segunda-feira, 13 de junho de 2016

Conto: In(tolerância)

            O conto a seguir é inspirado no massacre ocorrido numa boate em Orlando, cidade dos Estados Unidos, no dia 12 de junho de 2016. A ideia é provocar a reflexão sobre o tipo de sociedade que somos e o tipo de sociedade que desejamos ser.
* * *
            Às sete da manhã de domingo, o noticiário informou que um atirador, conhecido como Almir Khouri, de 30 anos, causou a morte de mais de 50 pessoas e deixou outras 60 feridas. Após um tiroteio, a polícia conseguiu interceptar o atirador, que acabou morrendo no local. O atentado foi iniciado por volta das duas horas da manhã e, de acordo com testemunhas, Almir atirou por vários minutos sem parar; alguns rapazes disseram que o tiroteio chegou a durar uma música inteira. Os familiares e amigos das vítimas fazem vigília em protesto à violência e à intolerância em frente à boate; diversos grupos, ao redor do mundo, também demonstraram solidariedade à causa e indignação com o massacre.
* * *
Horas antes.
            Numa cidade pequena, um dos programas mais prediletos da população jovem é sair para as boates e para os bares no fim de semana. Com Felipe não era diferente; se havia algo que agradava a ele, era sair para a balada com os amigos e com o namorado. Naquela noite de sábado, o jovem de 27 anos preparava-se para uma festa com DJs convidados numa boate da região central da cidade.
            — Boa diversão, filho — desejou Luana, mãe de Felipe. — Leve a sua chave porque você vai chegar tarde, né?
            — Vou chegar cedo, mãe... Amanhã de manhã — brincou Felipe, dando um beijo no rosto da mãe e saindo.
            Ao lado de fora da casa, havia um Sportage vermelho estacionado em frente ao jardim:
            — E aí, gatão! — era Pedro, o namorado de Felipe. — Até que você foi rápido desta vez...
            — Engraçadinho — Felipe entrou no carro e beijou o namorado.
            Assim que chegaram à boate, o casal comprou os ingressos e desceu para a pista de dança. A casa estava lotada – os dançarinos e as dançarinas estavam fazendo uma apresentação no palco enquanto a multidão delirava. Felipe e Pedro logo começaram a dançar com alguns amigos que encontraram.
            Por volta de uma e meia da manhã, Pedro demonstrou estar um pouco cansado:
            — O que você tem? — perguntou Felipe, enquanto puxava o namorado de volta para a pista de dança. — Está cansado?
            — Eu trabalhei hoje, lembra? — comentou Pedro, sorrindo e olhando nos olhos de Felipe. — Mas fica tranquilo; se você ainda quiser ficar, não tem problema.
            — Só mais um pouco? — Felipe deslizou o seu corpo para "embalar" o namorado na sua dança.
            — Quanto tempo você quiser! — respondeu Pedro, beijando o namorado.
            A música preferida do casal começou a tocar: "I lived", da banda OneRepublic.
* * *
            Do outro lado da cidade, um rapaz de 30 anos havia acabado de sair de casa. Ele caminhou em passos pesados até o ponto de ônibus, onde embarcou num coletivo rumo ao centro da cidade.

Hope when you take that jump
You don't fear the fall

            Seu nome era Almir, descendente de afegãos e morador da cidade desde o seu nascimento. Há alguns meses, Almir vinha demonstrando um comportamento estranho sempre que via ou ouvia pessoas do mesmo sexo tendo um relacionamento homoafetivo. Os seus pais até tentaram evitar que ele tivesse qualquer tipo de contato com tais situações a fim de não deixar o filho estressado.

Hope when the crowd screams out
They're screaming your name

            O ônibus em que Almir estava estacionou em seu ponto final e o rapaz desembarcou. Ele viu um letreiro néon piscando na escuridão e seguiu para o seu destino. Enquanto caminhava, Almir mexia na mochila em suas costas tentando arrumar alguma coisa.

Hope if everybody runs
You'll choose to stay

            O rapaz puxou um rifle de dentro da bolsa e mirou nos seguranças da boate. Mentalmente, levaram apenas cinco segundos para o tiroteio iniciar.
* * *
            Felipe ouviu um breve e agudo bipe do seu relógio de pulso e verificou que já eram duas da manhã.

Hope that you fall in love
And it hurts so bad

            Enquanto se juntava a Pedro no bar da boate, Felipe ouviu barulhos fortes que pareciam vir do piso superior; eram como estalidos.
            — O que foi isso? — Pedro tentou concentrar-se no estalido. — Você consegue ouvir?

The only way you can know
You gave it all you had

            — É — concordou Felipe. — Eu ouvi.
            No segundo seguinte, o que deu para ouvir foram gritos sobrepostos aos estalidos, que ficaram mais fortes. De repente, as pessoas que estavam no piso superior da boate desceram correndo, derrubando quem estava na frente, e gritando:
            — É tiro! Corre! — berravam em coro.

And I hope that you don't suffer
But take the pain

            Felipe e Pedro se olharam e só pensaram em se agachar. Cada um olhava para um lado enquanto todos corriam pela pista de dança, parecendo formigas quando têm o seu formigueiro destruído.

I owned every second that this world could give

            O casal correu para trás do bar e ficou escondido atrás do balcão junto a duas meninas e outro rapaz. Os cinco tremiam de tanto pavor, mas estavam tão chocados que não conseguiam emitir nem um grito.

I saw so many places, the things that I did

            Então, embora estivesse escuro, Felipe conseguiu ver o que acontecia: havia um homem segurando um rifle e atirando contra todos na boate. Ele mirava e atirava sem parar, repondo a munição com maestria.

Hope that you spend your days
And they all add up

            — Eu não quero morrer! — Felipe chorou segurando a mão de Pedro com toda a força.
            Enquanto isso, uma das meninas ao seu lado caiu para trás quando foi atingida por uma bala no meio da cabeça.

And when that sun goes down
Hope you raise your cup

            — Puta que o pariu! — Felipe e Pedro se levantaram imediatamente, tropeçando nos corpos mortos e feridos que estavam jogados e esbarrando na multidão que corria pela pista.
            A polícia, enfim, havia chegado. Mas aquilo não fez do pesadelo um sonho – o tiroteio só aumentou; enquanto Almir vitimava uma multidão no interior da boate, a polícia atirava contra as paredes do local tentando parar o ataque.

I wish that I could witness
All your joy and all your pain

            Pedro deu um sinal para Felipe, mostrando que havia uma possível saída. Contudo, Felipe não prestou atenção ao sinal; o jovem só conseguiu ver Pedro subir pelas escadas junto a algumas outras pessoas com toda a pressa.
            Felipe tentou seguir o namorado, mas foi encurralado pelo atirador, que segurava o rifle e sorria.

But until my moment comes
I'll say I did it all

            O jovem se virou e correu para os banheiros da boate, enfiou-se dentro de uma das cabines e sentou-se em posição fetal, rezando e pedindo para sair dali com vida. A única coisa que lhe ocorreu foi despedir-se de quem amava, pois não sabia o que aconteceria.

I owned every second that this world could give

            "Fica bem. Eu amo vc!", foi o que enviou para o celular do namorado.

I saw so many places, the things that I did

            "Mãe... Estou preso na boate!", começou a escrever para a mãe. "Tem um cara atirando". Em seguida, ele viu a resposta da mãe: "Na boate? Você está bem? Fique aí!".
            Então, um estrondo derrubou a porta do banheiro. Almir havia entrado ali para acabar com quem ainda estivesse vivo.
            "Ele está vindo, mãe!", respondeu Felipe; "Eu te amo, mãe, te amo!".

Yeah, with every broken bone
I swear I lived


            Uma bala cruzou o olho direito de Felipe enquanto outra bala penetrou o seu peito e atingiu o coração. A última coisa que o jovem conseguiu enxergar foi o líquido vermelho e viscoso tomar conta do seu corpo até tudo escurecer.