terça-feira, 23 de junho de 2015

Tudo o que Jenifer sabia...



            Tudo o que Jenifer sabia era que, mais cedo ou mais tarde, ela acabaria explodindo (não literalmente, é óbvio, mas em relação aos seus sentimentos). Ela sabia o que podia ou não fazer e sabia sobre todas as consequências de cada decisão; talvez fosse exatamente isso que a impedisse de agir: saber.
            Saber das coisas não pode ser considerado, exatamente, um dom; está mais para uma maldição: você tem o conhecimento e isso te vai tornar alguém que pode enxergar as coisas, mas, ao mesmo tempo, isso te vai trazer uma série de angústias e noites em claro.
            Jenifer estava exatamente assim – a angústia lhe tomava conta e fazia-lhe não raciocinar direito; ela imaginava coisas, criava histórias absurdas que justificassem a sua vontade.
            Tudo começara há pouco mais de dez anos: no auge da maioridade, Jenifer havia feito a escolha de iniciar um relacionamento (e cada escolha vem com uma renúncia); mas a menina não imaginava que as renúncias seriam tantas. Após vivenciar vários relacionamentos diferentes e amadurecer com cada vivência, a moça havia chegado a um ponto crucial – percebera que não tinha o controle sobre muito do que lhe rondava; e, para ela, isso acabou sendo algo terrível.

            Mas, afinal, para que ter tudo sob controle?

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Pela toca do Coelho


            No dia 4 de julho de 1865, após três anos sendo enriquecida e aprimorada, foi publicada a história duma menina que encantou o público da Literatura Fantástica: As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol – pseudônimo de Charles Lutwidge Dogson.
            O livro conta a história de Alice, que acaba caindo, literalmente, num mundo fantástico repleto de criaturas antropomórficas, cheio de coisas ilógicas e de características dum sonho. O livro não é só dedicado às crianças, pois foi uma forma que Lewis encontrou para satirizar seus amigos e inimigos, além de ter criado paródias para poemas populares ingleses do século XIX.
            No próximo mês, Alice comemora os seus 150 anos. Para lembrar desse clássico, produzi uma tradução dum trecho do livro, a qual verão a seguir.


CAPÍTULO 1 – Pela toca do coelho

            Alice já dava indícios do seu cansaço por estar sentada naquele banco ao lado da sua irmã sem ter nada para fazer: vez ou outra, ela bisbilhotava o livro que a irmã lia, mas, não havia ilustrações ou diálogos nele.
            — Pra quê serve um livro — pensou Alice — se não tem desenhos e nem conversas?
            Na sua mente, então, ela pensou (o máximo que pôde, já que o dia abafado a deixou muito sonolenta e entorpecida) se a alegria em confeccionar uma pulseira de flores compensaria o problema em ter de levantar-se para colher as tais flores. Daí, de repente, um Coelho Branco com olhos rosados correu muito próximo a ela.
            Não havia nada de tão extraordinário naquilo; e Alice não achou muito incomum ouvir o Coelho falar consigo mesmo:
            — Ó, céus! Poxa! Estou atrasado!
            Depois, quando ela parou para pensar, achou que deveria ter percebido o quão estranho era, mas tudo fora muito natural na hora. Mas, quando o Coelho pegou um relógio no bolso do seu colete, e consultou as horas e, depois, ficou preocupado com a hora, Alice se levantou e, num clarão de ideias, lembrou-se de que nunca havia visto um coelho vestindo um colete com bolsos, e muito menos um relógio para tirar desse bolso. Sem se aguentar de curiosidade, ela correu pela grama atrás do coelho e, com sorte, conseguiu vê-lo saltar dentro duma grande toca de coelho sob a cerca.
            No segundo seguinte, Alice saltou na toca, sem pensar em como conseguiria sair dali depois.
            A toca do coelho era profunda, como um túnel que levava a algum lugar desconhecido, e, de repente, virou um buraco, de modo que Alice nem teve como pensar em parar antes de começar a cair em algo que parecia não ter um fundo.
            Ou aquilo não tinha fundo, ou ela caía muito lentamente, pois ela já havia passado muito tempo olhando ao seu redor para desejar saber o que aconteceria depois daquilo. Primeiro, ela tentou olhar para baixo e descobrir para onde estava caindo, mas estava tudo muito escuro para conseguir enxergar. Depois, ela olhou para os lados do túnel e percebeu que as paredes eram cheias de cristaleiras e estantes de livro. Aqui e ali, havia mapas e quadros pendurados em estacas. Ela pegou uma tigela de uma das estantes enquanto caía – havia uma etiqueta dizendo “Geleia de Laranja” –, mas, para a sua tristeza, estava vazia. Ela não quis largar a tigela por medo de matar alguém, assim, conseguiu guardá-la numa das cristaleiras enquanto caía.
            — Bom... — pensou Alice. — Após cair tanto assim, eu não vou achar ruim se cair das escadas! Em casa, vão me achar muito corajosa! Até porque não falarei nada se eu cair, mesmo se for do telhado de casa! — O que, provavelmente, era verdade.
            Cair, cair e cair. A queda parecia nunca ter um fim!
            — Quantos metros eu já devo ter caído neste tempo? — questionou-se em voz alta. — Já devo estar bem perto do centro da Terra. Vamos ver... Acho que isso seria mais de seis mil metros abaixo da terra. — Como podem ver, Alice não aprendeu muitas coisas desse tipo em suas lições da escola e, pensando bem, aquele não era um momento muito adequado para mostrar os seus conhecimentos, além de não ter ninguém para ouvi-la, mesmo que dizer fosse uma boa prática.
            — Sim! É a distância correta. Mas, aí, fico pensando em qual Latitude ou Longitude estou? — Alice não fazia ideia do que era a Latitude nem a Longitude, mas achava que eram ótimas palavras a serem ditas.
            Logo, ela recomeçou:
            — Será que eu posso cair direto através da Terra? Seria muito engraçado aparecer no meio das pessoas que andam com suas cabeças para baixo. Os Antipáticos, acho que é isso — ela não estava tão triste, agora, por ninguém ouvi-la, pois aquela parecer ser a palavra certa. — Mas tenho que perguntar o nome do país a eles. Com licença, Senhora, aqui é a Nova Zelândia ou a Austrália? — Ela tentava imitar um cumprimento enquanto falava (cumprimentar em queda livre – já pensou nisso?). — Ela vai achar que sou uma garota ignorante por perguntar isso. Não, eu não perguntarei. Talvez eu possa ver o nome escrito em algum lugar.
            Cair, cair e cair. Não havia mais nada a fazer, então Alice voltou a falar:
            — Acho que a Diná vai ficar com muita saudade de mim! — Diná era a gata de estimação. — Tomara que eles se lembrem de dar o leite dela na hora do café. Diná, minha querida, queria que estivesse aqui embaixo comigo! Acredito que não há ratos no ar, mas você poderia capturar um morcego, e isso se parece muito com um ratinho, né? Mas será que gatos comem morcegos?
            E, então, Alice começou a ficar mais sonolenta e continuou falando sozinha de uma maneira sonhadora:
            — Gatos comem morcegos? Morcegos comem gatos? — ela alternava.
            Como podem ver, ela não conseguia responder nenhuma das perguntas e, por isso, não importava a ordem. A menina sentiu que estava cochilando e começou a sonhar que caminhava de mãos dadas com Diná, falando com a gata seriamente:
            — Então, Diná, fale a verdade... Você já comeu um morcego? — de repente, houve um baque e Alice caiu sobre um monte de galhos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim.
            Alice não havia se machucado nem um pouco; então, em segundos, ela pôs-se de pé. Ela olhou para cima, mas estava tudo muito escuro; atrás dela havia outro grande túnel e o Coelho Branco passava por ali, todo apressado.
            Não havia tempo a perder, e Alice, parecendo uma ventania, correu atrás do animal a tempo de ouvi-lo falar, assim que ele havia feito uma curva:
            — Ah! Pelas minhas orelhas e pelos meus bigodes! Está ficando tarde!
            Ela estava bem atrás deles quando fez a curva, mas o Coelho já havia desaparecido. Alice se viu num cômodo com o teto baixo e que se estendia vastamente, todo iluminado por uma fileira de lâmpadas que pendiam do teto.
            Havia portas por todo o cômodo, mas elas estavam todas trancadas. Depois de ter percorrido todo o cômodo por um lado e ter voltado pelo outro lado, tentando abrir porta por porta, Alice caminhou com desânimo para o centro da sala, pensando em como ela sairia dali.
            De repente, ela encontrou uma mesinha de três pés, toda feita em vidro; não havia nada sobre o móvel, exceto por uma minúscula chave dourada, e o primeiro pensamento de Alice foi que a chave poderia abrir uma daquelas portas. Mas (para a sua infelicidade!), ou as fechaduras eram grandes demais, ou a chave era pequena demais; mas, de qualquer forma, não seria possível abrir nenhuma das portas.
            Entretanto, na segunda tentativa, Alice encontrou uma cortina que, antes, não havia percebido; e, atrás dela, havia uma portinha que media cerca de 40 centímetros. Ela tentou colocar a pequena chave na fechadura e, para a sua sorte, coube perfeitamente!
            Alice abriu a porta e descobriu que ela levava a um pequeno túnel – não muito maior do que uma toca de ratos. Ela se ajoelhou e olhou através do túnel, enxergando o mais lindo jardim que já havia visto. Ela estava “doida” para sair daquela sala sombria e passear por entre aqueles canteiros de flores luminosas e aquelas fontes de água fresca; mas ela mal podia passar a sua cabeça pela porta.
            — E, mesmo se a minha cabeça coubesse — pensou Alice —, não teria muita serventia sem os meus ombros. Ah! Como eu queria poder ser dobrável como um telescópio! Eu acho, até, que eu poderia se, ao menos, soubesse por onde começar.
            Vejam, como tantas esquisitices aconteceram ultimamente, Alice começava a achar que algumas coisas, aliás, era verdadeiramente impossíveis.
            Não havia porque esperar ao lado da portinha; então, Alice voltou em direção à mesa, esperando, talvez, encontrar outra chave sobre o móvel, ou, também, um manual para dobrar pessoas como telescópios. Foi, aí, que ela encontrou uma garrafinha sobre a mesa:
            — Isso, sem dúvida, não estava aqui — comentou Alice.
            Em volta do gargalo, havia uma etiqueta de papel com as palavras “BEBA-ME” gravadas, de forma graciosa, em letras grandes.
            Tudo bem em dizer “BEBA-ME”, mas a pequenina e sabida Alice não faria aquilo tão depressa.
            — Não... Vou dar uma olhada antes — ela disse — e ver se está ou não marcado “veneno”.
            A menina já havia lido muitas lindas historinhas sobre crianças queimadas e comidas por criaturas selvagens, além de outras coisas desagradáveis, tudo porque não se lembraram das regras simples que os seus amigos haviam-lhes ensinado. Por exemplo: um ferro em brasa pode queimar você caso não o afaste o suficiente; ou, se você fizer um corte bem profundo no dedo com uma faca, vai sangrar. E Alice jamais se esquecera daquilo: se você beber de uma garrafa em que está escrito “veneno”, é quase certeza de que você sofrerá as consequências, mais cedo ou mais tarde.
            Contudo, a garrafa não continha nenhuma marcação de “veneno”; assim, Alice não hesitou em beber, e achou o conteúdo muito bom – na verdade, era um gosto misturado de torta de cereja, musse, abacaxi, peru assado, caramelo e torrada com manteiga derretida; era tão bom, que ela acabou com o líquido rapidinho.
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            — Que coisa esquisita! — disse Alice. — Devo estar-me dobrando igual a um telescópio.
            E aquilo não era imaginação; de fato, ela ficara com cerca de 25 centímetros de altura. A feição de Alice se alegrou assim que ela se lembrou de que tinha o tamanho exato para passar pela porta e entrar naquele adorável jardim.
            Antes, contudo, ela esperou por alguns minutos para ver se ainda encolheria mais; ela ficou um pouco assustada com isso.
            — Isso bem pode acabar — comentou Alice, sozinha. — comigo desaparecendo como uma vela. Como eu ficaria? — Ela tentou imaginar como se parece a chama duma vela após apagar-se, mas ela não conseguiu lembrar-se de algo do tipo.
            Após aguardar um tempo e descobrindo que nada mais aconteceria, ela decidiu ir para o jardim de uma vez por todas; mas, para o seu azar, ela percebeu que havia esquecido a chave dourada assim que cruzou a porta e, então, voltou para buscá-la; foi só aí que ela se deu conta de que não alcançava o topo da mesa – ela podia ver o objeto através do vidro e tentou dar o melhor de si para escalar uma das pernas da mesa, mas a superfície era muito escorregadia. Depois de muitas tentativas inúteis e de ser vencida pelo cansaço, a pequenina Alice se sentou e começou a chorar.
            — Ei! Não tem porque chorar assim! — a menina fez um alerta a si própria de uma maneira ríspida. — É melhor parar agora mesmo! — Geralmente, ela sempre se alertava muito bem – embora ela, raramente, seguisse os próprios conselhos. Às vezes, ela se repreendia dum modo tão severo que provocava choro em si própria; uma vez, ela tentara boxear as próprias orelhas por ter trapaceado num jogo de críquete em que jogava sozinha (essa curiosa menina adorava fingir ser duas pessoas).
            — Agora não adianta — pensou a pobre Alice — querer ser duas pessoas! Isso, porque já está difícil o bastante ser uma pessoa digna de respeito!
            Alguns segundos depois, o seu olhar chegou a uma pequena caixa de vidro que estava sob a mesa; Alice abriu a caixa e encontrou um bolo em miniatura, no qual estava escrito “COMA-ME” em lindas letras feitas com groselha.
            — Bom, vou comer — decidiu Alice — e, se isso me fizer crescer, poderei pegar a chave; agora, se isso me fizer diminuir, poderei rastejar sob a porta e chegarei, de qualquer forma, no jardim, não importa o que aconteça.
            A menina mordiscou um pedaço.
            — E aí? E aí? — perguntava a menina, freneticamente, segurando sua mão em cima da cabeça para sentir se estava crescendo; mas ela ficou bem surpresa ao ver que continuava do mesmo tamanho (para ser exato, isso costuma acontecer quando se come bolo, mas Alice já estava acostumada a não esperar nada além de esquisitices acontecendo – porque, parecer normal, parecia-lhe chato!).
            Então, Alice decidiu agir e acabou com o bolo duma vez por todas.


Fonte: https://www.gutenberg.org/files/11/11-h/11-h.htm