores têm seus baldes de água roubados no caminho de volta para casa ao passar por ruas desertas.
            Não há como fabricar água, nem mesmo pela umidade do ar. O oxigênio está degradado pela desflorestamento – e isso acabou diminuindo a capacidade intelectual das novas gerações. Houve, também, alteração genética; os cientistas explicaram que as crianças que nascem com mutações e deformações ficaram assim por uma mutação nos espermatozoides.
            Não recebemos ajuda do governo; ou melhor, não recebíamos. O governo atual vem tentando mudar a situação e agir mais pela população, buscando melhores condições de sobrevida. Mas ainda há o exército, que abusa da autoridade e acaba cobrando até o ar que respiramos: quem não pode pagar por isso, é retirado das áreas ventiladas, as chamadas Concentrações, e acaba morrendo no deserto árido. A expectativa média de vida é de trinta e cinco anos de idade.
            Aqui em São Paulo, estamos divididos em dez Concentrações; mas algumas guerreiam entre si para conseguir mais água. A população da região metropolitana chegou a um milhão de habitantes; e continua caindo.
            Alguns países são protegidos ferozmente por suas Forças Armadas, porque conseguiram manter focos de vegetação e de água; e isso é motivo para guerra, certamente. Aqui no Brasil, contudo, quase não há árvores porque quase nunca chove e, quando chove, o pH é muito ácido.
            Sempre que minha filha me pede para contar-lhe histórias da minha infância, eu digo o quão lindos eram os parques, os bosques, a chuva, as flores. Falo, até mesmo, da alegria que tínhamos em entrar debaixo do chuveiro num dia quente; sobre como era bom pescar e nadar nos rios; sobre como era bom beber água à vontade; sobre como as pessoas ainda tinha saúde.
            Quando ela me pergunta por que a água acabou, não consigo não me sentir culpado, pois sou da geração que ainda tinha água e não soube cuidar dela. Não levamos em conta o número de avisos que nos deram. Hoje, nossos filhos e netos pagam um alto preço e, sinceramente, não acredito que haverá vida na Terra em algumas décadas ou, no máximo, em um século. Chegamos a um ponto irreversível.
            Se, algum dia, esta carta chegar até vocês, do passado, pensem e reflitam sobre os recursos os quais possuem. Não é o planeta Terra que precisa de atenção, somos nós. Nós é quem precisamos de atenção e de estar atentos aos recursos que o planeta nos oferece. O planeta vai continuar existindo; nós, seres vivos, não. Eu queria poder voltar no tempo, eu mesmo, e dar este aviso; como não posso, espero que vocês consigam reverter essa situação. Obrigado!


31 de dezembro de 2020. São Paulo, Brasil.

            Numa casa de parto da Grande São Paulo, um casal mal vestido comemorava a chegada de seu filho:
            — Márcio, olhe como ele é lindo! — diz a mulher, com lágrimas nos olhos.
            — É uma pena que tenha nascido em meio a esta crise que estamos passando — comenta Márcio, acariciando o bebê.
            — Teremos mesmo de colocá-lo num orfanato? — questiona a mulher.
            — Patrícia, meu amor... — Márcio dá a mão para Patrícia. — Não temos água para sustentar esta criança, como ela crescerá? Os orfanatos ainda são mantidos pelo governo e recebem toda a ajuda necessária. Lá, ele poderá crescer forte e saudável.
            — Por que não soubemos cuidar de tudo o que Deus nos deu? — questiona a mulher, consternada.
            — Meu amor, será o melhor para ele — diz Márcio. — Não se culpe. Como ele vai se chamar?
            — Pedro — responde Márcia. — Ele será forte como uma rocha, tão duro quanto uma pedra... Porque ele vai precisar dessa força para sobreviver neste mundo sem água. E, por isso, o nome dele vai ser Pedro.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Conto: A Bela Adormecida

O conto "Sleeping Beauty", de Charles Perrault (um escritor e poeta francês do século 17, o pai da Literatura Infantil), traduzido por Júnior Gonçalves.



            Era uma vez, há muito tempo atrás, um rei e uma rainha que tinham um desejo muito simples.
            — Ah! — eles se lamentavam. — Se pudéssemos ter um filho...
            Mas eles nunca conseguiam ter.
            Certa vez, enquanto a rainha se banhava na lagoa, uma rã saltou para fora da água.
            — O seu desejo será realizado — disse a rã, com a pele brilhante, fora da lagoa. — Você terá uma filha em menos de um ano.
            Aquilo que a rã disse aconteceu; a rainha teve uma menininha tão linda que o rei mal podia se conter de tanta alegria, e ele organizou uma grande festa. Ele não convidou apenas os seus familiares, os amigos e os conhecidos, mas também convidou as feiticeiras do reino, pois elas poderiam se entusiasmar e serem gentis criança. Havia treze delas em todo o reino; era tradição que o anfitrião da festa enviasse pratos aos convidados, mas, como ele enviara apenas doze pratos de ouro, uma delas não pôde ir.
            O banquete foi servido com muita pompa e, ao término da festa, as feiticeiras deram à bebê os seus presentes mágicos – uma concedeu virtude, outra concedeu beleza, a terceira concedeu riqueza, e assim foram dadas todas as coisas do mundo que se pode desejar.
            De repente, quando onze delas já haviam feito os seus votos, a décima terceira chegou. Ela queria se vingar por não ter sido convidada e, sem cumprimentar ou olhar para ninguém, ela gritou com uma voz estrondosa:
            — A filha do rei, em seu décimo quinto aniversário, vai se espetar na agulha de uma roca e cairá morta — sem dizer mais nenhuma palavra, ela se virou e deixou o local.
            Todos ficaram chocados. Mas a décima segunda feiticeira, que ainda não havia feito os melhores votos, deu um passo adiante e, por mais que não pudesse desfazer a maldição, ela poderia torná-la menos arrasadora.
            — Não será a morte que causará a queda da princesa, mas um sono profundo de cem anos — disse a feiticeira.
            O rei, aceitando o cruel destino de sua amada filha, ordenou aos guardas do reino que cada roca de todo o reino fosse queimada. Entretanto, os votos concedidos pelas feiticeiras foram concretizados com totalidade na vida da menina; ela era tão bela, virtuosa, de boa índole, e inteligente, que todo mundo que a conheceu amou-lhe no primeiro momento.
            No dia de seu aniversário de quinze anos, contudo, o rei e a rainha não estavam no castelo, e a donzela ficou sozinha ali. Ela passou por todos os lugares, passava pelas salas e pelos quartos, do jeito que ela gostava de fazer; e, por último, chegou a uma velha torre. Ela subiu pela estreita escada em espiral até chegar a uma porta bem pequena. Havia uma chave enferrujada na fechadura e, assim que a virou, a porta se abriu. Dentro da saleta, havia uma senhora com uma roca de fiar, ela estava ocupada tecendo linho.
            — Bom dia, minha senhora — cumprimentou a princesa. — O que faz aqui?
            — Estou tecendo — respondeu a senhora, virando a cabeça.
            — Mas que coisa é essa que faz barulho enquanto faz giros tão alegres? — questionou a menina, sentando-se diante da roca para tecer também.
            Ela mal tocou na roca quando o feitiço se concretizou, e ela espetou o dedo na agulha.
            No momento exato em que ela sentiu a agulha, ela se deitou sobre a cama que havia no quartinho, e caiu em um sono profundo. O seu sono se propagou por todo o palácio, e o rei e a rainha, que haviam acabado de chegar ao salão do castelo, ficaram sonolentos, e o mesmo aconteceu com toda a corte. Os cavalos, no estábulo, também dormiram, assim como os cachorros, no jardim, os pombos, no telhado, as moscas, nas paredes. Até mesmo o fogo, que estava ardente na lareira, ficou quieto e adormeceu. A carne que assava deixou de assar. O cozinheiro, que ia até o serviçal para puxar o seu cabelo, porque ele havia-se esquecido de algo, deixou-o ir e caiu no sono. O vento diminuiu, e as folhas das árvores de trás do castelo não se mexeram mais.
            Uma cerca de espinhos começou a crescer em volta do castelo, e ficava mais alta a cada ano que passava; cresceu tanto que, no fim, cobriu todo o castelo, e a construção não podia mais ser vista, nem mesmo a bandeira no alto do telhado. Mas a história da bela adormecida Rosa, como ficou conhecida, se espalhou pelo reino, e de vez em quando os príncipes vinham e tentavam passar pelo grande cerco de espinhos para entrar no castelo. Mas todos descobriram que era impossível, porque os espinhos lhes agarravam, como se fossem mãos; e, uma vez pegos pelos espinhos, jamais conseguiam se soltar novamente, morrendo de forma miserável.
            Depois de muito tempo, um príncipe veio até o reino e ouviu um senhor falando sobre o cerco de espinhos, e sobre um castelo que estava no meio dos espinhos. Ele ouviu que uma linda e maravilhosa princesa, chamada Rosa, havia caído num sono de cem anos, e que o rei, a rainha e toda a corte também foram afetados pelo sono. Ele também ouvira de seu avô que muitos reis e príncipes já haviam ido até o cerco de espinhos para tentar passá-lo, mas todos foram perfurados pelos espinhos rapidamente e tiveram mortes lamentáveis.
            O jovem, então disse:
            — Eu não tenho medo. Eu vou e verei a linda Rosa.
            O velho poderia persuadi-lo, como tentou, mas o príncipe não lhe deu ouvidos.
            Nessa época, os cem anos já haviam se passado, e o dia em que Rosa acordaria novamente havia chegado. Quando o príncipe chegou perto do cerco de espinhos, estava repleto de lindas flores, que se afastavam umas das outras por vontade própria, deixando o rapaz passar sem se machucar. Após isso, elas fecharam novamente o caminho atrás dele como um cerco. No jardim do castelo ele viu os cavalos e os cães deitados, dormindo. No telhado, os pombos estavam pousados com suas cabeças sob as asas.
            Assim que o príncipe entrou no castelo, as moscas dormiam nas paredes, o cozinheiro estava na cozinha, ainda esticando sua mão para agarrar o garoto, e a criada estava sentada perto da galinha preta que estava prestes a depenar.
            Ele foi ainda mais adiante. No grande salão, o príncipe viu toda a corte deitada, dormindo, e próximo ao trono estavam deitados o rei e a rainha. Depois, ele prosseguiu e tudo estava tão quieto que dava para ouvir a própria respiração. Por último, ele foi até a torre, abriu a porta e entrou no quartinho onde Rosa dormia.
            Lá estava ela, deitada; tão linda que ele mal podia tirar os seus olhos dela. Ele se aproximou e deu-lhe um beijo. E logo que ele a beijou, Rosa abriu os olhos e acordou, lançando a ele um olhar agradável.
            Os dois desceram juntos. O rei acordou, e depois a rainha, e depois toda a corte. Todos se olhavam admirados. Os cavalos se levantaram e se sacudiram no estábulo; no jardim, os cães saltaram e abanaram os rabos; os pombos ergueram suas cabeças no telhado e olharam em volta, voando para o reino; as moscas voltaram a rastejar-se na parede novamente; o fogo na cozinha se acendeu e voltou a queimar a carne; as juntas de todos voltaram a dobrar e ranger de novo; o cozinheiro deu um tapa na orelha do serviçal, que deu um berro; e a empregada terminou de depenar a galinha.
            Com muito esplendor, o casamento do príncipe com Rosa foi celebrado e eles viveram felizes para sempre.


Fonte:

Sleeping Beauty. FairyTales.biz. Disponível em: <http://www.fairytales.biz/charles-perrault/sleeping-beauty.html>.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Conto: Mais bela do que eu? - FINAL

O conto a seguir é uma adaptação que fiz para o conto "Branca de Neve e os Sete Anões".

Beatriz é uma jovem de dezoito anos que perdeu o pai recentemente. Com isso, a Kingdom - grande empresa do ramo de segurança - foi deixada para ela e sua madrasta, Milena di Aba. Milena é uma modelo conhecida internacionalmente por sua beleza exuberante, mas está prestes a travar um embate com sua enteada, que está ganhando o título de mulher mais bela do mundo.

Leia a Parte 1, a Parte 2, a Parte 3 e a Parte 4 da história.


            Os sete irmãos estavam alegres na volta para casa: cantarolavam em coro na rua. Ao chegar na porta de casa, notaram a porta entreaberta e logo correram para dentro, onde se depararam com o pior.
            — Não! — gritou Carlos, com certo ar dramático.
            — Beatriz! — Geraldo logo correu e segurou o pulso da menina.
            Em seguida, o mais velho dos irmãos começou a pressionar o peito da menina com as duas mãos, como uma massagem cardíaca. Ele estava desesperado.
            — Vou chamar um médico! — disse Danilo, em meio a espirros.
            — Emerson, André e Carlos, ajudem-me a colocá-la no sofá — pediu Geraldo.
            Com muita dificuldade, os quatro anões conseguiram levar o corpo de Beatriz até o sofá. Enquanto isso, Breno trazia um copo de água, inesperadamente.
            — Breno, o que é isso? — perguntou Felipe, encostado no outro sofá, caindo de sono.
            Breno fez um gesto, indicando Beatriz.
            — Ela está morta, sua besta! — resmungou Emerson, muito bravo.
            Breno fez uma cara triste e afundou o rosto em suas mãos, chorando.
            — Acalme-se, moço — implorou André, tentando manter o ânimo dos irmãos. — Não podemos fazer mais nada!
            — Droga! — gritou Emerson. — Quem fez isso a ela?
            — Será que foi um ladrão? — Carlos fechou as cortinas. — É melhor chamar a polícia, também!
            — Não! Não foi um ladrão — disse Geraldo. O homem vinha da cozinha com uma forma na mão; era a torta de maçã feita por Faustina. — A menina foi encontrada no chão da cozinha. Esta torta estava em cima da mesa, e têm dois pratos lá; um vazio e um com um pedaço de torta mastigada.
            — Ela foi envene... — disse Danilo, antes de espirrar. — Nada!
            — A madrasta dela! — concluiu Emerson. — Ora... Se eu pegar aquela mulher!
            — Não... — interveio Geraldo. — Não podemos mais fazer nada! Infelizmente, ela está morta... Se formos atrás da madrasta da Beatriz, poderemos sofrer as consequências.
            — Não ligo pra isso, Geraldo! — contestou Emerson. — Vamos logo!
            Então, o som de sirene surgiu e ficou ensurdecedor no momento. Geraldo correu para fora e recebeu a equipe médica: um jovem médico e o motorista.
            — O que houve aqui, senhores? — questionou o médico.
            — Doutor, ela foi envenenada! — contou Emerson.
            Geraldo o fulminou com o olhar. Agora teriam que contar sobre a madrasta da menina.
            — Envenenada? Isso é coisa séria! — disse o médico, enquanto examinava a jovem. — Fábio, ajude-me a colocá-la na maca.
            O motorista e o médico remanejaram a jovem e correram com ela para a ambulância.
            — Ei, doutor! — chamou Geraldo. — Para onde vão levar a moça?
            — Para o hospital, oras! — respondeu o médico. — Quem de vocês irá acompanhá-la?
            — Todos nós, doutor — respondeu Emerson.
            Antes que o médico e o motorista pudessem reclamar ou contestar, os sete irmãos entraram e se arrumaram na ambulância. O carro deu partida e correu para o hospital mais próximo.
            Já no hospital, as pessoas se assustaram quando sete anões saíram de uma ambulância ao lado do motorista, do médico e de uma menina desfalecida na maca.
            — UTI! — gritou o médico para a equipe do hospital.
            As portas, então, fecharam-se diante dos sete homens. Apenas o médico e o restante da equipe puderam entrar na área restrita junto ao corpo de Beatriz.
            — E agora? — perguntou Emerson, impaciente.
            — Esperaremos — respondeu Geraldo, sentando-se num banco.
            Cerca de três horas depois, e mais de cem voltas dentro da sala de espera, os anões avistaram o médico passar pela porta:
            — Doutor! — gritou Geraldo.
            — E a Beatriz? — perguntou Danilo, segurando o espirro.
            — Quem são vocês? — perguntou o médico. — Aquela moça é Beatriz Nevada, não é?
            — É ela mesma, doutor — confirmou Geraldo. — Ela apareceu na nossa casa ontem, pedindo ajuda. Deixamos ela ficar... A menina parece ser muito boazinha!
            — E é... — comentou o médico.
            — Hein? — estranhou Emerson.
            — Eu a reconheci — disse o médico. — Estudamos juntos no ensino médio. Quer dizer... Eu estava à frente dela. Mas ficamos amigos. O pai dela faleceu recentemente... Tentei voltar a falar com ela, mas não consegui. Quem a envenenou? Precisamos chamar a polícia.
            — Doutor, não foi a gente — comentou Carlos. — Não queremos problemas.
            — Ela está fugindo de alguém... — revelou Emerson. — E acho que esse alguém descobriu onde ela estava se escondendo e invadiu a nossa casa enquanto estávamos trabalhando. Foi a madrasta dela!
            — Milena di Aba — concluiu o médico. — Como? Ela não colocaria sua carreira em risco...
            — Acredite no que quiser — ameaçou Emerson. — Podemos ver a menina logo?
            — Claro que não! — respondeu. — Olhem... Ela está na UTI. Está em estado grave.
            — Então está viva? — questionou André, sorrindo.
            — Por enquanto — disse o médico. — A substância do envenenamento simulou a morte dela; fez com que a frequência cardíaca e respiratória se reduzisse a ponto de não ser percebida. Com isso, o corpo dela esfriou. Tivemos de colocá-la numa câmara.
            — Ela está encaixotada? — questionou Carlos.
            — Não é bem isso... — explicou o médico. — É uma espécie de “caixa” de acrílico que impede organismos nocivos à saúde de entrarem em contato com ela, e também faz a manutenção da temperatura corporal.
            — Doutor Reis, o paciente 101 entrou em choque — anunciou uma voz mecânica. — Favor, dirija-se à UTI.
            — Preciso ir, gente! — disse o médico. — É a Beatriz!
            — O quê? — Geraldo ficou em choque.
            Derrubando a segurança, os sete homens correram atrás do médico. Enquanto o médico vestia uma roupa esquisita para entrar na UTI, os homens ficaram vendo de fora – a sala tinha paredes de vidro, então era possível ver o seu interior sem problema algum.
            O doutor Reis – como havia sido chamado no anúncio – foi até o leito de Beatriz, que era o único daquela UTI, e começou a fazer manobras de ressuscitação.
            Breno, inquieto, começou a bater no vidro. Os outros começaram a chorar. Até mesmo Emerson, o zangado da turma, deixou as lágrimas caírem.
            Reis suava enquanto tentava trazer Beatriz de volta à vida. Ele não desistiria, não podia desistir. Beatriz era o seu primeiro amor; foi quem mais amou durante a adolescência, mas não puderam namorar porque a madrasta da menina dizia que namoros não “davam em nada”. Agora, por obra do destino, ou do acaso, a jovem estava ali, morrendo em suas mãos.
            O médico viu que não tinha saída; era inútil persistir. Percebendo que não havia seguranças ali, ele permitiu que os sete homens entrassem no leito para se despedirem da moça. Geraldo foi o primeiro, deu um beijo na caixa transparente que envolvia Beatriz; Felipe, sonolento, passou a mão no acrílico e suspirou; Danilo segurou o espirro naquele momento, e inspirou profundamente, tentando segurar o choro; Carlos não tinha o que encenar, não ali, então pegou uma flor na entrada da UTI e deixou-a sobre a câmara de acrílico; Breno quase pronunciou um som ao se aproximar da caixa, mas deixou-se levar pelo choro e saiu dali; André deu seu último sorriso à Beatriz, desejando-lhe paz e tranquilidade; Emerson ficou de longe vendo tudo, ele não queria se despedir porque não aceitava aquilo.
            — Rapazes, preciso que esperem lá fora — pediu Reis. — Vou terminar o procedimento para liberar o corpo. Fiquem lá, que eu já vou até vocês.
            Os sete anões saíram da UTI e seguiram rumo à saída do hospital, quando foram pegos pelos seguranças e levados à delegacia.
            Enquanto isso, o médico admirava Beatriz. Aquela pele negra, macia; o cabelo ondulado; ela era linda. Enquanto abria a câmara de acrílico, Reis fitava a jovem. Foi, então, que ele fez o que não devia fazer: beijou a moça. Foi um selinho, mas o médico beijou a paciente – morta.
            Ele chorou em seguida, mas não queria passar a vida sem ter ao menos tocado os lábios da menina que mais tinha amado. Foi aí que as coisas mudaram. De repente, o monitor cardíaco de Beatriz reagiu. Pequenas ondas começaram a cintilar no LED, até formarem uma bela sinfonia cardíaca. O coração da jovem voltou a bater, e ela voltou a respirar.
            — Enfermeira! — gritou o médico. — Enfermeira!
            Uma equipe entrou no local e auxiliaram o médico com o que ele pediu.
            Seis horas depois, já com os sete anões de volta ao hospital – graças ao doutor Reis, que havia ido até a delegacia e esclarecido a situação ao delegado –, o médico seguiu para o quarto em que estava a jovem Beatriz. Por algum milagre, a menina havia voltado da morte e estava melhor do que antes de ter entrado, como se nunca lhe tivesse  acontecido nada.
            — Bom dia! — Reis entrou no quarto.
            — Bom dia, doutor! — respondeu Beatriz. — Onde estou? O que houve?
            — Você está no hospital — contou o médico. — Você foi envenenada, e seus amigos trouxeram você até aqui. Você quase morreu, ou talvez tenha morrido, mas surpreendeu a todos.
            — Eita... — a menina ficou surpresa. — Sério mesmo?
            — Sério — afirmou o médico. — Posso permitir as visitas?
            — Claro! — disse a jovem, sorrindo.
            Assim, o médico abre novamente a porta e, então, os sete irmãos entram no quarto, todos sorridentes.
            — Beatriz! — disseram em coro, correndo e se amontoando em volta da menina.
            — Obrigada, rapazes! — agradeceu a menina. — Ainda não sei exatamente o que houve, mas obrigada!
            — Foi a sua madrasta... — disse Emerson, cansado de guardar as coisas. — Aquela mulher é o diabo! Como consegue envenenar alguém? Mas eu não desisti de você, mesmo quando o seu amiguinho aí já tinha desistido.
            — Amiguinho? — estranhou Beatriz. — Quem?
            — Não me reconheceu, mesmo? — questionou Reis.
            — Ai, meu Deus! — Beatriz teve uma rápida lembrança. — James! Você virou médico?
            — Sim! — o médico não resistiu e abraçou a jovem. — É bom tê-la viva!
            Ele deu um beijo tão forte na bochecha dela, que ela percebeu algo diferente.
            Depois de muita risada e comemoração, os sete anões foram para casa, onde esperariam pela volta de Beatriz, que receberia alta naquela tarde.
            — James... — chamou Beatriz.
            — Sim? — o médico deixou seu caderno de lado e olhou para a jovem.
            — Não lembro muito bem o que houve depois de acordar... — comentou a menina. — Quero dizer, da primeira vez, quando voltei. Eu apenas não consegui abrir os olhos, mas senti e ouvi tudo.
            — Do que está falando? — ele não quis parecer invasivo.
            — Vem aqui... — pediu Beatriz.
            — O que foi? — perguntou o médico, sentado ao lado da menina.
            Então, Beatriz o agarrou e o beijou; não um selinho, mas um longo beijo.
            — Ei! — disse ele, após se recompor. — Calma aí, donzela! O que foi isso?
            — Algo que eu tinha vontade de fazer desde o ensino médio — revelou. — James, eu senti você me beijando quando eu voltei. Foi você!
            — Beatriz, desculpe se não devia... — suplicou ele. — É que eu sempre fui louco por você, mas...
            — Case comigo! — disse a jovem, direta.
            — Como? — estranhou o médico.
            — James, nós convivemos por quatro anos naquela escola... Éramos namorados sem nunca ter-nos beijado — concluiu ela. — A gente sabe que o sentimento um pelo outro é bem maior do que a gente acha. Por que deixar passar mais uma vez?
            — Mas e sua madrasta? — perguntou, preocupado.
            — Vou dar queixa dela na polícia — respondeu Beatriz. — Da mãe dela, também. Provas e testemunhas não faltam!
            — Eu amo você, Beatriz Nevada! — confessou James.
            — Eu amo você, James Reis! — disse a jovem. — Agora, leve-me embora daqui!
            Assim, os dois saíram do hospital.
            Beatriz e James chegaram à casa dos sete anões e contaram a novidade, que deixou todos atônitos pela festa que viria. Depois disso, todos foram à delegacia com as provas e os relatos da tentativa de assassinato de Beatriz pela madrasta. Pouco menos de três meses depois, os dois se casaram e foram morar na mansão que era do pai de Beatriz.
            Milena di Aba e sua mãe, Faustina, foram condenadas à prisão perpétua e foram enviadas ao mesmo presídio, em uma cidade muito quente. A modelo tentava subornar os agentes carcerários, inutilmente, pois esses não ligavam para o que ela tinha a oferecer: a mãe. Victor Vitral é quem visitava a condenada e levava alimento; o homem acabara ficando com a imagem suja por trabalhar para uma assassina. Arthur, o segurança particular da megera, ainda estava desaparecido; ninguém sabia sobre o seu paradeiro.
            — Senhora Milena di Aba, visita! — anunciou o carcereiro, abrindo a cela para que a mulher saísse. — Sem gracinha, certo?
            Milena mostrou um sorriso sem graça ao agente.
            — Vai, entre aí! — o agente empurrou a mulher para dentro de uma sala.
            — Mas que inferno! Não se faz mais homens como antigamente! — resmungou a mulher, enquanto se sentava. — A quem devo a honra de uma visita?
            — Oi, Milena — a voz masculina, do outro lado da mesa, exibiu o seu dono ao virar a cadeira de frente para a modelo. — Há quanto tempo, não é?
            — Você! — disse Milena, quase sem fôlego. — O que faz aqui?
            — Digamos que agora eu quem estou numa posição alta — disse o homem. — E você vai trabalhar para mim.
            — Jamais! — decretou a mulher.
            — Então vai ficar presa aqui até morrer? — questionou. — Vai deixar os seus ossos de lembrança aos futuros carcereiros? Veja, eu já negociei a sua saída. A sua, e a de sua mãe.
            — Ora, ora... — sorriu Milena. — Eu ficarei honrada em trabalhar para você!
            — Então volte para sua cela e arrume suas malas — disse o homem. — Avise sua mãe que ela será minha esposa. Gosto dela.
            — Que mau gosto! — opinou Milena.
            — Não pedi sua opinião — respondeu ele. — É bom você me respeitar, pois será minha afilhada! Serei como um pai para você.
            — Só uma dúvida... — desejou a megera.
            — Ok — concordou ele. — Diga.
            — Por quê? — perguntou ela, curiosa. — Por que isto?
            — Quero ter o prazer de esmagar você, Milena di Aba — contou o homem. — Quero saber como o gato se sente ao pegar o rato. E eu tenho tudo planejado para você, todo o seu futuro. Adotei Mirella, também; ela será sua irmãzinha.
            — Não acredito nisso! — esbravejou a mulher. — Ela é só uma criada!
            — E você também será — prometeu ele. — Mirella é muito mais bela do que você. Você ainda vai sofrer tudo o que fez as pessoas sofrerem, Milena. Até logo!
            — Não! Ninguém é mais bela do que eu! — gritou Milena, vendo o homem ir embora. — Volte aqui! Arthur, volte aqui!

            Mas ele não voltou. Arthur, o antigo segurança particular de Milena, estava de volta, e estava cheio de planos para a sua querida ex-patroa. Milena mal sabia o que esperava por ela.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Conto: Mais bela do que eu? - PARTE 4

O conto a seguir é uma adaptação que fiz para o conto "Branca de Neve e os Sete Anões".

Beatriz é uma jovem de dezoito anos que perdeu o pai recentemente. Com isso, a Kingdom - grande empresa do ramo de segurança - foi deixada para ela e sua madrasta, Milena di Aba. Milena é uma modelo conhecida internacionalmente por sua beleza exuberante, mas está prestes a travar um embate com sua enteada, que está ganhando o título de mulher mais bela do mundo.

Leia a Parte 1, a Parte 2 e a Parte 3 da história.


            Milena estava decidida e não desistiria de seu plano. Ela mataria Beatriz, não importava o preço e a forma. Sua última tentativa acabou não dando certo por conta do grupo de anões que aparecera bem no momento em que ela entraria na casa. Mas a modelo já havia arquitetado outro plano e o colocaria em prática.
            — Mãe? — gritou Milena, assim que entrou na mansão.
            — Sim, o que foi? — Faustina desceu a escadaria em direção à sala. — O que você quer?
            — Você vai me fazer um favor — decretou Milena. — Preciso que você vá até a Beatriz. Eu a encontrei, ela está numa pocilga do subúrbio. Você tem que ir até ela toda suja, mal vestida, como se eu tivesse expulsado você daqui.
            — O que planeja? — perguntou a senhora, desconfiada.
            — A morte dela — respondeu Milena.
            — Minha filha! — Faustina ficou sem palavras. — Não posso fazer isso!
            — Então você vai para fora desta casa de verdade — ameaçou a modelo, impaciente. — Vai ser simples, não vai doer. Preciso que você entre na casa e se ofereça para cozinhar alguma coisa... E, então, você vai envenenar a comida.
            — Milena, por que isso? — questionou a mulher. — Você já não tem tudo o que quer?
            — Vai ou não me ajudar? — pressionou Milena. — Não temos muito tempo. Você precisa chegar lá amanhã, depois das nove, e ir embora antes das cinco da tarde. Mas acho que você consegue adiantar o serviço.
            — Tudo bem... — concordou Faustina.
            No dia seguinte, as duas acordaram bem cedo. Milena arranjou algumas roupas rasgadas e fedidas para a mãe.
            — Onde achou estas roupas? — perguntou Faustina, sentindo-se nauseada.
            — Peguei de um morador de rua — disse Milena. — Vista logo.
            Faustina se vestiu com os trapos.
            — Falta uma coisa... — comentou Milena, pegando uma tigela do chão.
            A megera passou o conteúdo da tigela no rosto e na roupa da mãe. Era água suja, da sarjeta.
            — Por que faz isso comigo? — perguntou Faustina.
            — Porque você me deve — explicou Milena. — Vamos, vou deixar você na esquina da rua onde a Beatriz está.
            Do outro lado da cidade, Beatriz e os sete irmãos tomavam café. Tudo estava bem. Emerson já não estava tão zangado quanto no dia anterior, e já até se acostumara com a ideia de uma hóspede.
            — Minha querida, está na hora de irmos — disse Geraldo. — Precisamos trabalhar.
            — Está cheio de vidro para quebrar naquele lugar — comentou Carlos, encenando o ato de quebrar. — O trabalho na vidraçaria é árduo!
            — Tudo bem... — concordou Beatriz. — Bom trabalho a todos. Farei um belo jantar para esta noite!
            Assim, os anões foram saindo da casa rumo ao trabalho.
            No fim da rua, um carro estava parado. Geraldo reconheceu o carro, era o mesmo do dia anterior. Mas não era possível enxergar o interior do veículo, pois os vidros eram escurecidos. Ao lado de dentro, Milena e Faustina estavam caladas, com a respiração baixa.
            Após os anões irem embora, Milena suspirou.
            — Tome — a modelo entregou uma ampola com um líquido verde para a mãe. — Este é o veneno.
            — O que é isto? — questionou Faustina. — Que substância é esta?
            — Você não precisa saber — disse Milena. — Vá logo! Ficarei esperando aqui.
            — Mas vai demorar até fazer alguma comida... — avisou a mulher.
            — Vá! — insistiu Milena.
            Faustina, então, saiu do carro e caminhou até a casa. A mulher estava horrível: sem maquiagem, o seu rosto era cheio de rugas e sulcos; a roupa toda rasgada e suja; o semblante depressivo. Ela bateu palmas.
            — Oi? — Beatriz apareceu na porta, desconfiada. — Posso... Dona Faustina?
            Beatriz ficou perplexa com o que viu.
            — O que houve com a senhora? — perguntou Beatriz. — Entre, por favor!
            A surpresa da menina foi tanta, que ela nem se deu conta de como a mulher havia-lhe encontrado ali.
            — Minha filha... — murmurou a velha. — A Milena me colocou para fora de casa. Desde ontem! Sem direito a nada!
            — Meu Deus! — clamou a jovem. — Que coisa terrível! Descanse um pouco...
            — Estou com fome... — interveio a senhora. — Será que tem algo para comer?
            — Bem, não tem nada — disse Beatriz. — Posso tentar cozinhar alguma coisa.
            — Não se preocupe — pediu Faustina. — Deixe que eu cozinho... Apenas me mostre as coisas.
            — Tudo bem — concordou Beatriz, pegando algumas coisas nos armários.
            — Maçãs? — Faustina viu as frutas num cesto. — Que tal se eu fizer uma torta de maçã?
            — Nossa! — os olhos de Beatriz brilharam. — Eu amo sua torta de maçã!
            — Então será isso — disse Faustina.
            A velha tomou muito cuidado durante o preparo, para que Beatriz não a visse colocar o veneno no meio da massa da torta.
            Cerca de duas horas e meia depois, a torta estava pronta.
            — Não vejo a hora de matar a minha fome! — comentou Faustina.
            — Então pode comer o primeiro pedaço, dona Faustina — ofereceu a jovem.
            — Não, não! — contestou Faustina. — A torta é sua comida favorita... Então experimente!
            A contragosto, Beatriz cortou um pedaço e logo o comeu, saboreando seu prato predileto.
            — Ficou com um gosto diferente — comentou  a moça. — A senhora usou algo diferente?
            — Não tinha canela — mentiu a velha.
            — Ah! — compreendeu Beatriz.
            — Posso ir ao banheiro, querida? — pediu Faustina. — Quero lavar as mãos antes.
            — Sim, venha, é por aqui — Beatriz apontou a porta do banheiro.
            Dez minutos depois, Faustina saiu do banheiro e encontrou a jovem encostada em uma cadeira da cozinha, um pouco largada.
            — Tudo bem, querida? — perguntou Faustina.
            — Acho que a torta não me caiu bem — respondeu Beatriz. — Não estou me sentindo muito bem. Acho que...
            Então, repentinamente, a menina caiu no chão.
            Faustina correu até ela e pressionou os seus pulsos. Não havia pulsação. A velha encostou a orelha no peito da jovem, tentando sentir a respiração, mas não conseguiu. Sem pensar duas vezes, Faustina correu para fora da casa e seguiu até o carro de Milena, entrando disfarçadamente.
            — E então? — questionou Milena.
            — Está feito — respondeu Faustina. — Ela comeu. Está caída no chão da cozinha.
            — Ótimo! — sorriu a modelo. — Agora, quando aqueles anões voltarem, vão encontrá-la assim e achar que está morta. Ela vai ser enterrada viva!
            — Como? — Faustina arregalou os olhos para a filha.
            — Isso mesmo — Milena pisou no acelerador e deu partida. — A substância que você colocou na comida dela fez a frequência cardíaca e a respiração dela diminuir, de modo que pareça que ela está morta.
            — Não! — gritou Faustina.
            — Fique quieta, mãe! — Milena deu uma cotovelada na mulher, que desmaiou.
            A modelo, então, partiu rumo a sua empresa, Kingdom, o seu império.
            Beatriz ficou lá, no chão gelado daquele sobrado, onde permaneceria até que os sete irmãos retornassem e a encontrassem.

Leia aqui o final da história.