sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Conto: O Grande Espírito do Rio

Rio Amazonas, Isla de los Monos, Peru.

            Era quase dez horas da noite quando Marco, Teresa e Joaquim navegavam próximos da Isla de los Monos – a Ilha dos Macacos. Eles haviam alugado o barco pesqueiro Neruda em Tefé, no Amazonas e, desde então, foram seis dias até chegar naquele ponto do Rio Amazonas.
            Alfredo, o peruano dono do pesqueiro, era contra os propósitos daquela viagem, mas só os descobrira há poucos minutos, ao ouvir uma conversa entre os três expedicionários e a guia turística, Moema:
            — Vocês têm certeza disso? — questionava Moema, insegura. — Não tenho certeza do que vamos achar na Ilha. Pode ser tudo balela.
            — Não! — contestou Joaquim, convicto. — É verdade, eu sei. Todo o mundo aqui da região fala disso... Os aldeões têm essas superstições.
            — Só não me metam nessa encrenca — pediu Moema, preocupada. — Não quero estar envolvida com isso e sujar o meu nome. O que vocês vão fazer é exploração ilegal. Retirar espécimes destas regiões é crime ambiental.
            — ¡Maldito sea! — exclamou Alfredo, saindo detrás da cabine do piloto. O homem entendia a língua portuguesa muito bem, só não conseguia falar o idioma; por isso a necessidade de uma guia e tradutora.
            Um clima tenso se espalhou por todo o convés do Neruda.
            — ¿Estabas escuchando a escondidas? — Moema brigou com o pescador. — Usted há sido contratado sólo para hacerse cargo de la embarcación.
            — ¡Qué vas a hacer no es correcto! — insistiu Alfredo. O peruano suava de tanta tensão ao descobrir os reais motivos daquela viagem. — ¡Hijos de puta! ¡La Boiuna nos va a matar!
            — La Boiuna? — Moema se deu conta do que se tratava aquilo tudo. — ¡Eso es una leyenda, hombre! ¡Sólo eso!
            Com o medo estampado na cara, Alfredo voltou para a cabine do piloto e ficou encarando os quatro brasileiros.
            Marco, Teresa e Joaquim não entenderam nada; ficaram calados aguardando por uma explicação de Moema, que também ficou calada.
            Quase à meia-noite, Alfredo parou o barco alegando que estava muito cansado e que precisaria dormir um pouco para repor as energias. O Neruda estava num meandro, entre as árvores com copas em forma de guarda-chuva. Então, Moema decidiu explicar aos três expedicionários o que estava acontecendo:
            — Bom, vocês presenciaram o show do peruano — comentou Moema, lamentando o ocorrido.
            — Aquilo foi um barato! — disse Marco, entusiasmado. — O cara é uma figura!
            — Mas ele parecia muito bravo com alguma coisa — sugeriu Teresa, uma mulher de sensibilidade extrema.
            — Exatamente — confirmou Moema, com uma feição não muito feliz. — Vejam bem, o povo que vive às margens do Amazonas tem uma crença muito forte em algo muito antigo.
            — Era aquele tal de Boiúna? — questionou Joaquim. — Ouvi o Alfredo comentando algo sobre isso.
            — Isso! Isso mesmo — respondeu Moema, assentindo com a cabeça. — A Boiúna é tida como O Grande Espírito do Rio Amazonas, capaz de encarnar numa gigantesca serpente para engolir as embarcações com os seus navegantes que fazem mal à natureza.
            — Não tenho medo de sucuri — brincou Marco. — Já matei várias!
            — ¡Eres un idiota! — era Alfredo. O homem havia acordado ao ouvir falarem sobre a Boiúna. — ¿No se dan cuenta que nos encontramos en el território de la Boiuna? Ella es la dueña de este río.
            — Amigo, venha cá... — Joaquim, o mais jovem de todos, envolveu o peruano com o braço direito e o levou para a popa do Neruda. — Que história é essa de Boiúna? Fale com calma para que eu entenda.
            — La Boiuna es el ser vivo más cruel y poderoso — alertou Alfredo, espreitando o Rio Amazonas. — Ella puede cambiarse a la gente si quiere engañarnos. Ella podría incluso convertirse en un recipiente para nosostros para atraer y ahogamos.
            — Espera um pouco... Não entendi nada! — Joaquim lamentou com uma expressão preocupada.
            — Ele disse que a Boiúna é tão poderosa que poderia se transformar numa embarcação para nos atrair e nos afogar — traduziu Moema, soltando um leve sorriso. — Mas é claro que isso é uma lenda!
            — ¡Esto no es una leyenda! — berrou Alfredo; o seu grito ecoou pela mata e pelo rio, fazendo-os perceber que estavam realmente sós.
            — Por que não vamos dormir? — propôs Teresa, desejando acalmar os ânimos dos navegantes.
            Assim, todos se encaminharam aos seus colchonetes para tentar descansar.
            No meio da noite, após ouvir um estalido, Marco se levantou e caminhou com uma lanterna até o púlpito de proa para tentar ver se algo havia batido no barco. O homem procurou no foco de luz e forçou a visão, mas não conseguiu enxergar nada. O rio corria calmo; não havia pássaros, não havia peixes; nem mesmo as árvores balançavam.
            Quando desligou a lanterna e virou-se para voltar ao seu colchonete, Marco foi surpreendido por alguém. Era uma figura feminina oculta pela sombra noturna; ela estava com os ombros tensos e os cabelos bagunçados.
            — Oi! Moema? Terê? — perguntou Marco, acendendo a lanterna na direção da moça.
            Então, Marco se assustou com o que viu – aqueles olhos completamente negros o encararam e puderam enxergar a sua alma. Num súbito ataque, a mulher avançou sobre o homem e o jogou contra o Rio Amazonas.
            No rio, Marco teve de lutar contra a correnteza e contra a mulher, que parecia ter uma força anormal. Mas não demorou muito para o expedicionário desistir e acabar-se afogando nas águas do Rio Amazonas.
            Ao amanhecer, Teresa e Joaquim procuraram por Marco no barco todo:
            — É melhor descermos até as margens e procurarmos por ele. Será que ele não quis, de repente, fazer xixi? — sugeriu Teresa, tentando não demonstrar a sua real preocupação.
            — Ele é louco, então, pois temos recipientes adequados para isso aqui no barco — argumentou Moema, aparentando estar incrédula com o sumiço do homem. — Não é seguro sair sozinho do barco e andar pela floresta; há animais à solta!
            — ¡Yo he dicho! Fue la Boiuna! — gritou Alfredo, apontando para o rio.
            No rio, algo despertou o temor dos tripulantes do Neruda – um corpo boiava nas margens do outro lado do Rio Amazonas; era o corpo de Marco.
            — Meu Deus! — gritou Teresa, chorando em desespero. — Quem fez isso?
            — Alfredo, pare de assustar as pessoas! — exigiu Moema, encarando o pescador e dono do barco. — Já não basta o que houve com o Marco? Leve a gente até a outra margem.
            — Si señora — Alfredo obedeceu ao pedido de Moema assim que a olhou nos olhos. — Como quieras.
            Então, o Neruda navegou até a outra margem do rio e, com algum esforço, os tripulantes conseguiram trazer o corpo de Marco de volta para o barco. O corpo estava inchado e cheio de marcas rochas; os olhos estavam revirados, exibindo apenas a esclera branca.
            — Vamos embora! — gritou Teresa, desesperada.
            — Teresa? — Joaquim ficou confuso... — Não terminamos...
            — Não vamos pegar mais nada! — decidiu a mulher, transtornada. — Vamos embora deste lugar... O Marco não tinha que ter morrido!
            — Mas foi um acidente! — insistiu Joaquim. — Você acreditou mesmo nessa historinha pra assustar criança?
            Moema lançou um olhar assustador a Joaquim, mas o jovem nem se deu conta; mas Alfredo capturou aquela ameaça e quase se jogou do Neruda naquele instante, mas preferiu manter a calma.
            — Será mejor que nos vayamos — Alfredo disse, tentando não encarar Moema. — Estamos todos muy nerviosos. Si seguimos com el viaje, no vamos a enfocar.
            — Tudo bem — Joaquim teve de concordar; todos estavam muito abalados.
            Então, o Neruda voltou a descer o Rio Amazonas rumo a Tefé.
            No cair da noite, o céu foi encoberto por densas nuvens cor-de-chumbo; não demorou muito e começou a cair uma tempestade que impedia a visão nítida do rio à frente:
            — ¡Maldita sea! — vociferou Alfredo ao concluir que precisaria esperar a chuva forte passar. — Tendremos que esperar.
            Dentro da cabine, Teresa, Joaquim, Moema e Alfredo assistiam a tempestade cair; o corpo de Marco perecia sobre o convés próximo à popa do Neruda. As árvores se curvavam sobre o rio com o vento forte, que assobiava assustadoramente. Raios e trovões clareavam o céu e estremeciam a terra.
            — Meu Deus! Estamos ferrados — praguejou Teresa. — A gente precisa ir embora daqui.
            — Você enlouqueceu? — Moema encarou, com indignação, a expedicionária. — Não está vendo a tempestade? Se o Alfredo tentar ligar este barco, seremos levados pela correnteza como uma folha de papel!
            — No podremos irnos de aqui hoy — lamentou Alfredo, ainda evitando olhar para Moema. — Tal vez tengamos que dormir aqui esta noche. ¡No quiero perder mi barco durante la tormenta!
            — O Alfredo está certo — concordou Moema, apoiando a sua mão esquerda sobre o ombro direito de Alfredo. — Não vamos fazê-lo perder o seu barco.
            Assim, os quatro permaneceram ali, na cabine, por cerca de três horas até caírem no sono.
            Joaquim acordou assustado ao ouvir um barulho vindo do rio. Levantou-se e caminhou até o púlpito de proa; foi quando viu outra embarcação se aproximando do Neruda – era um posto flutuante de combustível da Petrobrás, colorido em verde.
            O posto flutuante se aproximou o bastante para que fosse possível saltar sem dificuldades do barco pesqueiro Neruda para a embarcação da Petrobrás. E foi exatamente isso o que Joaquim fez:
            — Oi? — dizia Joaquim, enquanto batia nas portas da embarcação. — Tem alguém aí?
            Uma das portas, então, abriu-se e exibiu ao moço um compartimento cheio de computadores e rádios. Sem pensar duas vezes, Joaquim correu para dentro do local a fim de tentar comunicar-se com alguém em busca de ajuda. Contudo, a porta se fechou com toda a força logo que ele pisou no compartimento.
            — Ei! Me deixe sair daqui! — gritou Joaquim, enquanto esmurrava a porta de aço. — Socorro!
            Uma silhueta feminina surgiu atrás de Joaquim e soltou um sussurro:
            — ¡Tú eres mio, no creyente! — a voz feminina lhe pareceu familiar, mas era gélida e assombrosa. — Cierra tus ojos y comience a orar.
            Joaquim começou a tremer dos pés à cabeça e, sem controle algum dos seus impulsos, urinou nas calças. O jovem cerrou os olhos com toda a força e começou a fazer preces:
            — Pelo amor de Deus... — implorava o homem, enquanto tentava, sutilmente, pôr-se de joelhos sobre o chão do compartimento sombrio. — Eu prometo que nunca mais volto aqui!
            — ¡Cállate la boca! — a mulher soltou um berro que parecia o granido duma coruja, o que fez Joaquim silenciar-se.
            Quando se deu conta, Joaquim viu que havia uma infiltração no compartimento onde estava; a água já estava ao nível das suas coxas. O jovem ergue-se de supetão, assustado, e tentou abrir a porta mais uma vez – inutilmente. Foi só aí que ele, então, concluiu que a embarcação estava afundando no Rio Amazonas.
            — Não! — ele gritava e chorava desesperado, sem esperanças. — Me deixe ir embora! Por favor!
            — Olha só... — a voz feminina mudou o seu tom para algo mais melódico enquanto a silhueta se aproximava de Joaquim. — Não são só criancinhas que ficam assustadas!
            O olhar de Joaquim era perturbador – ele estava transtornado com o que viu. O medo e o pavor foram tão intensos que isso lhe causou uma série de sensações incômodas: primeiro, uma forte dor atingiu-lhe o peito e as costas, causando-lhe uma falta de ar; a sua língua começou a enrolar e ele começou a sentir enjoo o braço esquerdo formigava como se milhares de insetos caminhassem por ali; uma vertigem lhe acometeu; e, por fim, Joaquim caiu morto.
            Aos poucos, o porto flutuante da Petrobrás afundou nas frias águas do Rio Amazonas até ancorar na talvegue do rio. A mulher lançou um último olhar ao corpo do jovem e saiu pela porta de aço, que se abriu assim que a silhueta feminina encostou.
            Enquanto isso, Teresa e Alfredo procuravam por Joaquim, mas, como não o encontravam, decidiram acordar Moema, que dormia pesadamente no convés do Neruda:
            — Moema! Acorde — Teresa cutucou o ombro da guia. — O Joaquim... Ele está desaparecido!
            — O quê? — Moema levou as mãos aos olhos, tentando limpar o seu campo de visão. — Como desapareceu?
            — Não sei... — respondeu Teresa, com a voz chorosa. — E se tiver acontecido o mesmo que aconteceu ao Marco?
            Nesse instante, Teresa olhou para a popa da embarcação, esperando achar o corpo de Marco, que não estava mais lá.
            — Marco! — gritou Teresa. — O corpo dele sumiu!
            — Lárguemonos de aqui — decidiu Alfredo, segurando a roda do leme e começando a navegar com o Neruda. — Tengo una familia que cuidar.
            — Largue o timão — Moema proferiu aquelas palavras com um ar de seriedade. — Agora.
            Sem hesitar, Alfredo soltou a roda do leme e sentou-se num banquinho, tremendo-se todo.
            — Mas o que está fazendo, Moema? — questionou Teresa, sem entender a atitude da guia. — Vamos embora logo deste Inferno!
            — Aqui não é o Inferno, mulher — a voz de Moema ficou mais grave e um pouco sibilante. — Aqui é o Paraíso. São vocês, humanos, que fazem disto o Inferno. São vocês, humanos, é quem destroem tudo o que veem pela frente. São vocês, humanos, quem acreditam que são a forma de vida mais inteligente.
            — Por que está falando assim? — Teresa caminhava, de costas e em passos curtos, rumo à proa do barco. — Está querendo assustar a gente?
            — Alfredo já mijou nas calças — zombou Moema. — Mas você... Ah! O seu presente te aguarda!
            — ...Santificado sea tu Nombre; vena a nosotros tu Reino — orava Alfredo, ajoelhado na cabine, de olhos fechados. — Hágase tu voluntad en la tierra como en el cielo.
            — ¡Cállate! — sibilou Moema; os seus olhos estavam inteiramente negros e, da sua pele, começavam a "brotar" escamas. — Yo soy la diosa aquí.
            — Moema, pare com isso! — exigiu Teresa, tentando uma postura mais firme.
            Simples e direta, Moema saltou sobre a mulher e mordeu o seu braço, arrancando um bom pedaço da pele de Teresa:
            — Filha duma puta! — gritou Teresa. — Por que fez isso? Socorro, Alfredo, me ajude!
            — Chega! Cale-se de uma vez por todas! — ordenou Moema, que agarrou a mulher e saltou com ela para dentro das águas do rio.
            No fundo do rio, Teresa lutava com todas as suas forças, o que era inútil já que a adversária era algo sobrenatural. O abraço de Moema foi tão forte que Teresa rapidamente desmaiou e afogou-se, engolindo a água do Rio Amazonas até o seu corpo inflar como um balão.
            Depois disso, Moema escalou de volta o Neruda e posicionou-se diante de Alfredo, que tremia – ele parecia ter Parkinson, de tanto que tremia:
            — Pois bem... — Moema encarou o pescador. — Es tu turno.
            — ¡Por amor de Dios! — Alfredo chorava desesperado. — Nunca hice ningún daño a la naturaliza. Pesco sólo para mi familia a sobrevivir.
            — E quanto a esse bando de exploradores que você trás para o rio? — lembrou Moema, furiosa. — Ya sabes lo que quierem es explorar la naturaleza.
            — ¡Lo juro! — o homem se ajoelhou perante a mulher e suplicou. — Jamás voy a hacer... ¡Sólo te ruego que me dejes ir a mi familia!
            — Tudo bem — concordou Moema, com um sorriso perverso. — Você poderá voltar à sua família. No entanto... A partir de hoje, sempre que algum explorador te procurar, você deixará muito claro que conheceu a Boiúna de perto.
            — ¡Lo haré, lo prometo! — prometeu Alfredo, atrevendo-se a beijar os pés de Moema, que não interferiu.
            — Além disso, na sua volta para o seu vilarejo, você passará em todas as aldeias e vilarejos às margens do Rio Amazonas e dirá o seguinte: — estabeleceu a criatura misteriosa — diga a todos que O Grande Espírito do Rio, a Boiúna, ainda existe e sempre existirá. ¡Ay de quien haga tropezar uno de mi! ¡Ahora, continúe su viaje!
            Assim, Moema, a Boiúna, saltou e mergulhou no rio. Segundos depois, enquanto Alfredo retomava o curso do rio, o homem avistou uma enorme criatura serpenteando na superfície do Rio Amazonas, uma gigantesca cobra de escamas escuras, que refletiam o brilho das estrelas.


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